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quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

À hora de entre o cão e o lobo.

 


À hora de entre o cão e o lobo.

Meu tio Daniel, crente, temente de Deus e piedoso devoto de S. Francisco de Assis como era, dizia que até as pedras têm alma.

Das pedras duvido, mas daquele lobo com quem partilhei felizes momentos da minha infância encantada, fiquei com a convicção de que se a não tinha, alguém lha emprestara, ainda que por breves momentos.

Nos tempos em que esta história tem lugar Vila Nova de Monforte era um lugarejo perdido numa falda da Serra da Padrela, bem aconchegado de soutos frondosos, lameiros verdejantes e úberes linhares, aonde apenas se chegava a pé ou a cavalo, por veredas e caminhos carreteiros.

Excepcionalmente a velha furgoneta Ford de meu pai, do modelo dito “calças arregaçadas”, aventurava-se a galgar a serra envolta em nuvens de pó, rugidos, “ratés” e solavancos maiores que as montanhas, fazendo-se ouvir a quilómetros de distância, o que dava tempo a que a garotada da aldeia, mais lestos e silenciosos que a maravilhante máquina, me viesse esperar ao alto da Cruz.

Sujos e lanudos, lá apareciam o Acácio, o Carmim e o Valdemar que eu começava por fitar de soslaio, calado, desafiador, já a imaginar brincadeiras sem limites, por montes e vales, árvores e penedos.

Meu pai ia de volta à Terra Quente e ali ficava eu por largas temporadas entregue aos desvelos de minha madrinha Inocência.

Vivia-se de tudo que a terra dava, que era muito e inigualavelmente bom para os conceitos biológicos actuais: ar, água, batata, castanha, centeio, leite, boa saúde e santa liberdade. De que me restam saudades infinitas encerradas nas paredes do robusto casarão solarengo, originariamente presbitério construído por mãos godas convertidas que terá sido governado, nos primórdios, por um qualquer presbítero guerreiro, possivelmente também chamado Eurico. E que poderei muito bem ter sido eu noutra encarnação.

Meu irmão lobo, porém, que eu mesmo baptizara de Godo, sem saber a que onomástica canina fui buscar o nome, marcar-me-ia para sempre.

Fora-me oferecido por Romão, velho criado de servir, que o roubara do ninho rodeado de silvedos e acolchoado de fetos, bem escondido no fojo mais profundo do Vale de Murilha, quando a Primavera despontava em sinfonia de flores silvestres e no chilreio de carriças e toutinegras.

Romão, além do mais, garantiu-me que o resto da ninhada ficara intacta e que da refrega dos mastins com a mãe loba, interrompida ao primeiro assobio mal deitara as mãos à primeira cria, apenas resultaram arranhões de parte a parte. Isso bem o podia eu comprovar no focinho da cadela Salomé, que exibia comprido sulco pelado e ainda encarniçado.

-  Juro-te por Deus Nosso Senhor, Eurico, que a mãe e os irmãos ficaram todos escorreitos. – Mais me afiançou Romão, com ar sério e convincente.

Em breve o Godo abriria dois olhos enormes, oblíquos, azuis como o céu, cresceria desmedido de pernas delgadas, desempenado de corpo, focinho aguçado e orelhas cónicas pontiagudas. E se converteria no meu mais indefectível companheiro de lutas simuladas, correrias e algazarras.

À hora certa, quando ainda eu deambulava em vale de lençóis embalado em sonhos, mal o sol despontava no horizonte, ali bem próximo, na crista da serra, quase em sincronia com o estridente cantar dos galos, já o Godo, sorrateiro, empurrava a porta entreaberta do meu quarto para, com a delicadeza de um verdadeiro lobo, me despertar com repetidos toques do seu focinho frio e húmido na minha face quente.

Chorei no dia em que dele tive que me afastar quando, no início de um Outono frio e chuvoso, meu pai me arrancou à felicidade edénica de Vila Nova de Monforte para me iniciar na vida escolar em Vale de Salgueiro, a minha aldeia natal, bem no coração da úbere Terra Quente.

Apenas soube que o Godo também desaparecera poucos dias depois de nos termos separado, para não mais ser visto, quando mais tarde voltei a Vila Nova. Foi Romão o primeiro a dar-me a notícia, em jeito de pedido de desculpas e de conforto:

-Bô! Ele não era cristão. A natureza dele é vadiar pela serra. Porí, a estas horas, anda “praí” a encher o bandulho de lebres e de perdizes. Se ainda o não mataram!

Mesmo assim, corri as cercanias assobiando e gritando pelo seu nome, mas não tive outras respostas para lá do eco e do pio de uma coruja que, de um pinheiro alto, bateu as asas e desceu em voo picado lá para o mais fundo do vale.

Passaram, entretanto, alguns anos. Meia dúzia, se tantos!

A Páscoa caíra num mês de Março, frio e agreste como as encostas que medeiam entre o Barracão e Vila Nova, terra negra e sáfara, varrida por ventos gélidos, cortantes que nem barbeiro podão, onde apenas medravam a urze, a carqueja, o tojo e a giesta e a mão do semeador, de onde em onde, lançava esparsas searas de centeio e batata.

Tinha ficado assente que, desta vez, passaria as férias em Vila Nova, pelo que, tomei o meu posto na venturosa aventura de vencer o Brunheiro a partir de Chaves, no vagaroso autocarro da Auto Viação do Tâmega. Alcançámos o Barracão, naquele tempo não mais que duas ou três casas erguidas à sombra dos portentosos castanheiros que abrigavam a paragem da carreira, já a tarde declinava.

Do ambiente caloroso de alegria e convívio estudantil reinante no autocarro, saltei, lesto, para o silêncio e solidão da serra. No ar volteavam as primeiras fagulhas de neve, etéreas qual delicadas partículas de cinza que se evolavam de uma lareira anelada e invisível.

O frio era cortante, mordia-me a carne e os ossos, penetrando no pesado sobretudo de sarrobeco como se de ténue folha de papel se tratasse. Eram as imaginárias moscas brancas, materializadas nos seus efeitos. A atmosfera carregara-se de um cinzento imaculado. No céu e na terra reinava uma quietude quase absoluta. Por instinto de sobrevivência reconstruí, mentalmente, o trajecto, avaliei a distância e calculei o tempo. Por reflexo estuguei o passo. Num primeiro troço o caminho corria ladeado de espessas giestas. No mais alto da montanha limitava-se a dois sulcos paralelos rasgados no tapete de urze, que acolchoava toda a serra, pelos pesados rodados dos carros de bois para, quando começava a descer para a aldeia, se tornar pedregoso e acidentado, antes mesmo de penetrar no espesso souto cujas copas roçavam as primeiras casas.

 Em breve o cinzento do céu se tornaria mais carregado, impenetrável à vista. Escassos metros à minha frente pouco mais divisava que sombras paradas. A neve precipitava-se agora, sem voltejar, em grossos farrapos que se acamavam, fundindo-se em espesso e alvo manto.

 Ouvi o primeiro uivo! De imediato a imagem amiga do Godo me veio à lembrança. Ocorreu-me chamá-lo. Ainda ensaiei um breve assobio. Porém, num ápice, lembrei-me das histórias trágicas que ouvira sobre lobos que devoraram pessoas. Como a da professorinha de quem apenas restaram os sapatos e nem o jumento que montava se salvou. Ou a dos oitentas soldados de Napoleão que na campanha da Rússia foram dizimados por uma alcateia imensa não sem antes terem abatido a tiro trezentas feras. No campo de batalha apenas terão sido encontrados os uniformes esfarrapados e as espingardas.

Os uivos eram agora mais frequentes e vinham de várias direcções, ululados em concerto, como se houvesse trocas de mensagens a perpassar a serra, de lés a lés. Ensaiei correr mas retomei o passo com receio de perder o caminho.

 De repente, porém, dei-me conta de que era seguido a curta distância e uma certa segurança interior me recompôs o ânimo. Atrás de mim pressenti um ser que saltava para fora e para dentro do caminho, sem que eu o divisasse, até porque não me atrevia a olhar para trás e muito menos a parar. Mas um suave “frreee..., frreee..., frreee” de patas a comprimirem a neve era perceptível, descompassado do som mais pesado dos meus passos.

De novo me ocorreu chamar pelo Godo. Voltei a não o fazer por igualmente me ter lembrado de ouvir dizer que os lobos não têm olfacto mas possuem, em contrapartida, ouvido apuradíssimo. As alcateias orquestravam por perto e o propósito do meu inesperado companheiro de jornada talvez fosse mantê-las afastadas, não referenciando a minha presença, nem dando ensejo a que outros batedores caninos o fizessem. Prossegui encorajado por este positivo raciocínio.

Até que o odor característico de lenha queimada exalado das lareiras no ar silencioso, cinzento e frio, único prenúncio de humanização, me anunciou a tranquilizadora proximidade do povoado.

Em breve reconheci os castanheiros familiares, passei a ouvir o gorjeio líquido da fonte comunitária, mesmo defronte da capela de Santo António e, mais uns passos, estava a bater sofregamente a aldraba de ferro do robusto portão de castanho. No pátio interior os mastins saltaram, de imediato, em algazarra desenfreada.

 Atrevi-me, então, a olhar para trás. Claramente exposto sobre o muro mais próximo lá estava o Godo, corpulento, imóvel, suavemente ofegante, de orelhas espetadas, sentado nas patas traseiras qual impassível guardião. Só quando, de dentro, rodaram o pesado ferrolho, não sem antes eu levantar o braço em gesto de saudação e gritar um agradecido “ vai irmão!”, a enigmática criatura desapareceu de um salto, mergulhando, por magia, na névoa escura em que já se diluía a derradeira luz do dia e a noite ganhava os seus próprios contornos. Ao lusco-fusco. À hora de entre o cão e lobo!

Falta dizer que a primeira coisa que fiz, na manhã seguinte, foi ir agradecer a Santo António, de quem eu tanto me lembrara, embora só agora o confesse, durante aquela inolvidável travessia da inóspita serra, a graça de estar ali, ajoelhado, e não a ser digerido, retalhado às postas, pelo estômago de qualquer lobo esfaimado que não o Godo.

Henrique António Pedro (in Antologia de Autores Transmontanos, Durienses e da Beira Transmontana-Maio 2018)




terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Caldo de castanhas com figos secos

 


Caldo de castanhas com figos secos

Em tempos que já lá vão, muito embora permaneçam bem vivos na memória de muitos, a romaria da Senhora da Saúde de Valpaços era o ponto de encontro primordial das gentes da Terra Quente e da Montanha.

 Sendo que os fregueses das aldeias do lado da Terra Quente do lendário Rabaçal, tratados por “figacheiros” pelos da Montanha, se referiam a estes seus vizinhos do lado de lá do rio como os “montanheses”.

O conceito de Montanha era assim preferido ao de Terra Fria, talvez porque o relevo sobranceiro não alcançasse as alturas das terras de Bragança e Miranda, não deixando, por isso, de ser marcante a diferenciação climática, edáfica e agrária, consumada em distintas idiossincrasias.

 Ainda assim, as terras mais altas de onde o Rabaçal e o Tuela descem, lá das bandas de Vinhais, mereciam o epíteto de “Serra”, simplesmente.

Na Terra Quente, genericamente xistosa, cultivava-se, antes do abastardamento agrário provocado pela CEE, a oliveira, o trigo, o vinho e o figo, enquanto na Montanha, marcadamente granítica, predominavam a castanha, a batata, o centeio e a pecuária.

De tudo isto resultavam fluxos e refluxos afectivos, culturais e comerciais relevantes: trocava-se mel por azeite, comerciava-se batata, castanha, vinho e concertavam-se casamentos.

Assim era que, consoante a época, os montanheses amimavam os seus amigos figacheiros com “magustos de castanhas” logo que os ouriços as davam à luz e os figacheiros os seus amigos montanheses com cestas de figos e uvas acabadinhos de amadurar.

Mas era na congregante romaria valpacense que mutuamente se privilegiavam com gracejos, abraços e beijos, e amiúde se encetavam derriços e consumavam noivados. Elucidativa é a cantiga, verdadeiro ícone do folclore regional, que rezava assim:

Oh minha mãe deixe, deixe/ Oh minha mãe “deixemir” (deixe-me-ir) / Ao arraial a Valpaços/ Que eu vou e torno a vir.

Manda a verdade que se diga, porém, que não raras vezes a alegria genuína dos arraiais era perturbada por tumultos de índole bairrista motivados, por exemplo, pela disputa das fragas do recinto festivo em que os romeiros das diferentes aldeias se assentavam para merendar ou simplesmente descansar e mais comodamente assistir ao deslumbrante fogo-de-artifício.

 Sem esquecer que no tempo das segadas, ranchos de montanheses organizados em camaradas, desciam à Terra Quente para desembaraçar o aperto da ceifa dos trigais e, inversamente, os da Terra Quente subiam à Montanha para agilizar ceifa do centeio.

Segadores que, como é óbvio, eram portadores de todo o tipo de mensagens que muito contribuíam para o mútuo relacionamento dos povoados, por regra acantoados no seu isolamento peculiar.

Daí que quando os da Terra Quente se cruzavam com os da Montanha era quase certo ouvir-se esta amistosa chalaça: “Montanhês da montanha, compõe três com uma castanha!”. Sendo que o dito recíproco não era menos gozoso: “ Figacheiro da Terra Quente, figos secos e aguardente!”.

Isto acontecia em tempos de grande austeridade, quando os transmontanos subsistiam com o que tiravam da terra com muito suor e à força de braços, de bois e muares.

Quando se ceava e seroava à lareira e à luz da candeia e apenas se abandonava o lar para cumprir o serviço militar ou procurar melhor vida além-mar.

Tempo em que tribos de ciganos deambulavam entre a Terra Quente e a Montanha com poiso assegurado em palheiros e currais, sustentados pela generosidade cristã dos aldeanos e do que, à sorrelfa, rapinavam das hortas que marginavam os caminhos.

Justiça lhes seja feita, porém. Também compravam e vendiam cavalgaduras nas feiras sendo que os animais de unha rachada estavam fora do seu alcance. Eventualmente também exerciam os misteres de cesteiro e latoeiro e as mulheres liam a sina, mas só excepcionalmente deitavam a mão à enxada ou à charrua.

Posto isto, vem a propósito lembrar o abençoado caldo de castanhas com figos secos, ou do Dia dos Fiéis Defuntos, que dizem ter sido inventado por Benigna Bilhó, montanhesa de Monte de Arcas, terra farta de batata e castanha, que casara com um figacheiro de Vale de Telhas, pelo que, enquanto o marido fora vivo, nunca em casa lhe faltaram chicharros e figos secos.

Receita supimpa a de Benigna, que punha amarfinados bilhós a nadar no suculento puré de castanha, com dois ou três figos secos à revelia, em comunhão com olhos de couve, feijão branco e os afamados chicharros, que nunca voltam a cara uns para os outros, o que fundamenta este outro dito popular: “é mau como os chicharros!”. Tudo temperado com o melhor azeite da Terra Quente, quanto bonde, claro está.

Benigna Bilhó, já velhinha de provecta idade morava só, arrastando-se como podia pelas ruas da aldeia e pela pequena horta de ao pé da porta, que não era tudo que lhe restava, porque dores, doenças e lamúrias as tinha para dar e vender:

- Oh, Nossa Senhora não me levar! Oh, Nossa Senhora não me levar! Oh, Nossa Senhora não me levar!- Repetia, vezes sem conta, por tudo e por nada.

Até que um dia, teve ainda ela o ensejo de o contar, Nossa Senhora lhe apareceu, predisposta a fazer-lhe a vontade:

- Prepara-te, Benigna, que tenho lugar reservado para ti, lá no Céu. – Ter-lhe-á dito a Divina Mãe.

Benigna estremeceu. Caiu-lhe a alma aos pés. De pronto a apanhou e a recolocou no seu lugar. Recomposta ripostou:

- Ó minha Nossa Senhora! Deixai-me, ao menos, viver até ao Natal que está à porta, para me poder consolar, pela última vez e ganhar forças para a viagem, com o caldinho de castanhas de que tanto gosto. Prometo que Vo-lo-dou a provar.

Terá anuído a Divina Mãe à piedosa petição de Benigna. Também pelo prometido caldo de castanhas com figos secos, claro está. E porque não?!

Mas não por muito tempo mais, porém, porque quando ainda os ouriços não haviam parado de parir, a jovem Josefa, zeladora da capela de Santo Amaro, notando a falta de Benigna na missa do Dia dos Fiéis Defuntos, precisamente, foi encontrá-la morta, tombada junto borralho onde ainda fumegava uma panela de caldo de castanhas com figos secos.

 Sobre uma mesa improvisada, contou Josefa, estavam duas malgas vazias, sendo que uma só poderia ser a que Nossa Senhora utilizou.

De pronto se levantou uma lenda que conta que a Mãe do Céu, depois de ter provado o caldo de castanhas com figos secos cá na Terra, pôs Benigna Bilhó a cozinhá-lo para toda a corte celestial, assim o convertendo num verdadeiro manjar dos céus.

Tanto assim é que, no dizer dos mais espirituosos figacheiros, nos dias em que é servido caldo tão energético lá nas alturas, se ouve trovoar por toda a Montanha.

Ripostam os montanheses, contrapondo, dizendo que as trovoadas são dos figos secos e não das castanhas.

Henrique António Pedro in " Quem me dera cá o Tempo" -Outubro 2020

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Nas entranhas carcomidas de um castanheiro milenar

 



Eu já fui rei

 … um dia

 

Por breves mas felizes anos

de um plácido e amplo reino

sem equívocos nem enganos

que tinha por singular palácio

um velho e carcomido castanheiro

 

No tempo em que os montanheses

ainda usavam tamancos de amieiro

apascentavam rebanhos na serra

e desmatavam a terra safara

para semear searas de centeio

 

Enquanto dóceis ruminantes

manadas de bois e vacas

pastavam nos lameiros verdejantes

e nos úberes linhares

floriam abóboras e batatas

 

Palácio plantado num espaço breve

a norte de Vila Nova de Monforte

num contraforte isolado

votado ao sol e à neve

na suave serra da Padrela

 

Não havia então outra aldeia

tão fresca, farta e sadia

como ela

 

A árvore milenar erguia-se majestosa

à entrada do humilde povoado

com outras castaneáceas menores

a compor a sua corte silenciosa

um souto frondoso e bem copado

 

E diz-me o douto coração da memória

e da imaginação

de tão longínqua tradição

que já os próceres suevos e godos

por ali reuniam os seus povos em comícios

sob a ramagem de místicos castanheiros

ao luar dos mágicos solstícios

ou em certas manhãs de nevoeiro

para dirimir querelas entre clãs

celebrar alegres festejos rituais

consumar sagrados esponsais

ou eleger chefes guerreiros

sempre que por toda a serra

sopravam ventos de guerra

 

Foi também à sua beira

tão perto que muito ouriço

dava à luz já sobre o adro

que seria mais tarde edificado

pequeno templo votado a Santo António

oficina de religião e virtude

onde o aldeão piedoso orava

quebrantava o enguiço

e se demarcava do demónio

 

E a dois passos dali

mal espaçados

murmurejava noite e dia

a cristalina fonte comunitária

que dessedentava humanos

e animais adrede

e a água que era demais

seguia seu curso livremente

pela natureza em frente

tecendo rendilhada líquida rede

 

Até que nos tempos ditos modernos

a empestaram com pesticidas

supostamente para livrar de pragas a terra

mas que maiores chagas abriram

no ecossistema de toda a Serra

 

Era aquele o meu reino

de encanto

e os meus aposentos reais

as entranhas do tronco cavernoso

todas moldadas em castanho

onde apenas entrava quem eu queria

gente do meu tamanho

e que se aventurava

a tanto

 

Ali me refugiava sempre que a vida

cá fora me não sorria

ou recebia chamamento especial

para viajar pelo Cosmos

dentro de um castanheiro carcomido

transformado em nave espacial

 

Era eu o rei daquele plácido reino

com perfumado palácio no seio

dum carcomido castanheiro

onde aprendi a enfrentar todo o mal

a não ter medo de sonhar

a ser senhor de mim mesmo

e a ter um domínio só meu

 

 

E também aprendi

por experiência interior

nas entranhas carcomidas

de um castanheiro milenar

que a única competição justa e lícita

de um homem verdadeiro

é consigo próprio na verdade

 

E que com todos os demais

que no talento e no saber

nascem e são desiguais

apenas deverá haver

solidariedade

 

Vale de Salgueiro, 9 de Dezembro de 200720131122

Henrique Pedro


 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O que falta neste Natal é o que mais falta faz!



Muito embora a noite fosse fria

havia muito amor e muita luz

no divino presépio de Belém

em que nasceu Jesus

iluminado pelo luar

e pelas estrelas do céu

com anjos a cantar também

cânticos de esperança 

de fé

e de alegria

 

Também não faltou à Divina Criança

o calor do seio de Sua mãe, a Virgem Maria 

e a companhia de Seu pai, São José 

 

Porém

o que falta no nosso Natal, hoje em dia

não são prendas nem prebendas

ou sinecuras

tudo que o dinheiro atrai


O que há demais

são luzes e molduras

enfeites de encanto

a brilhar nos ares e nos lares

nas catedrais e nos centros comerciais


O que falta no nosso Natal, hoje em dia

é Alegria

é a ternura das mães e dos pais!

 

A luz do Amor e da Paz

é o que mais falta faz

ainda assim

 

O que falta neste nosso Natal

não é o Pai Natal, não!

 

É o Menino Jesus, isso sim!

 

Vale de Salgueiro, segunda-feira, 24 de Dezembro de 2012

Henrique António  Pedro


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

A mim sem mim me imagino


O destino cavalga as nuvens

disparando sobre mim

relâmpagos e trovões

 

Não sei que substância é a minha

quem é o eu que em mim habita 

que força move o meu pensamento

que sentimento me comove

que verdade me acredita

 

Temo a mim

anjo serafim

no mundo das ilusões

em mim

me perder

 

No meu cérebro bailam dilemas

que florescem em poemas

garantes da minha glória

 

Sinto medo de os esquecer

sem outro meio  de os escrever

que não seja na memória

 

A menos que alguém

como eu perdido também

os queira declamar

 

Por força do amor amar

rendo-me ao vento divino

a mim

sem mim

me imagino

 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 14 de Outubro de 2010

Henrique António Pedro


 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Dissecando a alma da mulher vaidosa


Até a mais rubra rosa tem espinhos

e no espírito de uma mulher virtuosa

sempre existe o espinho da vaidade

e mais espinhosos são os caminhos

se a rosa é vaidosa

 

Tomei alfinetes de prata e de marfim

para dissecar a alma de uma mulher vaidosa

que aparentava ser santa

acabei por me retalhar a mim

 

Dei-lhe a beber o veneno da fantasia

que não mata

mas encanta

se diluído em poesia

 

Provoquei-lhe mil desejos

e perdi-me em seus cabelos

olhos

seios

coxas

e humores

 

Povoei o meu ser de flores roxas

e dos ensinamentos sábios

que bebi em seus lábios

 

Apenas quando

por fim

o sopro da verdade me percorreu o corpo

e a punção da sexualidade

me alterou o coração

se libertou em mim o escopro da espiritualidade

 

De mil formas são as formas da vaidade

uma só a forma da verdade

 

Vale de Salgueiro, segunda-feira, 26 de Julho de 2010

Henrique António Pedro


domingo, 25 de outubro de 2020

Angola, Pátria mulata



Angola

Pátria mulata

Mista amor ardente

Europa e África

 

Rosto de ébano perfeito

Mãos cálidas de cavador

Gota de honrado suor

 

Frémito delirante de batuque

Sorriso puro de rubra romã

Grito de amor ao sol pôr

 

Queimada ateada na vastidão

Pirão amassado com o suor do rosto

Liberdade hasteada em pau de coqueiro

 

Cheiro a peixe seco em colmo de cubata

Picada regada de suor e angústia

Sanzala perdida nos confins do sertão

 

Pó de mandioca de alvura infinita

Canção de embalar de uma mãe preta

Rio espraiado em fauna e flora

 

Grácil mulher em sombra de palmeira

Rosa nascida por entre o capim

Fortaleza antiga a guardar a História

 

Tantã batido em ritmo novo

Amor e ódio a dilacerar o povo

 

Lufadas de guerra exaladas da terra

Humanismo de futuro

Glória e martírio das gentes

Sem cor.

 

Vendas Novas, 11 de Janeiro de 1971

 

in Poemas da Guerra de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2001)



terça-feira, 6 de outubro de 2020

Amo-a mas não gosto dela.

 


Amo-a

com enlevo

mais do que devo

ainda assim

lhe digo que não gosto dela

embora seja ela muito bela

 

Gostava isso sim

que ela fosse diferente

ou me fosse indiferente

 

Gostava de a amar e dela gostar

tal como ela é e como ela quer, mas…

sinceramente

não gosto dela!

 

Diz-me ela que não há mas nem meio mas

que é meu puro engano

ou a amo e gosto dela

assim como ela é

ou não amo

 

Saber que a amo

mas que não gosto dela

e que assim a ela não lhe gosto

como espero

e não reclamo

é o meu desgosto

 

Amo-a mas não gosto dela

nem a quero!

 

Henrique Pedro-1967