No mês de Março marçagão, em que de manhã é inverno e à
tarde é verão, escurece e começa a gear logo que o sol se esconde atrás do
picoto da Santa Comba.
Por três vezes o padre António tocou às Trindades, com três badaladas intervaladas
a cada três, puxando com perícia a corda que tinha uma ponta atada na varanda
da casa paroquial e a outra no badalo do sino menor do campanário. Os mais
piedosos recolheram-se em breve oração e as crianças pararam de jogar ao
rou-rou e à trinca-cevada e correram para o colo das mães. Entrementes galinhas,
patos e perus haviam tomado a iniciativa de se ajeitar nos poleiros e os recos nos cortelhos.
Os humanos que desde o nascer do sol labutaram nas hortas
e terreiros, depois que acomodaram os bois e os muares nas lojas bem
aconchegadas de palha, feno e cevada não tardariam a também eles recolher a
penates, sôfregos da malga de caldo, introito da ceia substancial que o mais
certo era constar de alheiras douradas na brasa, acompanhadas de grelos, chícharros
e batatas cozidas.
Nas lareiras
crepitavam fogueiras calorosas, que as noites ainda eram frias, apesar de a
Primavera já ter sido inaugurada pelas primeiras andorinhas, cuja chegada o
velho Albino Capador dias antes anunciara aos garotos que se dirigiam à escola:
-Psit, psit…!- Chamou. Pararam para escutá-lo.
Ainda antes de dizer o que pretendia, com o indicador e o
médio da mão direita voltada de costas, apertou delicadamente o nariz de um
deles e de seguida sacudiu-a bruscamente, batendo os dedos um no outro de forma
a produzir um breve estalo, simulando libertar moncas inexistentes. Só depois,
sentenciou, com ar sério:
- Rapazes. As andorinhas que mandei vir estão a chegar. É
o Gil Eanes que as traz.
Este Gil Eanes a que Albino Capador se referia era o conhecido
navio hospital que apoiava a frota bacalhoeira lá no mar do Norte e que todos
conheciam, ou não fosse o bacalhau um emblema gastronómico nacional. Ainda
assim, Artur, o mais ladino, porque sabia que as andorinhas vinham do sul e o
bacalhau do norte, questionou:
-Ó ti Albino, então as andorinhas vêm no mesmo barco do bacalhau?
Sem se aperceber da subtileza da pergunta, Albino Capador,
de pronto retorquiu:
- Vêm pousadas no mastro maior, lado a lado com os tralhões
e as folecras.
Os rapazes sorriram, aparentemente convencidos. Ainda
assim, espirituoso, o Artur, ripostou:
- Um dia destes aparece por aí um andorinho com uma folha
de bacalhau no bico, carago!
Entretanto apareceu a autoridade cívica lá da terra, Valentim
Fraga, o regedor, de seitoura na mão e com um molho de ferrã às costas e que ao
ver os rapazes exclamou:
-Olha que três para umas malápias. – E, sem mais – Ala
prá escola que se faz tarde!
Foi quanto bastou para que os jovens retomassem silenciosamente
o caminho, rua acima. Albino Capador, a quem o peso dos anos já fazia curvar as
costas e ranger os joelhos, recebera tal epíteto por ser capador de verdade, de
porcas, em cujo mister se deslocava pelas aldeias vizinhas montado num cavalo
imponente, fazendo-se anunciar com o som inconfundível do seu assobio peculiar.
Este Albino Capador, para lá do mais era poeta popular,
um criativo de génio conhecido pelas suas hilariantes mas inofensivas facécias,
designadamente por organizar concursos de assobio a bois e bestas no bebedouro.
Um dia convenceu um jovem criado de servir, chamado Normando, a cantar o conhecido
fado de Coimbra, o Passarinho da Ribeira, com a promessa de lhe arranjar um
contrato para cantar na Emissora Nacional. Houvesse televisão naquele tempo e o
contrato seria para a televisão, certamente. E não é que o moço se quis
despedir do amo a quem servia?!
Este episódio, porém, como tantos outros, pertencem ao mítico
historial do folgazão Albino. O anúncio da chegada das andorinhas aconteceu a
semana passada. Hoje, esta noite melhor dizendo, vive-se um outro acontecimento
surreal nesta aldeia nordestina alvoroçada pelo incrível capador de recas,
quando a freguesia já se encontrava nos braços de Hipnos e de
sei filho Morfeu.
O tiro foi fragoroso indiciando excesso de pólvora. Da
espingarda, velha escopeta de um só cão de pederneira, emanou densa fumarada
depois que intenso clarão rasgou a noite, relâmpago testemunhado na distante Veiga
de Lila, já na falda norte da serra de Santa Comba, enquanto o associado trovão
ecoou por montes e vales sobressaltando os vizinhos de Cabanelas, Vale Telhas e
Mirandeses e até os de Valverde e Possacos, já do lado de lá do rio Rabaçal.
A primeira a reagir foi a viúva Carminda, sexagenária desempenada
e fresca de carnes, que vivia só desde que o marido morrera e as filhas desandaram.
Abriu o postigo que dava para o largo do Eirol e pôs-se a gritar, arrebatada:
- Acudam que mataram o meu bem-amado Luís Lafrau. – Repetiu
este dramático apelo por duas ou três vezes, dando assim a saber ao mundo, sem de
tal se aperceber, que tinha como amor secreto o improvável contrabandista e batoteiro.
Paixão assolapada, platónica, nunca antes publicamente declarada, nem sequer com
um simples beijo em segredo carimbada. Por mais que Luís Lafrau se oferecesse
para a esconjurar quando lhe batia à porta, no regresso do seu esconso
desporto, a altas horas da noite:
- Carminda. Tu trazes o diabo no corpo. Olha que eu faço
o trabalho melhor que o padre.
Mesmo assim, Carminda nunca cedeu. Cuidava de só abrir o
postigo depois de verificar que a chave da porta tinha as duas voltas completas
e de firmar melhor a grossa tranca de madeira. E ripostava:
-Vai-te embora excomungado que eu não quero nada, nem
contigo nem com o padre.
De seguida metia-se na cama a cismar e a esvair-se em
desejos. Era um amor extremado, obsessivo, contraditório, que amalgamava erotismo,
admiração, repulsa e temor. Talvez por ter consciência de que Luís, que morava
sozinho e não gostava de ninguém a não ser dele próprio, era um libertino
viciado no jogo, que se tocava do vinho paradoxalmente quando ganhava, dando assim
de beber à glória e não à dor e se abstinha na desolação da derrota. Era um amor
que coagia Carminda a manter-se acordada, à lareira mortiça, até persentir que
Luís passava à sua porta. E tão louca era a paixão que uma noite a induziu a ir
esperar o seu pouco recomendável apaixonado ao caminho, entocada numa dobra do
fraguedo da Portela, majestoso maciço granítico, a dois passos da aldeia e no
qual se dizia que aparecia o diabo. Mas Carminda nada temia, a não ser esse seu
amor espúrio. Adormeceu e acordou, estremunhada, quando se apercebeu de uma
figura que abanava levemente, agigantada pela sombra do luar. Seria o demónio?!
Esfregou os olhos, focou a vista e apurou o ouvido. Afinal o belzebu era Luís
Lafrau que parado no meio do caminho urinava ali a dois passos dela. Ocultou-se o melhor que
pôde tendo o cuidado de fazer o menor ruído. Prestou atenção ao que ele dizia,
quase gritando:
- Ó diabo, meu grande filho da puta! Dizem que apareces por aqui. Aparece lá que eu quero partir-te
os cornos com este pau.- E brandia o varapau em direcção ao rochedo.
Inesperadamente uma pequena pedra rolou aos pés de
Carminda quando esta se encolheu ainda mais. Luís apercebeu-se, eriçou-se,
apurou os sentidos e segredou: - Bá! Algum coelho, porí.
Optou por apertar a carcela e retomar a marcha,
cambaleando visivelmente e ensaiando a cantilena costumeira já que vinha
ganhador. Carminda que se mantivera quieta, encafuada numa frincha, envolta no
xaile negro e no lenço que lhe cobria a cabeça, também se predispôs a sair da
toca para se pôr a salvo. Esbarou ruidosamente, porém, chamando a atenção de Luís
que especou de pronto, sem saber se fugir, se enfrentar. Decidiu-se por avançar
sobre a aparição que procurava dissimular-se a todo o custo. Com espanto,
apercebeu-se que era Carminda. Exclamou:
-Ai és tu minha bruxa!- Avançou para ela, mas acabou por
se estatelar na agueira que ladeava o caminho ao dar um passo mais largo. E enquanto
Luís se levanta e cai de novo, Carminda desapareceu, lesta, na sombra da noite.
Quando o apaixonado, daí a pouco, lhe bateu à porta e a interpelou, já ela
respondeu com toda a naturalidade como se fosse completamente estranha aos acontecimentos,
argumentando:
- Hoje bebeste por um garabano, banabóia. És bem rõe. – E fechou-lhe o postigo na cara.
A verdade é que Carminda não mais se livrou da
fama que Luís Lafrau lhe botou. Fama de bruxa, de ter poderes demoníacos e de
possuir do livro de São Cipriano. Tudo isso já lá vai, porém.
Na noite de hoje, portanto,
a aldeia vive as emoções de um tiro nocturno, inusitado, disparado a
despropósito. Com os gritos da Carminda houve portas e janelas que se abriram e
não tardou a formar-se um pequeno adjunto no largo do Eirol. Todos começavam
por perguntar ele que foi, ele que não foi, ele onde foi. Foi o caso da velha
Ester que era surda que nem uma porta, menos que as paredes é certo que, como
se sabe, têm ouvidos. Desde a janela entreaberta perguntou:
-Ele que foi? Ele que foi? Pareceu-me ouvir a genra do
Nabiça gritar.
Carminda não teve como não responder, chorosa:
- Mataram o Luís Lafrau. Foi o que foi. Eu ainda não dei
por ele passar...!
O Valentim Fraga, que gozava a fama de ser o homem mais
maroto da aldeia e que por isso fora nomeado regedor, também acordou com o
tiro. E porque tomava a missão a peito veio para a rua de alpergatas e ceroulas
de flanela com “atilhos atados nos artelhos”, como dizia o poeta Albino. Mal teve
tempo de pôr a caçadeira ao ombro e de apertar a cartucheira à cintura. Uma
figura digna de se lhe tirar o chapéu ou a fotografia se máquina fotográfica
houvesse. Com a autoridade inerente interpelou, de pronto, os presentes:
- Quem é o corrécio que eu, morto ou vivo, dou-lhe já
ordem de prisão.
Foi quando se começou a ouvir a voz de alguém que descia
a ladeira, cantando alegremente:
- Eu sou um homem do fado. E os homens do fado nunca
hão-de de morrer.
Fez-se silêncio no largo do Eirol, mas quando se tornou
evidente de quem se tratava, o regedor, sentindo-se inútil e desautorizado,
explodiu:
- Ora aí vem o morto a cantar! Vão mas é todos pró carvalho!
- E retirou-se vociferando impropérios. Também Carminda tratou de se escapulir,
sorrateiramente, antes que o Lafrau aparecesse. Verificou se o garavelho do
postigo estava bem corrido, arrochou a tranca da porta com mais força e
aninhou-se à lareira, cismática.
Entrementes o Capador
já havia pendurado o bacamarte no sítio em que sempre repousava desde que o
herdara do avô, por detrás do escano, convenientemente escondido e sempre à mão.
Morava na primeira casa à entrada da aldeia. As oliveiras circundavam-na até
aos beirais mas na pequena horta posterior havia uma abebreira enorme que dispensava
dormida e comida à passarada, mal as abêbras começavam a pintar-se de preto. Quando,
imediatamente após o disparo se ouviram os gritos da Carminda, a mulher do Albino
que se chamava Rosa mas obviamente também era conhecida pela Capadora,
desabafou:
- Ó «home»! Querem ver que mataste alguém!
- Ninguém se queixou. Se calhar nem no perluís acertei.
- Respondeu, de pronto, o interpelado.
Pelo sim pelo não, apreensivo, tomou a candeia e foi
verificar. Não tardou estava de volta com um pássaro enorme na mão, acinzentado,
de cabeça dependurada. Mal fechou a porta disse:
- Aqui o tens. Este não volta a piar nem a andar por aí a
agoirar.
O perluís, ave tida por agoirenta, já naquela tarde fora
visto pelos ares, de bico comprido a espetar o céu, com as patas pendentes e em
voos rasantes sobre os telhados. Rosa seguiu com atenção as suas sucessivas
tentativas de pousar no telhado da velha Ester. Persignou-se e disse para
consigo:
- Vai morrer alguém. Quem será? Querem ver que é a Ester!
Para sua maior angústia a fatídica ave veio pernoitar na
abebreira, onde o seu piar repetitivo, funéreo, a denunciou e acabou por lhe ditar
a própria morte. Depois que tudo se aclarou, o dia e o evento, o excêntrico Albino
Capador justificava o tiro a hora tão imprópria a quem o interpelava dizendo
que o patife do perluís havia viajado clandestino no Gil Eanes, sem carta de
chamada e sem pagar a passagem.
Certo é que aquele infeliz perluís não soltou mais pio. Os
óbitos, contudo, continuaram a acontecer naquela pitoresca aldeia nordestina mesmo
sem pássaros a prenunciá-los. E assim vai continuar a ser enquanto houver mortos
a viver e vivos para morrer. E criativos em quem acreditar.
Muito bem escrito, ao sabor bem característico dos contos e falares transmontanos. Fez-me regressar à minha infância. Obg pela partilha
ResponderEliminarAgradeço a simpatia da visita e a generosidade das palavras. Abraço.
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