Esta
história começa quando ainda o génio mágico de São Martinho de Anta não havia
transformado o sáfaro Trás-os-Montes no Reino Maravilhoso, nem convertido os rudes
transmontanos em seres lendários.
Quando
as terras da Terra Quente ainda não eram retalhados pelas pesadas rodas dos
tractores e nos caminhos chiavam ronceiros carros de bois no tempo da acarreja
do cereal para as eiras.
E o ti Raimundo montava o Ruço, com as pernas
a arrastar pelo chão, para ir amanhar a horta da Nabarega, onde mal cabiam duas
couves tronchas. Enquanto agora o filho vai e vem quando lhe apetece, com o
“espada” de matrícula francesa a espantar lagartos e pardais, inundando os ares
com músicas do Quim Barreiros.
Ainda
as searas começavam por tingir de verde vivo os declives suaves das colinas para,
mais tarde, ondularem ao vento, douradas, dando a ideia de estarem a fugir para
lado nenhum, como a angústia da gente que mourejava de sol a sol, numa roda-viva
quotidiana, sem nunca se atrever a mudar de vida.
Ainda
o luar de Janeiro só tinha parceiro no de Agosto, que lhe batia no rosto, sem
lâmpadas eléctricas a ofuscarem o firmamento e na Lua esmaltada se recortava um
homem com um bardo de silvas às costas, que o americano Armstrong aliviaria do
seu peso, mais tarde.
Ainda,
pelo Estio, bruxas e zângões sopravam vendavais que rodopiavam em vertiginosos
pulverinhos de pó e palha que subiam na atmosfera mais alto que a Serra da
Santa Comba, esconjurados por figas e carvalhos. Agora, outras bruxas bailam, e
quando o vento sopra, desordenado, sem tempo nem eira, arrasta latas vazias de Coca-Cola
e sacos plásticos do Feira Nova.
Ainda
os majestosos olivais tradicionais se ficavam pelas baixas, serenos e sombrios,
sem se atreverem a alastrar por ladeiras e cabeços e a expulsar o pão e o
trigo, como o fizeram as fraldiqueiras oliveiras da CEE, em cujas veias deixou
de correr sangue e suor, porque se alimentam da seiva dos subsídios.
Ainda
o pão era feito de farinha de centeio, moída em moinhos e azenhas tocadas por
águas cristalinas, amassada com o suor do rosto e cozida pelo afecto das padeiras.
- Ti
Antónho... veja lá se me faz render o grão! - Exclamava, engustiada, a pobre
viúva, boca aberta de fome, na hora de entregar o taleigo à moenda.
-
Ele é cada grão seu pão! - Retorquia o Escaldado, moleiro, filósofo, sofrido.
Ainda
se trabalhava de sol a sol, com resignação e à força de braços e,
...
ainda o lusco-fusco da alvorada não se abrira de todo e o orvalho escorria
pelas palhas, já Manuel Santana se destacava à testa da camarada, imparável,
seitoura manejada com desembaraço, deixando atrás de si longa esteira de
grossos molhos de trigo.
-
Vale por dez – segredava, de si para si, Albino Lopes, o amo dos segadores.
Manuel Santana era isso mesmo: incansável,
tenaz, imbatível!
E
quando o astro rei dobrava o zénite e as sombras minguavam, no caminho que
curvava com a encosta, apareciam, por fim, as mulheres, com ajoujadas gigas de
verga à cabeça, transportando o jantar para os segadores, àquela hora já
sôfregos por comida e descanso.
Nesse preciso instante, o Amadeu, também
conhecido pelo Fodinhas, e a quem competia dar o lamiré, deixou de apontar a
dolente “Oh minha mãe, minha mãe/ Oh
minha mãe minha amada/ Quem tem uma mãe tem tudo/ Quem não tem mãe não tem
nada.”, repetida vezes sem conta, para lançar a mais animada “Alegrai-vos segadores/ Ligeira vem a
cozinheira/ Deixa o rancho no restolho/ Leva a panela com ela. “, no que
seria seguido por um coro de vozes roufenhas que se espraiavam, encostas acima
e abaixo, até se esvaírem em ecos por todo o vale.
Em
breve a mesa estava posta sobre alvas toalhas de linho estendidas no restolho,
o garrafão corria de mão em mão e das largas chaspas de alumínio saía o rancho
fumegante que, à mistura com os ervanços e o toucinho, também traziam humor e
alento.
É
então que, entre outros ditos e dichotes, Antero, tido por lacoeiro, que é
outra forma de em Trás-os-Montes se dizer mandrião, atirou:
-
Ó Manuel Santana! Tu parece que queres acabar com o trabalho!
Ao
que o visado se limitou a retorquir, erguendo por instantes a cabeça do prato
de esmalte, sem levantar a voz:
-
Ou eu acabo com ele ou ele comigo!
Estalou
a risota geral. Até o jumento do ti Raimundo, que até ali se mantivera em
silêncio tosando erva fresca numa agueira, desatou em tonitruante algazarra,
harmonizada de chios e ornejos.
Aproveitou
a deixa o Luís Lafrau que, já alegre da bebida, se saiu com esta, enquanto
passava o garrafão ao companheiro do lado:
-
Jaquim, dá de beber ao burro do Raimundo, não vá o doutor secar-se dos beiços.
Bem...!
Uns tantos anos depois, Manuel Santana, que emigrara e enriquecera lá pelas
américas, e outro fado não poderia ter quem tanto se devotava ao trabalho,
regressa à terra, com a pompa e circunstância requeridas pelo peso da fama e
das saudades, quando já há muito o asfalto se estendera de Mirandela a
Rebordelo, os postes do telefone e da electricidade emolduravam as ruas de Vale
das Rosas e o relógio do campanário martelava as horas, as meias e os quartos,
entre outras inovações menores.
Na
hora da recepção, com comes, bebes e umas mãos cheias de dólares lançados às
rebentinas, para gáudio da canalha e dos graúdos engalfinhados na disputa,
(aonde já ia o tempo em que, de igual forma, se batiam por uma mão cheia de rebuçados!),
Antero, como sempre manhoso que nem uma mula, interpela:
-
Ó Manuel Santana! Quer então dizer que sempre conseguiste acabar com o
trabalho!?
Ao
que Manuel Santana, com indisfarçável sotaque americano, de pronto contrapôs, sorridente,
em olímpica atitude:
- Com o meu trabalho
acabei, que já estou “retairede”. Mas
trago-vos muito “emploimente”, que é
do que vós andais precisados.
A
maioria dos circunstantes, afeiçoados à sonoridade da língua francesa nos
caminhos da emigração - que na verve do momento tinha a musicalidade da prosa
do americano Barac Obama - bem percebeu a mensagem do compatriota regressado de
terras de tio Sam.
Tanto
que o Amadeu ainda balbuciou, timidamente, um “alegrai-vos segadores“, mas seria
Antero a fazer-se ouvir, uma vez mais:
- Pois então venham lá os
“ emploimentes ” que trabalho já nós
temos de duro!
Reeditou-se
a risota da segada de há anos atrás. Ecoou, porém, estrondeante e obscena na lembrança
de Manuel Santana, que estaria a negociar com a Câmara Municipal facilidades
para instalar um moderno complexo agroalimentar no cruzamento da Bouça.
Consta
que, nessa mesma hora, Manuel Santana se decidiu por levar os empregos de volta
para a América e deixar por cá os trabalhos.
Por opção
do seu autor este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico.
Henrique
Pedro
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