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domingo, 3 de janeiro de 2021

Alegrai-vos, segadores!

 


Esta história começa quando ainda o génio mágico de São Martinho de Anta não havia transformado o sáfaro Trás-os-Montes no Reino Maravilhoso, nem convertido os rudes transmontanos em seres lendários.

Quando as terras da Terra Quente ainda não eram retalhados pelas pesadas rodas dos tractores e nos caminhos chiavam ronceiros carros de bois no tempo da acarreja do cereal para as eiras.

 E o ti Raimundo montava o Ruço, com as pernas a arrastar pelo chão, para ir amanhar a horta da Nabarega, onde mal cabiam duas couves tronchas. Enquanto agora o filho vai e vem quando lhe apetece, com o “espada” de matrícula francesa a espantar lagartos e pardais, inundando os ares com músicas do Quim Barreiros.

Ainda as searas começavam por tingir de verde vivo os declives suaves das colinas para, mais tarde, ondularem ao vento, douradas, dando a ideia de estarem a fugir para lado nenhum, como a angústia da gente que mourejava de sol a sol, numa roda-viva quotidiana, sem nunca se atrever a mudar de vida.

Ainda o luar de Janeiro só tinha parceiro no de Agosto, que lhe batia no rosto, sem lâmpadas eléctricas a ofuscarem o firmamento e na Lua esmaltada se recortava um homem com um bardo de silvas às costas, que o americano Armstrong aliviaria do seu peso, mais tarde.

Ainda, pelo Estio, bruxas e zângões sopravam vendavais que rodopiavam em vertiginosos pulverinhos de pó e palha que subiam na atmosfera mais alto que a Serra da Santa Comba, esconjurados por figas e carvalhos. Agora, outras bruxas bailam, e quando o vento sopra, desordenado, sem tempo nem eira, arrasta latas vazias de Coca-Cola e sacos plásticos do Feira Nova.

Ainda os majestosos olivais tradicionais se ficavam pelas baixas, serenos e sombrios, sem se atreverem a alastrar por ladeiras e cabeços e a expulsar o pão e o trigo, como o fizeram as fraldiqueiras oliveiras da CEE, em cujas veias deixou de correr sangue e suor, porque se alimentam da seiva dos subsídios.

Ainda o pão era feito de farinha de centeio, moída em moinhos e azenhas tocadas por águas cristalinas, amassada com o suor do rosto e cozida pelo afecto das padeiras.

- Ti Antónho... veja lá se me faz render o grão! - Exclamava, engustiada, a pobre viúva, boca aberta de fome, na hora de entregar o taleigo à moenda.

- Ele é cada grão seu pão! - Retorquia o Escaldado, moleiro, filósofo, sofrido. 

Ainda se trabalhava de sol a sol, com resignação e à força de braços e,

 

... ainda o lusco-fusco da alvorada não se abrira de todo e o orvalho escorria pelas palhas, já Manuel Santana se destacava à testa da camarada, imparável, seitoura manejada com desembaraço, deixando atrás de si longa esteira de grossos molhos de trigo.

- Vale por dez – segredava, de si para si, Albino Lopes, o amo dos segadores.

 Manuel Santana era isso mesmo: incansável, tenaz, imbatível!

E quando o astro rei dobrava o zénite e as sombras minguavam, no caminho que curvava com a encosta, apareciam, por fim, as mulheres, com ajoujadas gigas de verga à cabeça, transportando o jantar para os segadores, àquela hora já sôfregos por comida e descanso.

 Nesse preciso instante, o Amadeu, também conhecido pelo Fodinhas, e a quem competia dar o lamiré, deixou de apontar a dolente “Oh minha mãe, minha mãe/ Oh minha mãe minha amada/ Quem tem uma mãe tem tudo/ Quem não tem mãe não tem nada.”, repetida vezes sem conta, para lançar a mais animada “Alegrai-vos segadores/ Ligeira vem a cozinheira/ Deixa o rancho no restolho/ Leva a panela com ela. “, no que seria seguido por um coro de vozes roufenhas que se espraiavam, encostas acima e abaixo, até se esvaírem em ecos por todo o vale.

Em breve a mesa estava posta sobre alvas toalhas de linho estendidas no restolho, o garrafão corria de mão em mão e das largas chaspas de alumínio saía o rancho fumegante que, à mistura com os ervanços e o toucinho, também traziam humor e alento.

É então que, entre outros ditos e dichotes, Antero, tido por lacoeiro, que é outra forma de em Trás-os-Montes se dizer mandrião, atirou:

- Ó Manuel Santana! Tu parece que queres acabar com o trabalho!

Ao que o visado se limitou a retorquir, erguendo por instantes a cabeça do prato de esmalte, sem levantar a voz:

- Ou eu acabo com ele ou ele comigo!

Estalou a risota geral. Até o jumento do ti Raimundo, que até ali se mantivera em silêncio tosando erva fresca numa agueira, desatou em tonitruante algazarra, harmonizada de chios e ornejos.

Aproveitou a deixa o Luís Lafrau que, já alegre da bebida, se saiu com esta, enquanto passava o garrafão ao companheiro do lado:

- Jaquim, dá de beber ao burro do Raimundo, não vá o doutor secar-se dos beiços.

Bem...! Uns tantos anos depois, Manuel Santana, que emigrara e enriquecera lá pelas américas, e outro fado não poderia ter quem tanto se devotava ao trabalho, regressa à terra, com a pompa e circunstância requeridas pelo peso da fama e das saudades, quando já há muito o asfalto se estendera de Mirandela a Rebordelo, os postes do telefone e da electricidade emolduravam as ruas de Vale das Rosas e o relógio do campanário martelava as horas, as meias e os quartos, entre outras inovações menores.

Na hora da recepção, com comes, bebes e umas mãos cheias de dólares lançados às rebentinas, para gáudio da canalha e dos graúdos engalfinhados na disputa, (aonde já ia o tempo em que, de igual forma, se batiam por uma mão cheia de rebuçados!), Antero, como sempre manhoso que nem uma mula, interpela:

- Ó Manuel Santana! Quer então dizer que sempre conseguiste acabar com o trabalho!?

Ao que Manuel Santana, com indisfarçável sotaque americano, de pronto contrapôs, sorridente, em olímpica atitude:

- Com o meu trabalho acabei, que já estou “retairede”. Mas trago-vos muito “emploimente”, que é do que vós andais precisados.

A maioria dos circunstantes, afeiçoados à sonoridade da língua francesa nos caminhos da emigração - que na verve do momento tinha a musicalidade da prosa do americano Barac Obama - bem percebeu a mensagem do compatriota regressado de terras de tio Sam.

Tanto que o Amadeu ainda balbuciou, timidamente, um “alegrai-vos segadores“, mas seria Antero a fazer-se ouvir, uma vez mais:

- Pois então venham lá os “ emploimentes ” que trabalho já nós temos de duro!

Reeditou-se a risota da segada de há anos atrás. Ecoou, porém, estrondeante e obscena na lembrança de Manuel Santana, que estaria a negociar com a Câmara Municipal facilidades para instalar um moderno complexo agroalimentar no cruzamento da Bouça.

Consta que, nessa mesma hora, Manuel Santana se decidiu por levar os empregos de volta para a América e deixar por cá os trabalhos.

Por opção do seu autor este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico.

 

Henrique Pedro