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sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Aos derradeiros guerreiros do Império

 


O  Império derradeiro da História

Que agora se esvai na memória

Os imolou

Sem lamento

 

E com eles se sepultou

No ataúde comum

Do esquecimento

 

Em lugar nenhum

 

Negros, brancos, amarelos

Sacrificados agnelos

Morreram de pé

Nas matas de Moçambique e de Angola

Nas olas da Guiné

Trespassados de balas

 

E por lá ficaram defuntos

Abandonados

Esquecidos

Insepultos

 

Que evangelho ou sortilégio

Que adulterada verdade

Que insana vontade

Que espúrio desígnio

Que místico saltério

Lhes traçou o destino

E os abandonou assim?

 

Sem choros

Ilusões

Raivas

Risos

Ou ranger de dentes

 

Apenas os corações penitentes

Distantes

De quem os amava

Pais, irmãos, amigos, amantes

A bater frementes

 

Ceifados na flor da idade

Viveram com frenesim

A sua trágica mocidade

Os derradeiros guerreiros

Do Ultimo Império da História

 

A pátria eterna os engrandece

E sente

A nação presente os desmerece

E esquece

 

A sua vida é uma vitória!

 Inglória!

Ainda assim


 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 26 de Março de 2009

Henrique António 


 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O último grito de Cristo na Cruz

 


O Seu último grito

Divino lamento

Não o soltou Cristo

Crucificado

No Calvário

Na Jerusalém daquele tempo

 

Ainda há pouco eu o ouvi

Muito bem

Em frenesi

Quando angustiado com o sofrimento

Que assola o mundo inteiro

Subia solitário a íngreme ladeira

Do Senhor dos Aflitos de Vale de Salgueiro

 

E desalentado com tanta canseira

Lhe perguntei:

- «Será preciso, Senhor que sofras Tu e nós muito mais?!

   Que soframos nós e Vós ainda mais?!»

 

De pronto o Crucificado me respondeu

Tão angustiado como eu:

- «Não, não! Eu sofro por vós

  Vós só precisais de amar mais

   e mais

   e mais!»

 

Vale de Salgueiro, 7 de Novembro de 2008 

in Angústia, Razão e Nada (Editora Temas Originais-2009)


sábado, 23 de janeiro de 2021

A Santa Liberdade

 


(No dia mundial da Liberdade)

 

Liberdades há muitas.

E de muita cor

Muitas são mantas de retalho

Que não dão qualquer agasalho

E na verdade

Raras rimam com felicidade

 

 

Santas?! Nem tantas!

Duvido até que as haja

 

A melhor de todas, para mim, ainda assim

Não é dada por um qualquer ditador.

 

Prefiro a minha, porém

Eu que sou livre como o pardal pequenino

Que faz ninho no meu beiral

A lembrar-me que fui livre, sim

Quando era menino

Sem saber o que era prazer

E dor

Mal e o bem

 

Quando o mundo era tão pequenino

Que eu nem o via

Sequer dele me apercebia

Porque liberto sonhava

No céu aberto de amor

No seio de minha mãe.

 

Quando acabado de nascer

Ela me embalava

No berço do Criador

Sem eu me aperceber

 

Vale de Salgueiro, 23 de janeiro de 2021

Henrique António Pedro



quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Quando a minha alma se ausenta para viajar

 


Quando a minha alma se ausenta para viajar

Há momentos em que nada sinto a doer
nenhuma espécie de dor

nem frio nem calor
nenhum desejo
nenhum motivo de prazer
nenhuma angústia
nenhuma ansiedade

nem antevejo nenhuma contrariedade


Momentos em que a minha proverbial amargura
anda fora

pela rua
e eu desisto de encontrar a verdade

Momentos em que a minha indiferença é tamanha

que me chega a parecer estranha


Que será que aconteceu?
Que estará para acontecer?

Não sei nem quero saber

 

A envelhecer ando desde que nasci
morrer ainda não morri
e a vida até me sorri

Talvez seja isso mesmo

isso tudo

nada de isso
ou não seja coisa nenhuma

Talvez seja só espuma de poesia
nem tristeza nem alegria
pura fantasia
sem os habituais dilemas

Talvez seja só a minha alma

que se ausenta para viajar
mas deixa a consciência em “stand by”

E como nada entra ou sai

do coração
a razão põe-se a regurgitar poemas

Vale de Salgueiro, sexta-feira, 7 de Maio de 2010

Henrique Pedro

In “Introdução à Eternidade”

 

Quando l’anima mia si assenta per viaggiare

(Tradução para italiano por Manuela Romano)

 

Ci son momenti in cui nulla mi duole

nessuna specie di dolore

né freddo né calore

nessun desiderio

nessun motivo di piacere

nessuna angustia

nessuna ansietà

né prevedo nessuna contrarietà

 

Momenti in cui la mia proverbiale amarezza

se ne va

per la via

e io rinuncio a trovare la verità

 

Momenti in cui la mia indifferenza è così enorme

che giunge ad apparirmi abnorme 

 

Che mai sarà accaduto?

Che starà per accadere?

Non so né lo voglio sapere

 

Ad invecchiare mi avvio da che son nato

morire ancora non son morto

e la vita fin qui mi ha sorriso

 

Sarà forse proprio questo

tutto questo

niente di questo

o non è niente del tutto

 

Sarà forse solo schiuma di poesia

né tristezza né allegria 

pura fantasia

senza i soliti dilemmi

 

Sarà forse solo la mia anima

che si assenta per viaggiare

ma lascia la coscienza in “stand by”

 

E siccome nulla entra o esce

dal cuore

la ragione si mette a riversar poemi

 


sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O burro do Pucareiro

 

O burro do Pucareiro

Na sábia prosápia de João Feliz, respeitado pensador, poeta e moralista popular, uma coisa era o Pucareiro outra era o burro do Pucareiro.

 Melhor dizendo, dizia João Feliz:

- Burro é o burro que é burro verdadeiro e não é o Pucareiro que é burro. Vamos lá a ver se nos entendemos!

Ainda que tão burro fosse o burro como o dono do burro, no dizer da Aida Malagueta que não podia com o Pucareiro, nem ele com ela, por uma questão antiga, coisas de amor e de ódio, ao que se dizia, já com tempo de serem esquecidas mas que cada dia mais se acirravam.

 Tudo começara anos atrás quando o Pucareiro na tradicional Serrada da Velha, despeitado com a Malagueta por razões que só eles saberão, se deu ao desplante de pôr a boca no embude, no alto da Canadinha sobranceiro à aldeia, noite adentro, e gritar o que todo o povo ouviu:

-Deus te perdoe Aidinha, Deus te queira perdoar, comigo tu já não te casas, para tia hás-de ficar.

Ainda a semana passada quando passavam um pelo outro, nos Ervançais, indo a Aida apanhar um manhuço de grelos para a ceia e vindo o Pucareiro de Miradezes montado no seu inseparável jumento, sentado entre uma caixa de sardinha e outra de chicharro, se ouviu um traque que levantou poeira e ribombou pelas redondezas qual maléfico polvorinho, não ficando claro, contudo, se foi o burro do Pucareiro se o Pucareiro ele próprio quem tal fenómeno produziu.

 Momentos antes o Pucareiro até saudara quem mais seguia no caminho, levando a mão ao chapéu e dizendo:

- Bons dias nos “deia” Deus.

Respostas, se as houve, foram abafadas pela inusitada ventosidade.

A Malagueta é que não achou graça nenhuma por desconfiar que se tratou de um acinte diabólico a ela dirigido, tivesse vindo do burro ou do dono porque era mais que sabido que estavam feitos um com o outro e ela bem se apercebeu que o Pucareiro dera, momentos antes, as palmadinhas do costume no pescoço da montada.

 Ostensivamente, por isso mesmo, não só não retribui os bons dias como respondeu à suposta afronta, alto e bom som, fazendo figas, tapando a cara como o lenço e voltando a cabeça para o lado:

- Prá carga e prá a besta que o larga! Tarrenego satanás!

A verdade é que o Pucareiro, tirando estas minudências até era um sujeito respeitado, respeitador e admirado pelas suas lendárias e divertidas patranhas. Histórias do arco-da-velha que corriam de boca em boca como sendo dele, embora muitas fossem de terceiros.

 As mais fantásticas e hilariantes teriam sido mesmo protagonizadas pelo visado, o sardinheiro Hilário Modesto, mais conhecido pelo Pucareiro, que delas tirava muita fama e pouco proveito.

Em tempos ter-se-á dedicado à venda de púcaros e caçoulos. Daí o epíteto de Pucareiro de que não mais se livrou. Mas, porque se dera conta, ao que dizem, de que o negócio dos púcaros só dava cacos e vendo como a Júlia Pardala progredia na vida, apesar de apenas viver da venda porta a porta de sardinha e afins, tanto que até já comprara o olival da Roteia, ao Tancredo, também o Pucareiro decidiu dependurar os púcaros e botar-se à venda ambulante de peixe. Deu-se bem o negócio, pelos vistos, porque não mais o largou.

Num abrir e fechar de olhos arranjou vasta clientela desde Miradeses às Aguieiras, o que não admira dada a fama que transportava misturada com a sardinha e o chicharro. Ir mais além já a tanto se não “astrevia” porque a mor das vezes se via obrigado a pernoitar por lá e no Verão o peixe depressa botava cheiro a fénico o que levava a que os clientes lhe torcessem o nariz.

Carregava o jumento em Rio Tordo, com duas ou três caixas de sardinha, uma ou duas de chicharro, trazidas pela camioneta da carreia que de Mirandela seguia para Valpaços e Chaves e ala por esses caminhos fora, vendendo aqui uma dúzia, além um quarteirão, até esgotar a carga.

 Jumento que educara como um filho, que tratava como um irmão e a quem queria mais que à mulher, como o próprio dizia. Jumento que ele mesmo baptizara de Albino sem o menor propósito sacrílego. Tanto que sempre que passavam defronte da igreja paroquial, o animal genuflectia uma das patas cerimoniosamente e o humano persignava-se, convicto, sem se apear. Uma cerimónia tocante para os mais piedosos.

Conta-se que um dia, porque teve que deixar o Albino na loja por conselho do ferrador dado que o animal tomara uma congestão de uvas e figos verdes, viu-se forçado a pedir emprestada a mula da Rosalina.

Lá está, observaria João Feliz se acaso isto ouvisse:

- Viu-se forçado a pedir a mula à Rosalina e não a mula da Rosalina. Mula que, por acaso, se chama Ruça e não Rosalina, para que não subsistam dúvidas.

Certo é que a mula da Rosalina, perdão, a mula que é da Rosalina, no regresso se recusou a entrar na barca, em Miradezes. Cena que não fizera à ida por ainda ser hora de lusco-fusco, por certo. Agora já o sol nascente tremeluzia no espelho de água do Rabaçal, onde também se refectiam as sombras movediças dos amieiros que a brisa matinal agitava. Talvez fossem elas a amedrontar o animal.

Apeou-se o Pucareiro, entrou na barca determinado e pôs-se a puxar a mula pela rédea, com toda a força que tinha. Mas a quadrúpede, teimosa que nem uma mula já se vê, com as quatro patas fincadas na margem lamacenta e com o focinho a soprar a água, recusava-se terminantemente a embarcar.

Instalou-se um olímpico tira teimas entre o Pucareiro e a mula da Rosalina, a mula que era da Rosalina, perdão, até que o sardinheiro, depois de muito puxar, teve este surpreendente lapsus linguae:

- Mais força tens mas mais mula do que eu não és!

 Posto isto, o sardinheiro dá um derradeiro puxão,  solta a rédea de um golpe, a mula cai de cangalhas na água, a carga solta-se e o peixe pôs-se de imediato a boiar rio a baixo, ao sabor da corrente e também teria nadado rio a cima, certamente, se acaso estivesse vivo.

 Recomposta, a mula da Rosalina, perdão a mula que é da Rosalia, depois que, a custo, conseguiu sair da água, desatou numa correria louca, montes arriba, só parando em Valverde.

Quanto às sardinhas e aos carapaus não tardaram a galgar o açude para só serem pescados à rede lá mais abaixo, por pescadores de Lilela, espantados com tais peixes a boiar por entre bogas e barbos. O próprio guarda-rios coçou o queixo embasbacado sem saber que lei aplicar perante tão rara e ilícita pescaria.

Nada disto diz, porém, do inimaginável Pucareiro e do seu fabuloso jumento, o Albino, que ele educara como um filho, que tratava como um irmão e a quem queria mais que à mulher.

- Lá se me foi o negócio rio abaixo. O Albino nunca me teria causado desgraça tamanha!- Desabafava sempre que o episódio vinha a propósito duma prosa afim.

O Albino era um jumento mágico que tinha, entre outras comprovadas faculdades, a de cagar libras e falar com o dono por acenos de cabeça e ornejos codificados.

Na secura de Verão, que é quando a sede mais aperta, ou na frialdade do Inverno, quando mais se necessita de um bom tónico para aquecer, parava o Pucareiro à porta da taberna do Mimoso, soberbamente montado e sem se apear e nada dizer, dava um piparote nas orelhas do Albino que de imediato soltava dois estridentes zurros, correspondente a dois copos de três.

Não tardava o taberneiro a vir à porta trazendo dois enormes púcaros de vinho. O Pucareiro antes mesmo de emborcar o dele de uma assentada, enfiava o do Albino pela goela respectiva que para tanto já se havia posto a jeito, levantando o focinho, mostrando os dentes e escancarando a bocarra, como se sorrisse de contentamento. Ao prolongado ah… do dono correspondia o Albino com um equivalente ornejo de igual satisfação.

Cena trivial, recorrente que merecia o comentário mordaz da Aida quando, por mero acaso, ou talvez nem tanto, assistia de passagem, invariavelmente tapando a cara com uma ponta do lenço escandalizada com o que via:

-Tão borracho é o dono como o burro. Mal-empregado vinho!

Também a lendária faculdade do burro do Pucareiro, perdão, do jumento Albino, cagar libras era publicamente comprovada. Por vezes as moedas saíam mesmo embrulhadas em bolas de palha e cevada moída. E tão grande era o encanto que assistentes mais crédulos logo se propunham comprar o Albino ao dono. Negócio que o Pucareiro invariavelmente declinava, porém, dizendo que era uma virtude que só entre ele e o Albino funcionava, porque havia palavras e gestos que não se ensinavam facilmente. Homem honesto o Pucareiro, como se vê.

Vamos aos factos. Reunida suficiente assistência, o Pucareiro começava por fazer as festas da praxe na cabeça do Albino e segredava-lhe ao ouvido algo que ele bem entendia porque retorquia com um ornejo aquiescente.

O sardinheiro dava uma volta em torno do partenaire, mostrava as mãos à assistência, arregaçava levemente as mangas, aproximava-se da traseira do animal, levantava-lhe levemente o rabo e eis que, milagrosamente, se viam duas ou três moedas doiradas surgir entre os dedos do festejado putriqueiro, quando não se ouviam tilintar nas pedras da calçada. Nem mais! Sem truques nem magias.

Dizia a Alzira Xedra que aquilo era bruxedo, coisas que o Pucareiro aprendera no Livro de São Cipriano. Ao que contrapunha a inevitável Aida Malagueta:

- Olhe que as libras são sempre a mesmas, ti Alzira! E sabe-se lá onde o Pucareiro as foi arranjar! Encontrou-as pori, no buraco “dalguma” parede. Dá-as a engolir ao burro na véspera, embrulhadas na palha e na cevada, depois é só apará-las no cú do animal.

 Enfim! Mistério entusiasmante, como se vê.

Certo e sabido é que o inefável sardinheiro, quando estava afim, também tirava libras da barriga de um ou outro chicharro. Chegou a vender caixas de peixe de uma assentada a um só freguês mas quanto a libras, nada. Nem por isso a magia caiu em descredito embora também se constasse que um dia alguém, porque se sentisse intrujado, esteve, vai-não-vai, para chegar a roupa ao pelo ao criativo sardinheiro que, diga-se a propósito, era um fraca roupeta.

Mais mirabolante ainda assim, terá sido a cena rocambolesca em que o jumento Albino alertou o dono para um roubo de sardinhas. Feito lendário reportado como tendo acontecido em diferentes aldeias, a gosto do narrador que a conta, sendo certo que nalguma aconteceu.

Terá sido num dia de Inverno, que é quando escurece cedo. Viu-se o Pucareiro constrangido a pedir pernoita num casal isolado, à beira do caminho, sem que tivesse muita confiança com os moradores.

Acomodado o Albino, aliviado da carga e abonado com magra gabela de palha, o Pucareiro subiu para o sobrado onde lhe fora destinado catre, fora das vistas do companheiro e das caixas de peixe. Ainda argumentou que dormia bem no monte de palha ao lado do Albino mas o hospedeiro insistiu que não senhor que era mais comodo o sobrado. Alumiou-lhe o caminho com a candeia, atirou-lhe uma pesada manta e retirou-se, deixando tudo mergulhado na escuridão.

Manhã cedo, mal a alvorada rompeu, tratou o Pucareiro de arrear a montada. Depois de instalar a carga e quando já se preparava para pagar a pernoita em género, deu-se conta de que durante a noite alguém mexera numa das caixas.

 Assistiam à cena, impávidos, o dono da casa e a mulher que tão generosamente o haviam acoitado. Não era homem, o Pucareiro, porém, para entrar em confronto aberto por tão baixo preço. Era adepto, isso sim, de uma mais fina e indirecta estratégia.

Enfiou calmamente a cabeçada na cabeça do Albino e pisou discretamente a rédea por forma a estica-la e a fazer abanar a cabeça do jumento concertadamente com diálogo que estabeleceu com o fiel companheiro:

- Tu que me dizes?! Tem juízo! E quantas sardinhas roubaram?!

Doze vezes o Albino abanou a cabeça, por força do pé do Pucareiro que pisava a rédea e contava em voz alta para que os circunstantes ouvissem.

- Uma dúzia? Tens a certeza?

Confirmou o burro com mais uma abanadela da cabeça por força de novo pisar na rédea.

O casal hospedeiro estava boquiaberto e embaraçado por ter sido descoberto e logo por um burro. Não se conteve a mulher que, comprometida, confirmou o roubo, regateando:

-Olhe que o seu burro é aldrabão, ti Pucareiro. Eu só tirei meia dúzia! Três pra mim e outras três pró meu Zé, como paga da pensão.

- Pois fique sabendo, dona, que o Albino nunca me mentiu.- Retorquiu o sardinheiro.

E, dirigindo-se ao Albino, rematou:

-Fica então bem paga a pensão, companheiro! Concordas?

Claro que o Albino abanou uma última vez a cabeça por força do pé que lhe pisava a rédea. Boquiabertos, os hospedeiros, nem coragem tiveram para reclamar da conta.

Uma semana depois já a história era conhecida por todas as aldeias em redor, contada com muito gozo e ironia, se bem que quem a relatou a primeira vez o tenha feito de forma mais humilde e discreta.

Ainda hoje, quando alguém, em circunstância de amena cavaqueira, se sai com alguma história deste género, surpreendente, sempre há um ouvinte que exclama:

- Bô! Essa é como a do burro do Pucareiro.

 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

QUANDO PIA O PERLUÍS

 



QUANDO PIA O PERLUÍS

No mês de Março marçagão, em que de manhã é inverno e à tarde é verão, escurece e começa a gear logo que o sol se esconde atrás do picoto da Santa Comba.

 Por três vezes o padre António tocou às Trindades, com três badaladas intervaladas a cada três, puxando com perícia a corda que tinha uma ponta atada na varanda da casa paroquial e a outra no badalo do sino menor do campanário. Os mais piedosos recolheram-se em breve oração e as crianças pararam de jogar ao rou-rou e à trinca-cevada e correram para o colo das mães. Entrementes galinhas, patos e perus haviam tomado a iniciativa de se ajeitar nos poleiros e os recos nos cortelhos.

Os humanos que desde o nascer do sol labutaram nas hortas e terreiros, depois que acomodaram os bois e os muares nas lojas bem aconchegadas de palha, feno e cevada não tardariam a também eles recolher a penates, sôfregos da malga de caldo, introito da ceia substancial que o mais certo era constar de alheiras douradas na brasa, acompanhadas de grelos, chícharros e batatas cozidas.

 Nas lareiras crepitavam fogueiras calorosas, que as noites ainda eram frias, apesar de a Primavera já ter sido inaugurada pelas primeiras andorinhas, cuja chegada o velho Albino Capador dias antes anunciara aos garotos que se dirigiam à escola:

-Psit, psit…!- Chamou. Pararam para escutá-lo.

Ainda antes de dizer o que pretendia, com o indicador e o médio da mão direita voltada de costas, apertou delicadamente o nariz de um deles e de seguida sacudiu-a bruscamente, batendo os dedos um no outro de forma a produzir um breve estalo, simulando libertar moncas inexistentes. Só depois, sentenciou, com ar sério:

- Rapazes. As andorinhas que mandei vir estão a chegar. É o Gil Eanes que as traz.

Este Gil Eanes a que Albino Capador se referia era o conhecido navio hospital que apoiava a frota bacalhoeira lá no mar do Norte e que todos conheciam, ou não fosse o bacalhau um emblema gastronómico nacional. Ainda assim, Artur, o mais ladino, porque sabia que as andorinhas vinham do sul e o bacalhau do norte, questionou:

-Ó ti Albino, então as andorinhas vêm no mesmo barco do bacalhau?

Sem se aperceber da subtileza da pergunta, Albino Capador, de pronto retorquiu:

- Vêm pousadas no mastro maior, lado a lado com os tralhões e as folecras.

Os rapazes sorriram, aparentemente convencidos. Ainda assim, espirituoso, o Artur, ripostou:

- Um dia destes aparece por aí um andorinho com uma folha de bacalhau no bico, carago!

Entretanto apareceu a autoridade cívica lá da terra, Valentim Fraga, o regedor, de seitoura na mão e com um molho de ferrã às costas e que ao ver os rapazes exclamou:

-Olha que três para umas malápias. – E, sem mais – Ala prá escola que se faz tarde!

Foi quanto bastou para que os jovens retomassem silenciosamente o caminho, rua acima. Albino Capador, a quem o peso dos anos já fazia curvar as costas e ranger os joelhos, recebera tal epíteto por ser capador de verdade, de porcas, em cujo mister se deslocava pelas aldeias vizinhas montado num cavalo imponente, fazendo-se anunciar com o som inconfundível do seu assobio peculiar.

Este Albino Capador, para lá do mais era poeta popular, um criativo de génio conhecido pelas suas hilariantes mas inofensivas facécias, designadamente por organizar concursos de assobio a bois e bestas no bebedouro. Um dia convenceu um jovem criado de servir, chamado Normando, a cantar o conhecido fado de Coimbra, o Passarinho da Ribeira, com a promessa de lhe arranjar um contrato para cantar na Emissora Nacional. Houvesse televisão naquele tempo e o contrato seria para a televisão, certamente. E não é que o moço se quis despedir do amo a quem servia?!

Este episódio, porém, como tantos outros, pertencem ao mítico historial do folgazão Albino. O anúncio da chegada das andorinhas aconteceu a semana passada. Hoje, esta noite melhor dizendo, vive-se um outro acontecimento surreal nesta aldeia nordestina alvoroçada pelo incrível capador de recas, quando a freguesia já se encontrava nos braços de Hipnos e de sei filho Morfeu.

O tiro foi fragoroso indiciando excesso de pólvora. Da espingarda, velha escopeta de um só cão de pederneira, emanou densa fumarada depois que intenso clarão rasgou a noite, relâmpago testemunhado na distante Veiga de Lila, já na falda norte da serra de Santa Comba, enquanto o associado trovão ecoou por montes e vales sobressaltando os vizinhos de Cabanelas, Vale Telhas e Mirandeses e até os de Valverde e Possacos, já do lado de lá do rio Rabaçal.

A primeira a reagir foi a viúva Carminda, sexagenária desempenada e fresca de carnes, que vivia só desde que o marido morrera e as filhas desandaram. Abriu o postigo que dava para o largo do Eirol e pôs-se a gritar, arrebatada:

- Acudam que mataram o meu bem-amado Luís Lafrau. – Repetiu este dramático apelo por duas ou três vezes, dando assim a saber ao mundo, sem de tal se aperceber, que tinha como amor secreto o improvável contrabandista e batoteiro. Paixão assolapada, platónica, nunca antes publicamente declarada, nem sequer com um simples beijo em segredo carimbada. Por mais que Luís Lafrau se oferecesse para a esconjurar quando lhe batia à porta, no regresso do seu esconso desporto, a altas horas da noite:

- Carminda. Tu trazes o diabo no corpo. Olha que eu faço o trabalho melhor que o padre.

Mesmo assim, Carminda nunca cedeu. Cuidava de só abrir o postigo depois de verificar que a chave da porta tinha as duas voltas completas e de firmar melhor a grossa tranca de madeira. E ripostava:

-Vai-te embora excomungado que eu não quero nada, nem contigo nem com o padre.

De seguida metia-se na cama a cismar e a esvair-se em desejos. Era um amor extremado, obsessivo, contraditório, que amalgamava erotismo, admiração, repulsa e temor. Talvez por ter consciência de que Luís, que morava sozinho e não gostava de ninguém a não ser dele próprio, era um libertino viciado no jogo, que se tocava do vinho paradoxalmente quando ganhava, dando assim de beber à glória e não à dor e se abstinha na desolação da derrota. Era um amor que coagia Carminda a manter-se acordada, à lareira mortiça, até persentir que Luís passava à sua porta. E tão louca era a paixão que uma noite a induziu a ir esperar o seu pouco recomendável apaixonado ao caminho, entocada numa dobra do fraguedo da Portela, majestoso maciço granítico, a dois passos da aldeia e no qual se dizia que aparecia o diabo. Mas Carminda nada temia, a não ser esse seu amor espúrio. Adormeceu e acordou, estremunhada, quando se apercebeu de uma figura que abanava levemente, agigantada pela sombra do luar. Seria o demónio?! Esfregou os olhos, focou a vista e apurou o ouvido. Afinal o belzebu era Luís Lafrau que parado no meio do caminho urinava ali a dois passos dela. Ocultou-se o melhor que pôde tendo o cuidado de fazer o menor ruído. Prestou atenção ao que ele dizia, quase gritando:

- Ó diabo, meu grande filho da puta! Dizem que apareces por aqui. Aparece lá que eu quero partir-te os cornos com este pau.- E brandia o varapau em direcção ao rochedo.

Inesperadamente uma pequena pedra rolou aos pés de Carminda quando esta se encolheu ainda mais. Luís apercebeu-se, eriçou-se, apurou os sentidos e segredou: - Bá! Algum coelho, porí.

Optou por apertar a carcela e retomar a marcha, cambaleando visivelmente e ensaiando a cantilena costumeira já que vinha ganhador. Carminda que se mantivera quieta, encafuada numa frincha, envolta no xaile negro e no lenço que lhe cobria a cabeça, também se predispôs a sair da toca para se pôr a salvo. Esbarou ruidosamente, porém, chamando a atenção de Luís que especou de pronto, sem saber se fugir, se enfrentar. Decidiu-se por avançar sobre a aparição que procurava dissimular-se a todo o custo. Com espanto, apercebeu-se que era Carminda. Exclamou:

-Ai és tu minha bruxa!- Avançou para ela, mas acabou por se estatelar na agueira que ladeava o caminho ao dar um passo mais largo. E enquanto Luís se levanta e cai de novo, Carminda desapareceu, lesta, na sombra da noite. Quando o apaixonado, daí a pouco, lhe bateu à porta e a interpelou, já ela respondeu com toda a naturalidade como se fosse completamente estranha aos acontecimentos, argumentando:

- Hoje bebeste por um garabano, banabóia. És bem rõe. – E fechou-lhe o postigo na cara.

  A verdade é que Carminda não mais se livrou da fama que Luís Lafrau lhe botou. Fama de bruxa, de ter poderes demoníacos e de possuir do livro de São Cipriano. Tudo isso já lá vai, porém.

 Na noite de hoje, portanto, a aldeia vive as emoções de um tiro nocturno, inusitado, disparado a despropósito. Com os gritos da Carminda houve portas e janelas que se abriram e não tardou a formar-se um pequeno adjunto no largo do Eirol. Todos começavam por perguntar ele que foi, ele que não foi, ele onde foi. Foi o caso da velha Ester que era surda que nem uma porta, menos que as paredes é certo que, como se sabe, têm ouvidos. Desde a janela entreaberta perguntou:

-Ele que foi? Ele que foi? Pareceu-me ouvir a genra do Nabiça gritar.

Carminda não teve como não responder, chorosa:

- Mataram o Luís Lafrau. Foi o que foi. Eu ainda não dei por ele passar...!

O Valentim Fraga, que gozava a fama de ser o homem mais maroto da aldeia e que por isso fora nomeado regedor, também acordou com o tiro. E porque tomava a missão a peito veio para a rua de alpergatas e ceroulas de flanela com “atilhos atados nos artelhos”, como dizia o poeta Albino. Mal teve tempo de pôr a caçadeira ao ombro e de apertar a cartucheira à cintura. Uma figura digna de se lhe tirar o chapéu ou a fotografia se máquina fotográfica houvesse. Com a autoridade inerente interpelou, de pronto, os presentes:

- Quem é o corrécio que eu, morto ou vivo, dou-lhe já ordem de prisão.

Foi quando se começou a ouvir a voz de alguém que descia a ladeira, cantando alegremente:

- Eu sou um homem do fado. E os homens do fado nunca hão-de de morrer.

Fez-se silêncio no largo do Eirol, mas quando se tornou evidente de quem se tratava, o regedor, sentindo-se inútil e desautorizado, explodiu:

- Ora aí vem o morto a cantar! Vão mas é todos pró carvalho! - E retirou-se vociferando impropérios. Também Carminda tratou de se escapulir, sorrateiramente, antes que o Lafrau aparecesse. Verificou se o garavelho do postigo estava bem corrido, arrochou a tranca da porta com mais força e aninhou-se à lareira, cismática.

 Entrementes o Capador já havia pendurado o bacamarte no sítio em que sempre repousava desde que o herdara do avô, por detrás do escano, convenientemente escondido e sempre à mão. Morava na primeira casa à entrada da aldeia. As oliveiras circundavam-na até aos beirais mas na pequena horta posterior havia uma abebreira enorme que dispensava dormida e comida à passarada, mal as abêbras começavam a pintar-se de preto. Quando, imediatamente após o disparo se ouviram os gritos da Carminda, a mulher do Albino que se chamava Rosa mas obviamente também era conhecida pela Capadora, desabafou:

- Ó «home»! Querem ver que mataste alguém!

- Ninguém se queixou. Se calhar nem no perluís acertei. - Respondeu, de pronto, o interpelado.

Pelo sim pelo não, apreensivo, tomou a candeia e foi verificar. Não tardou estava de volta com um pássaro enorme na mão, acinzentado, de cabeça dependurada. Mal fechou a porta disse:

- Aqui o tens. Este não volta a piar nem a andar por aí a agoirar.

O perluís, ave tida por agoirenta, já naquela tarde fora visto pelos ares, de bico comprido a espetar o céu, com as patas pendentes e em voos rasantes sobre os telhados. Rosa seguiu com atenção as suas sucessivas tentativas de pousar no telhado da velha Ester. Persignou-se e disse para consigo:

- Vai morrer alguém. Quem será? Querem ver que é a Ester!

Para sua maior angústia a fatídica ave veio pernoitar na abebreira, onde o seu piar repetitivo, funéreo, a denunciou e acabou por lhe ditar a própria morte. Depois que tudo se aclarou, o dia e o evento, o excêntrico Albino Capador justificava o tiro a hora tão imprópria a quem o interpelava dizendo que o patife do perluís havia viajado clandestino no Gil Eanes, sem carta de chamada e sem pagar a passagem.

Certo é que aquele infeliz perluís não soltou mais pio. Os óbitos, contudo, continuaram a acontecer naquela pitoresca aldeia nordestina mesmo sem pássaros a prenunciá-los. E assim vai continuar a ser enquanto houver mortos a viver e vivos para morrer. E criativos em quem acreditar.