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domingo, 29 de abril de 2018

Estas fragas que me falam




Não ouvi esta fábula a nenhum animal
da terra, do mar ou do ar
mamífero, ave, peixe ou réptil
a nenhuma flor espadice ou séssil
nem a ninguém com boca para a contar

Escutei-a a uma fraga, granítica, disforme e fria
das inúmeras que emolduram o quadraçal
qual quistos implantados na face rugosa da terra
por onde corre, já velho e alquebrado
o meu benquisto rio Rabaçal

Quando encostei o ouvido ao ventre da monstra autista
na ilusão de descobrir em qual delas se escondia Narciso 
jovem beócio natural de Tespia 
filho da linda ninfa Liríope e do brando Zéfiro
vento suave e conciso
fruto da mais amorosa viração

Uma daquelas fragas arredondadas
acariciadas pelo rio cristalino 
teria que ser o divino Narciso
por quem toda a mulher bela se apaixonava
mas que enamorado de si para seu mal
a todas por igual desprezava

Até que a bela e agreste ninfa Eco
a quem também Narciso não sorria
vendo que ele desmerecia tamanha paixão
o transformou em pedra de verdade
sem coração, alma ou chama
e é por isso que hoje em dia
mais louvamos a avisada Ecologia
que a supérflua usura mundana

Na verdade não ouvi dizer a nenhuma fraga informe
que seria ela o próprio Narciso
jovem beócio natural de Tespia 
transformado em pedra pela ninfa fatal 
quando ruída de despeito e ciúme 
o viu apaixonado pela própria imagem
reflectida ao sol posto 
no lume do rosto do meu rio Rabaçal

Mas todas as fragas me segredaram 
enquanto se miravam nas águas mansas
por entre chilreios de passarinhos
e o tremeluzir da folhagem
que Deus colocou a semente da poesia
no empedernido coração do homem selvagem
cego pela vaidade e desejo de vingança
para que a figura da verdade e da esperança 
melhor se reflictam na superfície imaculada da alma
onde pela noite serena também resplandece a Lua
em romântica luminosidade e amorosos sinais
e o Sol em tardes de calma se vem banhar
impiedoso e ofuscante para os olhos mortais

Assim Deus deu aos homens o dom abençoado da poesia
acorde de todas as harmonias
capaz de extirpar a angústia e aplacar o ódio
suavizar a amargura e sufragar a desilusão
partilhar amores e alegrias
e melhor suportar os males da paixão

E quanto mais os políticos e os tecnocratas
partirem fragas e removerem montanhas
sem amor nem fantasia
mais dor e sofrimento haverá em cada dia
e mais a insana sociedade
se afastará da felicidade

Por isso há inúmeros poemas silenciados
transformados em fragas nas entranhas do quadraçal
salvaguardados de todo o mal
cujos acordes só eu ouço
e cujo conteúdo ninguém pressente
ainda que estejam ao alcance da vista
e dos ouvidos de toda a gente

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)