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segunda-feira, 10 de março de 2014

Sem título, sem tema, sem autor





Um poema poderá não ter título
nem ter autor

Poderá não ter tema
nem falar de dor
ou de amor

Até poderá falar de tudo
e de nada
sem nada dizer
nem ser dilema
sequer

Poderá brotar de um espírito angustiado
resultar duma observação quotidiana
duma paixão meridiana
calar-se no fundo de um coração
e por ali se perder
abortado

Poderá ser só um rosnar
um ranger de dentes
um uivar de lobo
um grito de socorro
um estado de afasia
um apontar de dedo à estrela polar
um exercício de razão
uma exclamação de alegria
uma casca de ovo

Um poema poderá ser um tão-somente um olhar
um sentir
um devir
um dever
um presente
um ausente
uma emoção
uma inocente lágrima de pranto
uma folha de papel em branco

Um poema, porém, terá que ter quem o leia
mesmo que não saiba ler
nem seja leitor

Terá que ser sentido por alguém
mesmo que não tenha metro nem rima
nem tenha sentido para ninguém
nem a ninguém mereça estima

Um poema terá que ter poesia

Amém

Vale de Salgueiro, sexta-feira, 20 de Abril de 2012
Henrique Pedro

segunda-feira, 3 de março de 2014

Meus poemas, minhas crias




Os meus poemas
são criaturas minhas
são as minhas crias

Que concebo e crio
por puro acto de criação
para minha recriação

Sem interferência de nada
nem de ninguém

Apenas na faculdade de criar
que o Criador
me deu
ainda que sempre as crie
para alguém

São crias vivas
aladas
feitas de ideias
de afectos
e de nadas

Que liberto ao vento
para que vivam no tempo
que é lá
que devem morar

Os meus poemas
são criaturas minhas
são de toda a gente

e de mais ninguém

domingo, 2 de março de 2014

Escrevendo na pedra do tempo



Há poetas que escrevem no vento
espalhando mundo fora
as taras e vaidades
que transportam por dentro

Outros escrevem suas mágoas
nas águas
esperando que o rio
despeje no mar
a sua tristeza

Os poetas maiores, porém
mesmo se já moram no Além
escrevem verdades
na pedra
do tempo

E afeiçoam o espaço
à força e beleza
do seu pensamento

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Mergulho fundo por mim a dentro





Nunca pretendi mudar
o mundo

Ouso ir mais além
ao mais fundo de mim

distender a vida
demover a morte
ainda assim

Vencer fantasmas do passado
quimeras do futuro
sobreviver às tempestades do cérebro
às catástrofes do coração
libertar-me da guerra e dos corifeus
da Terra

Acertar o meu tempo
pelo tempo da eternidade
e mergulhar

Lançar um laço de razão
um grito de angústia
a um ponto fixo no infinito
e com um pouco de sorte
enlaçar-me a Deus

Ainda que não saiba como nem quando
aonde irei parar
e em que tempo
do destino

Não há outro caminho
senão continuar
por mim a dentro



quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Porque sou o centro do Universo?



Já ao cair da tarde
levantou-se uma brisa suave
embalando a Natureza
e convidando plantas e animais
a adormecer

Depois ergueu-se no horizonte
a Lua cheia
resplandecente e grávida
em perseguição do Sol
enquanto este se escondia
sem se deixar apanhar
por não querer assumir
a paternidade

Então a noite caiu lentamente
a Lua abriu o regaço
e o lençol diáfano do Firmamento
polvilhou-se de estrelas cintilantes

Tudo isto eu vivo aqui na Terra
eternamente à espera
de adormecer
para poder um dia acordar
e poder então entender

porque sou o centro do Universo

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Coisas de dentro de ontem fora do tempo



Há locais
grandes
pequenos
de somenos
objectos
tempos
templos
simples ventos ou pensamentos
rostos
instantes
gritos
melodias
cheiros
sabores amargos
e doces
objectos insignificantes
risos e choros
diabruras e maldades
passos encobertos
e gestos rasgados de caridade
ou coragem
afagados pela aragem da lembrança
que passaram a entidades reais
mesmo sem peso nem medida
cinzeladas no área de imagens do cérebro
com tonalidades de afecto

São coisas de dentro de ontem fora do tempo
e da memória próxima
de dentro de mim
do meu passado
encontradas no mundo exterior
e a quem a proximidade da saudade
conferiu existência gravada naquilo sou
e já não fui ou serei
coisas de dentro de ontem fora do tempo
de entre o Alfa e o Ómega
dentro da moral e dos afectos
do Bem e do Mal


Como aquele copo de vinagre
que bebi
quando criança
e mal sabia ainda que coisa era vinho ou vinagre
que encontrei abandonado na cozinha
de  minha avó Alzira
e me soube a fel
mais amargo que a esponja com que martirizaram Cristo
agonizante na cruz
Foi um ápice de martírio o meu
um esgar de sorriso e dor
que por certo me lançou na vida dos sabores
nos reflexos por aí adiante
e me põe agora a olhar para trás
e quiçá poderá mesmo ser o garante da minha salvação

Ho!
E aquela imagem que retenho
de minha mãe a descer a escaleira da caridade
de almotolia na mão
para socorrer os mendigos andrajosos
que ousavam subir a escada da súplica
e no primeiro degrau da miséria
de lata pendurada ao pescoço
proferiam pai-nossos angustiados por alma de quem lá tem
pela santa que aí vinha
e era minha mãe que lá vinha de almotolia em riste
para que o seu triste irmão digno de dó
pudesse ter azeite para cozinhar a sua própria felicidade
e olear os pés gretados pelo pó do caminho
e reconfortar o estômago com batatas cozidas
em paga das orações doridas de verdade

E o lobo!
Recortado contra o luar de Janeiro
esfomeado
que saltava do colmo para o chão
e do chão para o colmo que cobria a manhosa cabana
armada na Casa do Seixo para guardar o meloal
capaz de me devorar o corpo e a alma
votado eu a defender o corpo
mais que a minha alma tão calma
de escopeta em riste
tão calma que me pus a pensar
se o mato serei eu o assassino
e será o lobo inimputável menino

E a indelével lembrança de cigano a fornicar cigana
na palha
de madrugada
quando eu criança
vencia a geada para ir mugir a vaca
e a desavergonhada sem se importar com nada
abria as pernas e o cigano a rugir
eu ficava parado
pasmado
sem ensejo de fugir
a olhar e a despertar
de desejo
e ficava a compreender então
a razão pela qual apenas era lícito naquele tempo
possuir mulheres virgens
embora não importasse quantas
e também porque razão as santas
o são!

E o cheiro ácido de África
que se entranhava nos corpos
e exalava suores
com sabores de sexo de guerra e de espera de paz!

Desde aqui…
parto deste meu canto
reduto de memória de muitos amores
desejos e sabores
aromas de alfazema
e de azeitona fermentada
armazenada na garagem com portas de castanho
em que meu pai guardava o velho Austin
e que fora outrora moagem
tocada pela  religiosidade e arte do velho moleiro Urbano

E calo as imagens de tantos amores
ázimos porque não tinham o fermento
do verdadeiro Amor
ainda que o amor seja ele qual for nunca deixa dor

Ante o destino frustrado
entristeço de tristeza amarga
calado
macambúzio
sorumbático
armado em vítima
esperando que alguém se apiede de mim
Talvez eu próprio
tenha compaixão de mim mesmo
e entre em contrição

Para concluir que Deus deverá ter corpo
olhos e ouvidos
pernas e braços
coração e cérebro
mas não é homem como eu
e que Cristo Jesus
apenas é Deus
a contra luz porque padeceu na Cruz

Mas se Deus tem corpo com olhos
ouvidos
pernas e braços
coração e cérebro como eu
então também eu poderei ser Deus
como Jesus a contra luz


in” Angústia, Razão e Nada”