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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Caldo de castanhas com figos secos

 


Caldo de castanhas com figos secos

Em tempos que já lá vão, muito embora permaneçam bem vivos na memória de muitos, a romaria da Senhora da Saúde de Valpaços era o ponto de encontro primordial das gentes da Terra Quente e da Montanha.

 Sendo que os fregueses das aldeias do lado da Terra Quente do lendário Rabaçal, tratados por “figacheiros” pelos da Montanha, se referiam a estes seus vizinhos do lado de lá do rio como os “montanheses”.

O conceito de Montanha era assim preferido ao de Terra Fria, talvez porque o relevo sobranceiro não alcançasse as alturas das terras de Bragança e Miranda, não deixando, por isso, de ser marcante a diferenciação climática, edáfica e agrária, consumada em distintas idiossincrasias.

 Ainda assim, as terras mais altas de onde o Rabaçal e o Tuela descem, lá das bandas de Vinhais, mereciam o epíteto de “Serra”, simplesmente.

Na Terra Quente, genericamente xistosa, cultivava-se, antes do abastardamento agrário provocado pela CEE, a oliveira, o trigo, o vinho e o figo, enquanto na Montanha, marcadamente granítica, predominavam a castanha, a batata, o centeio e a pecuária.

De tudo isto resultavam fluxos e refluxos afectivos, culturais e comerciais relevantes: trocava-se mel por azeite, comerciava-se batata, castanha, vinho e concertavam-se casamentos.

Assim era que, consoante a época, os montanheses amimavam os seus amigos figacheiros com “magustos de castanhas” logo que os ouriços as davam à luz e os figacheiros os seus amigos montanheses com cestas de figos e uvas acabadinhos de amadurar.

Mas era na congregante romaria valpacense que mutuamente se privilegiavam com gracejos, abraços e beijos, e amiúde se encetavam derriços e consumavam noivados. Elucidativa é a cantiga, verdadeiro ícone do folclore regional, que rezava assim:

Oh minha mãe deixe, deixe/ Oh minha mãe “deixemir” (deixe-me-ir) / Ao arraial a Valpaços/ Que eu vou e torno a vir.

Manda a verdade que se diga, porém, que não raras vezes a alegria genuína dos arraiais era perturbada por tumultos de índole bairrista motivados, por exemplo, pela disputa das fragas do recinto festivo em que os romeiros das diferentes aldeias se assentavam para merendar ou simplesmente descansar e mais comodamente assistir ao deslumbrante fogo-de-artifício.

 Sem esquecer que no tempo das segadas, ranchos de montanheses organizados em camaradas, desciam à Terra Quente para desembaraçar o aperto da ceifa dos trigais e, inversamente, os da Terra Quente subiam à Montanha para agilizar ceifa do centeio.

Segadores que, como é óbvio, eram portadores de todo o tipo de mensagens que muito contribuíam para o mútuo relacionamento dos povoados, por regra acantoados no seu isolamento peculiar.

Daí que quando os da Terra Quente se cruzavam com os da Montanha era quase certo ouvir-se esta amistosa chalaça: “Montanhês da montanha, compõe três com uma castanha!”. Sendo que o dito recíproco não era menos gozoso: “ Figacheiro da Terra Quente, figos secos e aguardente!”.

Isto acontecia em tempos de grande austeridade, quando os transmontanos subsistiam com o que tiravam da terra com muito suor e à força de braços, de bois e muares.

Quando se ceava e seroava à lareira e à luz da candeia e apenas se abandonava o lar para cumprir o serviço militar ou procurar melhor vida além-mar.

Tempo em que tribos de ciganos deambulavam entre a Terra Quente e a Montanha com poiso assegurado em palheiros e currais, sustentados pela generosidade cristã dos aldeanos e do que, à sorrelfa, rapinavam das hortas que marginavam os caminhos.

Justiça lhes seja feita, porém. Também compravam e vendiam cavalgaduras nas feiras sendo que os animais de unha rachada estavam fora do seu alcance. Eventualmente também exerciam os misteres de cesteiro e latoeiro e as mulheres liam a sina, mas só excepcionalmente deitavam a mão à enxada ou à charrua.

Posto isto, vem a propósito lembrar o abençoado caldo de castanhas com figos secos, ou do Dia dos Fiéis Defuntos, que dizem ter sido inventado por Benigna Bilhó, montanhesa de Monte de Arcas, terra farta de batata e castanha, que casara com um figacheiro de Vale de Telhas, pelo que, enquanto o marido fora vivo, nunca em casa lhe faltaram chicharros e figos secos.

Receita supimpa a de Benigna, que punha amarfinados bilhós a nadar no suculento puré de castanha, com dois ou três figos secos à revelia, em comunhão com olhos de couve, feijão branco e os afamados chicharros, que nunca voltam a cara uns para os outros, o que fundamenta este outro dito popular: “é mau como os chicharros!”. Tudo temperado com o melhor azeite da Terra Quente, quanto bonde, claro está.

Benigna Bilhó, já velhinha de provecta idade morava só, arrastando-se como podia pelas ruas da aldeia e pela pequena horta de ao pé da porta, que não era tudo que lhe restava, porque dores, doenças e lamúrias as tinha para dar e vender:

- Oh, Nossa Senhora não me levar! Oh, Nossa Senhora não me levar! Oh, Nossa Senhora não me levar!- Repetia, vezes sem conta, por tudo e por nada.

Até que um dia, teve ainda ela o ensejo de o contar, Nossa Senhora lhe apareceu, predisposta a fazer-lhe a vontade:

- Prepara-te, Benigna, que tenho lugar reservado para ti, lá no Céu. – Ter-lhe-á dito a Divina Mãe.

Benigna estremeceu. Caiu-lhe a alma aos pés. De pronto a apanhou e a recolocou no seu lugar. Recomposta ripostou:

- Ó minha Nossa Senhora! Deixai-me, ao menos, viver até ao Natal que está à porta, para me poder consolar, pela última vez e ganhar forças para a viagem, com o caldinho de castanhas de que tanto gosto. Prometo que Vo-lo-dou a provar.

Terá anuído a Divina Mãe à piedosa petição de Benigna. Também pelo prometido caldo de castanhas com figos secos, claro está. E porque não?!

Mas não por muito tempo mais, porém, porque quando ainda os ouriços não haviam parado de parir, a jovem Josefa, zeladora da capela de Santo Amaro, notando a falta de Benigna na missa do Dia dos Fiéis Defuntos, precisamente, foi encontrá-la morta, tombada junto borralho onde ainda fumegava uma panela de caldo de castanhas com figos secos.

 Sobre uma mesa improvisada, contou Josefa, estavam duas malgas vazias, sendo que uma só poderia ser a que Nossa Senhora utilizou.

De pronto se levantou uma lenda que conta que a Mãe do Céu, depois de ter provado o caldo de castanhas com figos secos cá na Terra, pôs Benigna Bilhó a cozinhá-lo para toda a corte celestial, assim o convertendo num verdadeiro manjar dos céus.

Tanto assim é que, no dizer dos mais espirituosos figacheiros, nos dias em que é servido caldo tão energético lá nas alturas, se ouve trovoar por toda a Montanha.

Ripostam os montanheses, contrapondo, dizendo que as trovoadas são dos figos secos e não das castanhas.

Henrique António Pedro in " Quem me dera cá o Tempo" -Outubro 2020