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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Angélica




Foi o meu primeiro grande

mas não definitivo

amor

 

E continua a ser

seguramente

aquele que mais me marcou

 

No corpo

na vida

e na mente

 

Apaixonámo-nos sem o saber

na alvorada da puberdade

e amámo-nos com doce e pia paixão

por toda a feliz e distendida adolescência

 

Tudo se consumaria à entrada da idade adulta

(oh, que terrível perturbação, que dramático dilema!)

dele resta esta saudosa e terna imanência

que só agora ouso converter em poema

 

Angélica era linda!

Tinha o rosto iluminado de espiritualidade

luz que se reflectia nos seus cabelos de oiro

com a mesma religiosa luminosidade

da dócil chama da lamparina de azeite

que tinge de santidade as santas imagens

nos altares de uma qualquer catedral

 

Tinha o porte e a graciosidade de uma divina vestal

a voz profética e o olhar fascinante de Sibila

o semblante superior e doce de Afrodite e Artemisa

imagens que o meu espírito enamorado construía

no estudo da história de Atenas e Roma antigas

 

Angélica era uma deusa!

Que me fez deus, seu igual, quando me confessou

ser eu o arquétipo das imagens que também ela formava

nas mesmas leituras das mitologias grega e latina

sendo nosso Olimpo o idílico Jardim Municipal

em Aquae Flaviae

nas margens plácidas do bucólico rio Tâmega

a que se confinava o nosso juvenil conceito de alfa e ómega

 

Mutuamente apaixonados sem o saber

não sabíamos ainda que coisa era amar

por isso nos limitávamos a passear lado a lado

e a sorrir

a brincar

e a arfar de forma desconhecida

sempre que nos estreitávamos em inocente abraço

cientes de não sofrer de doença respiratória

nem haver razão de cansaço

 

E assim crescemos platonicamente enamorados

tão puros e inocentes que ainda hoje tenho na ideia

que Kant escreveu a Crítica da Razão Pura a pensar em nós

embora não fôramos nós a interrogar-nos:

Que poderíamos nós, de facto, saber?

Que deveríamos nós, em verdade, fazer?

O que nos era lícito esperar de nós?

 

Respondeu Kant a estas filosóficas questões?

Nunca nos interessou verdadeiramente saber

 já que mantivemos a mais estreme fidelidade

 à pureza daquele nosso amor da menoridade

 

Até que um dia…

… largámos Kant

(e passando à margem de Comte)

mergulhamos na leitura dos Evangelhos e de Santo Agostinho

passamos, ao de leve, pelas Suras do Corão que falam da mulher

(a que dissemos, obviamente, não, nunca, jamais!)

para acabarmos por cair nos mais apetecidos orientais

em Buda, Tao, Sri Aurobindo, no Tantra Ioga e no Kamasutra

 

Até que um dia…

…chegou a hora de deixar o Olimpo Municipal

de procurar outros saberes na universidade da vida

e nos espaço mais amplos do futuro e da Capital

 

Foi então quando…

nós que nos amávamos tanto

por encanto nos demos conta

de que estávamos livres e sós

como Adão e Eva tomados da sua própria ciência

expulsos do Paraíso

condenados à nossa própria consciência

e cientes agora de que nem um nem o outro éramos deuses

mas simples mortais

decidimos tentar sê-lo, então, por via do amor

e à força de tanto viver a dois

e de amar mais

 

E seria com beijos, abraços e loucuras sem fim

à força de tanto "sexar"

que ousamos alcançar a Iluminação

(oh, que sublime privilégio!)

 

acreditando piamente que com tanto amor

envoltos nas ondas inebriantes da comunhão de prazer

voaríamos para fora dos nossos corpos

nos tornaríamos etéreos e santos

e de espíritos abraços num deleite desmedido

cumpriríamos, por fim, o nosso divino sortilégio

 

Por inúmeras vezes estivemos à beira do nirvana, é certo

mas nunca se fez luz em nossos espíritos

apenas luar

 

Nunca verdadeiramente lá ousamos chegar

até que depois de muito e muito tentar

acabamos por concluir que o amor de homem e mulher

apenas serve para ter prazer e fazer filhos

e nunca

por si só

para nos salvar!

 

E as palavras mais frias, nuas e cruas que até hoje ouvi

e a que nunca, por insanidade mental, correspondi

vieram de Angélica, já no estertor da separação

mas que ainda hoje me causam indizível dor

 

Disse-me ela, pelo telefone, à distância

com a habitual superior doçura

numa derradeira instância de salvar

o que perdido estava de veras:

 - Nunca me rendi, nem rendo, às minhas lágrimas

mas não resistirei às tuas se forem sinceras

 

Não chorei

na altura

(oh, que terrível perturbação, que dramático dilema!)

mas faço-o hoje e agora, arrependido

aqui

neste poema


Vale de Salgueiro, 25 de Janeiro de 2008

Henrique António Pedro


in Mulheres de Amor Inventadas (Ed. Autor-Out 2013)