Caminhei descalço no restolho afiado
Resto triste dos fugidios trigais
E nos olivais sombrios
Procurei ninhos de doirados pintassilgos
A quem fartava de painço e prisão
Em troca de uma mais alegre canção
Senti os pés escaldar
No pó fervente dos caminhos
À torreira do sol mediurno
Que secava os figos em fragas arredondadas
Na hora em que até as aves estavam caladas
E dos rostos caíam pingos de suor salgado
Ouvi a passarada cantar alegre
No espaço verde da devesa
E invejei-lhe a liberdade
Chamei pela matilha em agudos assobios
E ouvi o latir do galgo
Que célebre persegue a lebre
E o estampido do tiro
Que pronto a fere
Segui o voo soturno das rolas mansas
Defronte da minha escopeta
Quando já das cerejas restavam passas
E pelas mãos calosas corriam palhas ásperas
Que depois de mil martírios
Iriam encher o celeiro
Dei caminho à água fresca
Nos regos do milho a estalar
E senti melões e melancias a inchar
De sol e húmus
Cantei romances pela segada
E debiquei as uvas pela vindima
Amei raparigas rosadas
A cantarem cantigas cristalinas
Nas manhãs louçãs de Primavera
Apanhei amoras nos silvedos
Quando já o bago pintava
E nas noras metálicas se apreciava a água
Tornei-me ousado
A trepar alcantilados rochedos
Cresci são a respirar ar puro
E adorei a beleza cristã
De papoilas e malmequeres
Não temi o Inverno rigoroso
Sorvi a neve
E o meu peito
Foi mais forte que a geada
Adorei Cristo
Em cada mendigo andrajoso
Que no primeiro degrau da escada
Rezava humildes Pai-nossos
Enquanto minha mãe
Condoída ela mesma
Lhe enchia de azeite na lata
Armei o Presépio pelo Natal
Joguei ao rapa pela Consoada
Pus máscara pelo Carnaval
E botei o pião pela Quaresma
Senti
Em mim
O toque das Avé-Marias
Quando pelo findar do dia
O arfar quente da terra fez de mim poeta
E calado vi descer a noite
No fumo diáfano da aldeia
Em visão bíblica de deserto e oásis
Sorvi o caldo quente
Com a religiosidade de meus avós
E na lareira rubra
Encontrei doce temperança
Para os músculos doridos
Um dia emigrei
E nas terras distantes
Não esqueci meus pais
Vivo com vida
A vida de cada ano
Sou
E sempre serei
Transmontano!
In Poemas da Guerra,
de Mim e de Outrem (Editora Piaget-
2000)
Henrique Pedro
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