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segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

QUANDO PIA O PERLUÍS

 



QUANDO PIA O PERLUÍS

No mês de Março marçagão, em que de manhã é inverno e à tarde é verão, escurece e começa a gear logo que o sol se esconde atrás do picoto da Santa Comba.

 Por três vezes o padre António tocou às Trindades, com três badaladas intervaladas a cada três, puxando com perícia a corda que tinha uma ponta atada na varanda da casa paroquial e a outra no badalo do sino menor do campanário. Os mais piedosos recolheram-se em breve oração e as crianças pararam de jogar ao rou-rou e à trinca-cevada e correram para o colo das mães. Entrementes galinhas, patos e perus haviam tomado a iniciativa de se ajeitar nos poleiros e os recos nos cortelhos.

Os humanos que desde o nascer do sol labutaram nas hortas e terreiros, depois que acomodaram os bois e os muares nas lojas bem aconchegadas de palha, feno e cevada não tardariam a também eles recolher a penates, sôfregos da malga de caldo, introito da ceia substancial que o mais certo era constar de alheiras douradas na brasa, acompanhadas de grelos, chícharros e batatas cozidas.

 Nas lareiras crepitavam fogueiras calorosas, que as noites ainda eram frias, apesar de a Primavera já ter sido inaugurada pelas primeiras andorinhas, cuja chegada o velho Albino Capador dias antes anunciara aos garotos que se dirigiam à escola:

-Psit, psit…!- Chamou. Pararam para escutá-lo.

Ainda antes de dizer o que pretendia, com o indicador e o médio da mão direita voltada de costas, apertou delicadamente o nariz de um deles e de seguida sacudiu-a bruscamente, batendo os dedos um no outro de forma a produzir um breve estalo, simulando libertar moncas inexistentes. Só depois, sentenciou, com ar sério:

- Rapazes. As andorinhas que mandei vir estão a chegar. É o Gil Eanes que as traz.

Este Gil Eanes a que Albino Capador se referia era o conhecido navio hospital que apoiava a frota bacalhoeira lá no mar do Norte e que todos conheciam, ou não fosse o bacalhau um emblema gastronómico nacional. Ainda assim, Artur, o mais ladino, porque sabia que as andorinhas vinham do sul e o bacalhau do norte, questionou:

-Ó ti Albino, então as andorinhas vêm no mesmo barco do bacalhau?

Sem se aperceber da subtileza da pergunta, Albino Capador, de pronto retorquiu:

- Vêm pousadas no mastro maior, lado a lado com os tralhões e as folecras.

Os rapazes sorriram, aparentemente convencidos. Ainda assim, espirituoso, o Artur, ripostou:

- Um dia destes aparece por aí um andorinho com uma folha de bacalhau no bico, carago!

Entretanto apareceu a autoridade cívica lá da terra, Valentim Fraga, o regedor, de seitoura na mão e com um molho de ferrã às costas e que ao ver os rapazes exclamou:

-Olha que três para umas malápias. – E, sem mais – Ala prá escola que se faz tarde!

Foi quanto bastou para que os jovens retomassem silenciosamente o caminho, rua acima. Albino Capador, a quem o peso dos anos já fazia curvar as costas e ranger os joelhos, recebera tal epíteto por ser capador de verdade, de porcas, em cujo mister se deslocava pelas aldeias vizinhas montado num cavalo imponente, fazendo-se anunciar com o som inconfundível do seu assobio peculiar.

Este Albino Capador, para lá do mais era poeta popular, um criativo de génio conhecido pelas suas hilariantes mas inofensivas facécias, designadamente por organizar concursos de assobio a bois e bestas no bebedouro. Um dia convenceu um jovem criado de servir, chamado Normando, a cantar o conhecido fado de Coimbra, o Passarinho da Ribeira, com a promessa de lhe arranjar um contrato para cantar na Emissora Nacional. Houvesse televisão naquele tempo e o contrato seria para a televisão, certamente. E não é que o moço se quis despedir do amo a quem servia?!

Este episódio, porém, como tantos outros, pertencem ao mítico historial do folgazão Albino. O anúncio da chegada das andorinhas aconteceu a semana passada. Hoje, esta noite melhor dizendo, vive-se um outro acontecimento surreal nesta aldeia nordestina alvoroçada pelo incrível capador de recas, quando a freguesia já se encontrava nos braços de Hipnos e de sei filho Morfeu.

O tiro foi fragoroso indiciando excesso de pólvora. Da espingarda, velha escopeta de um só cão de pederneira, emanou densa fumarada depois que intenso clarão rasgou a noite, relâmpago testemunhado na distante Veiga de Lila, já na falda norte da serra de Santa Comba, enquanto o associado trovão ecoou por montes e vales sobressaltando os vizinhos de Cabanelas, Vale Telhas e Mirandeses e até os de Valverde e Possacos, já do lado de lá do rio Rabaçal.

A primeira a reagir foi a viúva Carminda, sexagenária desempenada e fresca de carnes, que vivia só desde que o marido morrera e as filhas desandaram. Abriu o postigo que dava para o largo do Eirol e pôs-se a gritar, arrebatada:

- Acudam que mataram o meu bem-amado Luís Lafrau. – Repetiu este dramático apelo por duas ou três vezes, dando assim a saber ao mundo, sem de tal se aperceber, que tinha como amor secreto o improvável contrabandista e batoteiro. Paixão assolapada, platónica, nunca antes publicamente declarada, nem sequer com um simples beijo em segredo carimbada. Por mais que Luís Lafrau se oferecesse para a esconjurar quando lhe batia à porta, no regresso do seu esconso desporto, a altas horas da noite:

- Carminda. Tu trazes o diabo no corpo. Olha que eu faço o trabalho melhor que o padre.

Mesmo assim, Carminda nunca cedeu. Cuidava de só abrir o postigo depois de verificar que a chave da porta tinha as duas voltas completas e de firmar melhor a grossa tranca de madeira. E ripostava:

-Vai-te embora excomungado que eu não quero nada, nem contigo nem com o padre.

De seguida metia-se na cama a cismar e a esvair-se em desejos. Era um amor extremado, obsessivo, contraditório, que amalgamava erotismo, admiração, repulsa e temor. Talvez por ter consciência de que Luís, que morava sozinho e não gostava de ninguém a não ser dele próprio, era um libertino viciado no jogo, que se tocava do vinho paradoxalmente quando ganhava, dando assim de beber à glória e não à dor e se abstinha na desolação da derrota. Era um amor que coagia Carminda a manter-se acordada, à lareira mortiça, até persentir que Luís passava à sua porta. E tão louca era a paixão que uma noite a induziu a ir esperar o seu pouco recomendável apaixonado ao caminho, entocada numa dobra do fraguedo da Portela, majestoso maciço granítico, a dois passos da aldeia e no qual se dizia que aparecia o diabo. Mas Carminda nada temia, a não ser esse seu amor espúrio. Adormeceu e acordou, estremunhada, quando se apercebeu de uma figura que abanava levemente, agigantada pela sombra do luar. Seria o demónio?! Esfregou os olhos, focou a vista e apurou o ouvido. Afinal o belzebu era Luís Lafrau que parado no meio do caminho urinava ali a dois passos dela. Ocultou-se o melhor que pôde tendo o cuidado de fazer o menor ruído. Prestou atenção ao que ele dizia, quase gritando:

- Ó diabo, meu grande filho da puta! Dizem que apareces por aqui. Aparece lá que eu quero partir-te os cornos com este pau.- E brandia o varapau em direcção ao rochedo.

Inesperadamente uma pequena pedra rolou aos pés de Carminda quando esta se encolheu ainda mais. Luís apercebeu-se, eriçou-se, apurou os sentidos e segredou: - Bá! Algum coelho, porí.

Optou por apertar a carcela e retomar a marcha, cambaleando visivelmente e ensaiando a cantilena costumeira já que vinha ganhador. Carminda que se mantivera quieta, encafuada numa frincha, envolta no xaile negro e no lenço que lhe cobria a cabeça, também se predispôs a sair da toca para se pôr a salvo. Esbarou ruidosamente, porém, chamando a atenção de Luís que especou de pronto, sem saber se fugir, se enfrentar. Decidiu-se por avançar sobre a aparição que procurava dissimular-se a todo o custo. Com espanto, apercebeu-se que era Carminda. Exclamou:

-Ai és tu minha bruxa!- Avançou para ela, mas acabou por se estatelar na agueira que ladeava o caminho ao dar um passo mais largo. E enquanto Luís se levanta e cai de novo, Carminda desapareceu, lesta, na sombra da noite. Quando o apaixonado, daí a pouco, lhe bateu à porta e a interpelou, já ela respondeu com toda a naturalidade como se fosse completamente estranha aos acontecimentos, argumentando:

- Hoje bebeste por um garabano, banabóia. És bem rõe. – E fechou-lhe o postigo na cara.

  A verdade é que Carminda não mais se livrou da fama que Luís Lafrau lhe botou. Fama de bruxa, de ter poderes demoníacos e de possuir do livro de São Cipriano. Tudo isso já lá vai, porém.

 Na noite de hoje, portanto, a aldeia vive as emoções de um tiro nocturno, inusitado, disparado a despropósito. Com os gritos da Carminda houve portas e janelas que se abriram e não tardou a formar-se um pequeno adjunto no largo do Eirol. Todos começavam por perguntar ele que foi, ele que não foi, ele onde foi. Foi o caso da velha Ester que era surda que nem uma porta, menos que as paredes é certo que, como se sabe, têm ouvidos. Desde a janela entreaberta perguntou:

-Ele que foi? Ele que foi? Pareceu-me ouvir a genra do Nabiça gritar.

Carminda não teve como não responder, chorosa:

- Mataram o Luís Lafrau. Foi o que foi. Eu ainda não dei por ele passar...!

O Valentim Fraga, que gozava a fama de ser o homem mais maroto da aldeia e que por isso fora nomeado regedor, também acordou com o tiro. E porque tomava a missão a peito veio para a rua de alpergatas e ceroulas de flanela com “atilhos atados nos artelhos”, como dizia o poeta Albino. Mal teve tempo de pôr a caçadeira ao ombro e de apertar a cartucheira à cintura. Uma figura digna de se lhe tirar o chapéu ou a fotografia se máquina fotográfica houvesse. Com a autoridade inerente interpelou, de pronto, os presentes:

- Quem é o corrécio que eu, morto ou vivo, dou-lhe já ordem de prisão.

Foi quando se começou a ouvir a voz de alguém que descia a ladeira, cantando alegremente:

- Eu sou um homem do fado. E os homens do fado nunca hão-de de morrer.

Fez-se silêncio no largo do Eirol, mas quando se tornou evidente de quem se tratava, o regedor, sentindo-se inútil e desautorizado, explodiu:

- Ora aí vem o morto a cantar! Vão mas é todos pró carvalho! - E retirou-se vociferando impropérios. Também Carminda tratou de se escapulir, sorrateiramente, antes que o Lafrau aparecesse. Verificou se o garavelho do postigo estava bem corrido, arrochou a tranca da porta com mais força e aninhou-se à lareira, cismática.

 Entrementes o Capador já havia pendurado o bacamarte no sítio em que sempre repousava desde que o herdara do avô, por detrás do escano, convenientemente escondido e sempre à mão. Morava na primeira casa à entrada da aldeia. As oliveiras circundavam-na até aos beirais mas na pequena horta posterior havia uma abebreira enorme que dispensava dormida e comida à passarada, mal as abêbras começavam a pintar-se de preto. Quando, imediatamente após o disparo se ouviram os gritos da Carminda, a mulher do Albino que se chamava Rosa mas obviamente também era conhecida pela Capadora, desabafou:

- Ó «home»! Querem ver que mataste alguém!

- Ninguém se queixou. Se calhar nem no perluís acertei. - Respondeu, de pronto, o interpelado.

Pelo sim pelo não, apreensivo, tomou a candeia e foi verificar. Não tardou estava de volta com um pássaro enorme na mão, acinzentado, de cabeça dependurada. Mal fechou a porta disse:

- Aqui o tens. Este não volta a piar nem a andar por aí a agoirar.

O perluís, ave tida por agoirenta, já naquela tarde fora visto pelos ares, de bico comprido a espetar o céu, com as patas pendentes e em voos rasantes sobre os telhados. Rosa seguiu com atenção as suas sucessivas tentativas de pousar no telhado da velha Ester. Persignou-se e disse para consigo:

- Vai morrer alguém. Quem será? Querem ver que é a Ester!

Para sua maior angústia a fatídica ave veio pernoitar na abebreira, onde o seu piar repetitivo, funéreo, a denunciou e acabou por lhe ditar a própria morte. Depois que tudo se aclarou, o dia e o evento, o excêntrico Albino Capador justificava o tiro a hora tão imprópria a quem o interpelava dizendo que o patife do perluís havia viajado clandestino no Gil Eanes, sem carta de chamada e sem pagar a passagem.

Certo é que aquele infeliz perluís não soltou mais pio. Os óbitos, contudo, continuaram a acontecer naquela pitoresca aldeia nordestina mesmo sem pássaros a prenunciá-los. E assim vai continuar a ser enquanto houver mortos a viver e vivos para morrer. E criativos em quem acreditar.

2 comentários:

  1. Muito bem escrito, ao sabor bem característico dos contos e falares transmontanos. Fez-me regressar à minha infância. Obg pela partilha

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    1. Agradeço a simpatia da visita e a generosidade das palavras. Abraço.

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