Transmontana Nostalgia
(Revisto)
In Poemas da Guerra,
de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)
Caminhei descalço no restolho afiado
Resto triste dos fugidios trigais
E nos olivais sombrios
Procurei ninhos de doirados pintassilgos
A quem fartar de painço e prisão
Em troca de uma menos triste canção
Senti os pés escaldar no pó fervente dos caminhos
À torreira do sol do meio dia
Que secava figos em fragas arredondadas
À hora em que nem um só pio se ouvia
E dos rostos caíam gotas de suor salgadas
Ouvi a passarada cantar alegre
No espaço verde da devesa
E invejei-lhe a liberdade
Chamei pela matilha em agudos assobios
E ouvi o latir do galgo que célebre persegue a lebre
E o estampido do tiro que pronto a fere
Segui o voo soturno das rolas mansas
Defronte da minha escopeta
Quando já das cerejas só restavam passas
E mãos calosas agarravam palhas ásperas
Que depois de mil martírios iriam encher o celeiro
Dei caminho à água fresca nos regos do milho a estalar
E senti melões e melancias a inchar de Sol e húmus
Cantei romances pela segada e debiquei as uvas pela vindima
Namorei raparigas rosadas a cantar cantigas cristalinas
Nas manhãs louçãs de Primavera
Apanhei amoras nos silvedos quando já o bago pintava
E nas noras metálicas se apreciava a água
Tornei-me ousado a trepar alcantilados rochedos
Cresci são a respirar ar puro
E adorei a beleza cristã de papoilas e malmequeres
Não temi o Inverno rigoroso
Sorvi a neve
E o meu peito foi mais forte que a geada
Adorei Cristo em cada mendigo andrajoso
Que no primeiro degrau da escada
Rezava humildes Pai-nossos
Enquanto minha mãe condoída
Lhe enchia de azeite a lata
Armei o Presépio pelo Natal
Joguei ao rapa pela Consoada
Pus máscara pelo Carnaval
E botei o pião pela Quaresma
Senti
Em mim
O toque das Ave-marias
Quando pelo findar do dia
O arfar quente da terra fez de mim poeta
E calado vi descer a noite no fumo diáfano da aldeia
Em visão bíblica de deserto e oásis
Sorvi o caldo quente com a religiosidade de meus avós
E na lareira rubra encontrei doce temperança
Para os músculos doridos
Um dia emigrei e não desertei
Quando ademais fui a pátria defender
Sem nas terras distantes esquecer
O meu país e os meus pais
Porque vivo com vida
A vida de cada ano
Sou
E sempre serei
Transmontano!
Nangade (Cabo
Delgado-Moçambique), 6 de Outubro de 1972
Henrique António Pedro
Leia mais no link
seguinte:
https://henriquepedro.blogspot.com/2018/05/transmontana-nostalgia.html