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sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O burro do Pucareiro

 

O burro do Pucareiro

Na sábia prosápia de João Feliz, respeitado pensador, poeta e moralista popular, uma coisa era o Pucareiro outra era o burro do Pucareiro.

 Melhor dizendo, dizia João Feliz:

- Burro é o burro que é burro verdadeiro e não é o Pucareiro que é burro. Vamos lá a ver se nos entendemos!

Ainda que tão burro fosse o burro como o dono do burro, no dizer da Aida Malagueta que não podia com o Pucareiro, nem ele com ela, por uma questão antiga, coisas de amor e de ódio, ao que se dizia, já com tempo de serem esquecidas mas que cada dia mais se acirravam.

 Tudo começara anos atrás quando o Pucareiro na tradicional Serrada da Velha, despeitado com a Malagueta por razões que só eles saberão, se deu ao desplante de pôr a boca no embude, no alto da Canadinha sobranceiro à aldeia, noite adentro, e gritar o que todo o povo ouviu:

-Deus te perdoe Aidinha, Deus te queira perdoar, comigo tu já não te casas, para tia hás-de ficar.

Ainda a semana passada quando passavam um pelo outro, nos Ervançais, indo a Aida apanhar um manhuço de grelos para a ceia e vindo o Pucareiro de Miradezes montado no seu inseparável jumento, sentado entre uma caixa de sardinha e outra de chicharro, se ouviu um traque que levantou poeira e ribombou pelas redondezas qual maléfico polvorinho, não ficando claro, contudo, se foi o burro do Pucareiro se o Pucareiro ele próprio quem tal fenómeno produziu.

 Momentos antes o Pucareiro até saudara quem mais seguia no caminho, levando a mão ao chapéu e dizendo:

- Bons dias nos “deia” Deus.

Respostas, se as houve, foram abafadas pela inusitada ventosidade.

A Malagueta é que não achou graça nenhuma por desconfiar que se tratou de um acinte diabólico a ela dirigido, tivesse vindo do burro ou do dono porque era mais que sabido que estavam feitos um com o outro e ela bem se apercebeu que o Pucareiro dera, momentos antes, as palmadinhas do costume no pescoço da montada.

 Ostensivamente, por isso mesmo, não só não retribui os bons dias como respondeu à suposta afronta, alto e bom som, fazendo figas, tapando a cara como o lenço e voltando a cabeça para o lado:

- Prá carga e prá a besta que o larga! Tarrenego satanás!

A verdade é que o Pucareiro, tirando estas minudências até era um sujeito respeitado, respeitador e admirado pelas suas lendárias e divertidas patranhas. Histórias do arco-da-velha que corriam de boca em boca como sendo dele, embora muitas fossem de terceiros.

 As mais fantásticas e hilariantes teriam sido mesmo protagonizadas pelo visado, o sardinheiro Hilário Modesto, mais conhecido pelo Pucareiro, que delas tirava muita fama e pouco proveito.

Em tempos ter-se-á dedicado à venda de púcaros e caçoulos. Daí o epíteto de Pucareiro de que não mais se livrou. Mas, porque se dera conta, ao que dizem, de que o negócio dos púcaros só dava cacos e vendo como a Júlia Pardala progredia na vida, apesar de apenas viver da venda porta a porta de sardinha e afins, tanto que até já comprara o olival da Roteia, ao Tancredo, também o Pucareiro decidiu dependurar os púcaros e botar-se à venda ambulante de peixe. Deu-se bem o negócio, pelos vistos, porque não mais o largou.

Num abrir e fechar de olhos arranjou vasta clientela desde Miradeses às Aguieiras, o que não admira dada a fama que transportava misturada com a sardinha e o chicharro. Ir mais além já a tanto se não “astrevia” porque a mor das vezes se via obrigado a pernoitar por lá e no Verão o peixe depressa botava cheiro a fénico o que levava a que os clientes lhe torcessem o nariz.

Carregava o jumento em Rio Tordo, com duas ou três caixas de sardinha, uma ou duas de chicharro, trazidas pela camioneta da carreia que de Mirandela seguia para Valpaços e Chaves e ala por esses caminhos fora, vendendo aqui uma dúzia, além um quarteirão, até esgotar a carga.

 Jumento que educara como um filho, que tratava como um irmão e a quem queria mais que à mulher, como o próprio dizia. Jumento que ele mesmo baptizara de Albino sem o menor propósito sacrílego. Tanto que sempre que passavam defronte da igreja paroquial, o animal genuflectia uma das patas cerimoniosamente e o humano persignava-se, convicto, sem se apear. Uma cerimónia tocante para os mais piedosos.

Conta-se que um dia, porque teve que deixar o Albino na loja por conselho do ferrador dado que o animal tomara uma congestão de uvas e figos verdes, viu-se forçado a pedir emprestada a mula da Rosalina.

Lá está, observaria João Feliz se acaso isto ouvisse:

- Viu-se forçado a pedir a mula à Rosalina e não a mula da Rosalina. Mula que, por acaso, se chama Ruça e não Rosalina, para que não subsistam dúvidas.

Certo é que a mula da Rosalina, perdão, a mula que é da Rosalina, no regresso se recusou a entrar na barca, em Miradezes. Cena que não fizera à ida por ainda ser hora de lusco-fusco, por certo. Agora já o sol nascente tremeluzia no espelho de água do Rabaçal, onde também se refectiam as sombras movediças dos amieiros que a brisa matinal agitava. Talvez fossem elas a amedrontar o animal.

Apeou-se o Pucareiro, entrou na barca determinado e pôs-se a puxar a mula pela rédea, com toda a força que tinha. Mas a quadrúpede, teimosa que nem uma mula já se vê, com as quatro patas fincadas na margem lamacenta e com o focinho a soprar a água, recusava-se terminantemente a embarcar.

Instalou-se um olímpico tira teimas entre o Pucareiro e a mula da Rosalina, a mula que era da Rosalina, perdão, até que o sardinheiro, depois de muito puxar, teve este surpreendente lapsus linguae:

- Mais força tens mas mais mula do que eu não és!

 Posto isto, o sardinheiro dá um derradeiro puxão,  solta a rédea de um golpe, a mula cai de cangalhas na água, a carga solta-se e o peixe pôs-se de imediato a boiar rio a baixo, ao sabor da corrente e também teria nadado rio a cima, certamente, se acaso estivesse vivo.

 Recomposta, a mula da Rosalina, perdão a mula que é da Rosalia, depois que, a custo, conseguiu sair da água, desatou numa correria louca, montes arriba, só parando em Valverde.

Quanto às sardinhas e aos carapaus não tardaram a galgar o açude para só serem pescados à rede lá mais abaixo, por pescadores de Lilela, espantados com tais peixes a boiar por entre bogas e barbos. O próprio guarda-rios coçou o queixo embasbacado sem saber que lei aplicar perante tão rara e ilícita pescaria.

Nada disto diz, porém, do inimaginável Pucareiro e do seu fabuloso jumento, o Albino, que ele educara como um filho, que tratava como um irmão e a quem queria mais que à mulher.

- Lá se me foi o negócio rio abaixo. O Albino nunca me teria causado desgraça tamanha!- Desabafava sempre que o episódio vinha a propósito duma prosa afim.

O Albino era um jumento mágico que tinha, entre outras comprovadas faculdades, a de cagar libras e falar com o dono por acenos de cabeça e ornejos codificados.

Na secura de Verão, que é quando a sede mais aperta, ou na frialdade do Inverno, quando mais se necessita de um bom tónico para aquecer, parava o Pucareiro à porta da taberna do Mimoso, soberbamente montado e sem se apear e nada dizer, dava um piparote nas orelhas do Albino que de imediato soltava dois estridentes zurros, correspondente a dois copos de três.

Não tardava o taberneiro a vir à porta trazendo dois enormes púcaros de vinho. O Pucareiro antes mesmo de emborcar o dele de uma assentada, enfiava o do Albino pela goela respectiva que para tanto já se havia posto a jeito, levantando o focinho, mostrando os dentes e escancarando a bocarra, como se sorrisse de contentamento. Ao prolongado ah… do dono correspondia o Albino com um equivalente ornejo de igual satisfação.

Cena trivial, recorrente que merecia o comentário mordaz da Aida quando, por mero acaso, ou talvez nem tanto, assistia de passagem, invariavelmente tapando a cara com uma ponta do lenço escandalizada com o que via:

-Tão borracho é o dono como o burro. Mal-empregado vinho!

Também a lendária faculdade do burro do Pucareiro, perdão, do jumento Albino, cagar libras era publicamente comprovada. Por vezes as moedas saíam mesmo embrulhadas em bolas de palha e cevada moída. E tão grande era o encanto que assistentes mais crédulos logo se propunham comprar o Albino ao dono. Negócio que o Pucareiro invariavelmente declinava, porém, dizendo que era uma virtude que só entre ele e o Albino funcionava, porque havia palavras e gestos que não se ensinavam facilmente. Homem honesto o Pucareiro, como se vê.

Vamos aos factos. Reunida suficiente assistência, o Pucareiro começava por fazer as festas da praxe na cabeça do Albino e segredava-lhe ao ouvido algo que ele bem entendia porque retorquia com um ornejo aquiescente.

O sardinheiro dava uma volta em torno do partenaire, mostrava as mãos à assistência, arregaçava levemente as mangas, aproximava-se da traseira do animal, levantava-lhe levemente o rabo e eis que, milagrosamente, se viam duas ou três moedas doiradas surgir entre os dedos do festejado putriqueiro, quando não se ouviam tilintar nas pedras da calçada. Nem mais! Sem truques nem magias.

Dizia a Alzira Xedra que aquilo era bruxedo, coisas que o Pucareiro aprendera no Livro de São Cipriano. Ao que contrapunha a inevitável Aida Malagueta:

- Olhe que as libras são sempre a mesmas, ti Alzira! E sabe-se lá onde o Pucareiro as foi arranjar! Encontrou-as pori, no buraco “dalguma” parede. Dá-as a engolir ao burro na véspera, embrulhadas na palha e na cevada, depois é só apará-las no cú do animal.

 Enfim! Mistério entusiasmante, como se vê.

Certo e sabido é que o inefável sardinheiro, quando estava afim, também tirava libras da barriga de um ou outro chicharro. Chegou a vender caixas de peixe de uma assentada a um só freguês mas quanto a libras, nada. Nem por isso a magia caiu em descredito embora também se constasse que um dia alguém, porque se sentisse intrujado, esteve, vai-não-vai, para chegar a roupa ao pelo ao criativo sardinheiro que, diga-se a propósito, era um fraca roupeta.

Mais mirabolante ainda assim, terá sido a cena rocambolesca em que o jumento Albino alertou o dono para um roubo de sardinhas. Feito lendário reportado como tendo acontecido em diferentes aldeias, a gosto do narrador que a conta, sendo certo que nalguma aconteceu.

Terá sido num dia de Inverno, que é quando escurece cedo. Viu-se o Pucareiro constrangido a pedir pernoita num casal isolado, à beira do caminho, sem que tivesse muita confiança com os moradores.

Acomodado o Albino, aliviado da carga e abonado com magra gabela de palha, o Pucareiro subiu para o sobrado onde lhe fora destinado catre, fora das vistas do companheiro e das caixas de peixe. Ainda argumentou que dormia bem no monte de palha ao lado do Albino mas o hospedeiro insistiu que não senhor que era mais comodo o sobrado. Alumiou-lhe o caminho com a candeia, atirou-lhe uma pesada manta e retirou-se, deixando tudo mergulhado na escuridão.

Manhã cedo, mal a alvorada rompeu, tratou o Pucareiro de arrear a montada. Depois de instalar a carga e quando já se preparava para pagar a pernoita em género, deu-se conta de que durante a noite alguém mexera numa das caixas.

 Assistiam à cena, impávidos, o dono da casa e a mulher que tão generosamente o haviam acoitado. Não era homem, o Pucareiro, porém, para entrar em confronto aberto por tão baixo preço. Era adepto, isso sim, de uma mais fina e indirecta estratégia.

Enfiou calmamente a cabeçada na cabeça do Albino e pisou discretamente a rédea por forma a estica-la e a fazer abanar a cabeça do jumento concertadamente com diálogo que estabeleceu com o fiel companheiro:

- Tu que me dizes?! Tem juízo! E quantas sardinhas roubaram?!

Doze vezes o Albino abanou a cabeça, por força do pé do Pucareiro que pisava a rédea e contava em voz alta para que os circunstantes ouvissem.

- Uma dúzia? Tens a certeza?

Confirmou o burro com mais uma abanadela da cabeça por força de novo pisar na rédea.

O casal hospedeiro estava boquiaberto e embaraçado por ter sido descoberto e logo por um burro. Não se conteve a mulher que, comprometida, confirmou o roubo, regateando:

-Olhe que o seu burro é aldrabão, ti Pucareiro. Eu só tirei meia dúzia! Três pra mim e outras três pró meu Zé, como paga da pensão.

- Pois fique sabendo, dona, que o Albino nunca me mentiu.- Retorquiu o sardinheiro.

E, dirigindo-se ao Albino, rematou:

-Fica então bem paga a pensão, companheiro! Concordas?

Claro que o Albino abanou uma última vez a cabeça por força do pé que lhe pisava a rédea. Boquiabertos, os hospedeiros, nem coragem tiveram para reclamar da conta.

Uma semana depois já a história era conhecida por todas as aldeias em redor, contada com muito gozo e ironia, se bem que quem a relatou a primeira vez o tenha feito de forma mais humilde e discreta.

Ainda hoje, quando alguém, em circunstância de amena cavaqueira, se sai com alguma história deste género, surpreendente, sempre há um ouvinte que exclama:

- Bô! Essa é como a do burro do Pucareiro.

 

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