A
noite passada nevou
na
Terra Quente Transmontana
e
por toda a Montanha
circundante
Há
neve por todo o lado!
Oh
que alegria tamanha!
Que
manhã surpreendente!
Encantada!
Rutilante!
E
tudo tão comovente!
Fico
mudo
contudo
calado
porque
sinto no ar gelado
o
frio da natureza humana
E
também cai neve em
mim…
também
me neva na alma
ainda
assim
Porque
me lembro dos desgraçados
dos
infelizes desabrigados
que
andam de pés ao léu
e
não têm como eu
cama
quente para dormir
um
lar onde se abrigar
do
frio, da fome e do sofrimento
do
desumano alvedrio
Uma
mão amiga sequer
para
os consolar
fazer
sonhar e sorrir
vencer
com alegria
o
triste descontentamento
A
neve é fofa e feérica
embora
fria
para
quem não sente o sopro gelado da
alma
o
tremor do corpo esfomeado
Poderá
até ser poética e bela
para
quem tiver um lar para se aquecer
e
agasalho para dela se abrigar
Mas
é patética para quem não a vê cair
ao
som de música suave
nem
tem comida e bebida
para
bem comer
melhor
beber
e
paz para usufruir
Ponho-me
a deambular
taciturno
mergulhando
na neblina de silêncio
que
cobre toda a Natureza
apenas
rasgada aqui e além
pelo
bater de asas de uma ave
fantasmagórica
que
foge de mim
como
se eu fora um fantasma diurno
Só
paro ao cair da tarde
numa
planície erma
gelada
o
meu coração ferve
a
minha imaginação arde
a
minha alma pasma
Tudo
em redor é branco e frio
a
própria atmosfera cinzenta
mal
se distingue da terra dormente
nevoenta
Especa
o negro mastim
atrás
de mim
de
orelhas espetadas que nem lobo
a
farejar algum gesto suspeito
talvez
um engodo
a
olhar-me fixamente
em
canina expressão de fidelidade
e de
angustiada interrogação
sobre
o que fazemos ali
de
verdade
na
tristeza da noite antecipada
Acendo
uma fogueira no descampado
aclara-se
a escuridão
alegra-se
o meu coração
derrete-se
a neve a toda volta
e o
espectáculo fica mais belo
e
quente
mais
digno de gente
De
pronto se aproximam os sem-abrigo
os
desamparados
os
mal-amados da Terra
refugiados
de guerra
novos,
velhos e crianças
humanos
de todas as cores
dores
e sofrimentos
de
diferentes andanças
Que
rodeiam o fogo, receosos
tímidos,
silenciosos
enquanto
eu gesticulando
vou
convidando
para
que não esmoreçam:
-Venham!
Venham! Se aqueçam!
Em
breve uma multidão enorme
estende
as mãos para as chamas
que
lhe lustram os rostos
sofridos
de frio, de fome e de
indiferença
Dou-lhes
de comer do fumeiro
alheiras,
linguiças e salpicões
os
biscoitos que encontro na dispensa
reparto
todo o pão da arca
sirvo
taças de vinho fino
para
que vençam a apatia
e
nos seus corações
se
instale a alegria
É
então que um velho de barbas brancas
já
mais alegre e jovial
falando
alto abre o coração:
-
Viva o nosso Pai Natal!
Não
permito que a turba replique
sou
eu que contraponho antes
que seja tarde
e se
instale o sonho:
- O
Pai Natal não existe!
É um logro!
Mas
o velho não desiste:
-
«Dizem que é o que há demais
nas
superfícies comercias
e
que vende de tudo
ceroulas,
sobretudos e postais»
Todos
riem estrondosamente!
Mas
de novo se instala a dúvida
e a
tristeza, naquela gente
mais
crente nas chamas crepitantes
que
em quimeras distantes
Mas
eis que de repente uma
criança
magra
e macilenta
faz
ouvir a sua voz inocente
e
apontando-me o seu alvo dedinho
no
qual a fogueira reflecte luz
proclama,
pura e fagueira:
-
«Se não és o Pai Natal…
então és o Menino Jesus!»
E
eu…
apanhado
de surpresa
envergonhado
e comovido com
tanta pureza
respondo
irreflectido:
-
«Também não sou o Deus Menino!
Dizem
até que foi raptado do Presépio
que
anda por aí perdido
nu
e
que Nossa Senhora e São José
andam
aflitos à Sua procura!
Acaso
não serás tu?»
E a
criancinha modelar
de
voz tão suave e condoída
que
mais parecia ser ela, sim, o meigo Jesus
responde
baixinho, a contraluz:
-
Mas eu não tenho prendas para dar!
É
nesta altura que sua mãe
uma
mulher jovem e bela
apesar
de tamanha miséria
exclama
erguendo o filho no ar:
-
«És sim! Tu és o Menino Jesus
e
tens o Sol para nos dar»
Naquele
mesmo instante abre-se o astro rei
flagrante
de alegria, calor e amor
a
Natureza alumia-se com todo o esplendor
e a
fria neve acende-se de verdade
feérica
e linda pelo reflexo da luz solar
e
pelo calor da mais pura solidariedade
E
por toda a Terra Quente Transmontana
e
pela circundante Montanha
ecoa
um coro de anjos desabrigados:
-
“Gloria in excelsis Deo…
e
paz na Terra aos homens por Ele amados”
in Anamnesis (1.ª
Edição: Janeiro de 2016)