Caldo de castanhas com figos secos
Em
tempos que já lá vão, muito embora permaneçam bem vivos na memória de muitos, a
romaria da Senhora da Saúde de Valpaços era o ponto de encontro primordial das
gentes da Terra Quente e da Montanha.
Sendo que os fregueses das aldeias do lado da
Terra Quente do lendário Rabaçal, tratados por “figacheiros” pelos da Montanha,
se referiam a estes seus vizinhos do lado de lá do rio como os “montanheses”.
O
conceito de Montanha era assim preferido ao de Terra Fria, talvez porque o
relevo sobranceiro não alcançasse as alturas das terras de Bragança e Miranda, não
deixando, por isso, de ser marcante a diferenciação climática, edáfica e
agrária, consumada em distintas idiossincrasias.
Ainda assim, as terras mais altas de onde o
Rabaçal e o Tuela descem, lá das bandas de Vinhais, mereciam o epíteto de
“Serra”, simplesmente.
Na
Terra Quente, genericamente xistosa, cultivava-se, antes do abastardamento agrário
provocado pela CEE, a oliveira, o trigo, o vinho e o figo, enquanto na
Montanha, marcadamente granítica, predominavam a castanha, a batata, o centeio
e a pecuária.
De
tudo isto resultavam fluxos e refluxos afectivos, culturais e comerciais
relevantes: trocava-se mel por azeite, comerciava-se batata, castanha, vinho e
concertavam-se casamentos.
Assim
era que, consoante a época, os montanheses amimavam os seus amigos figacheiros
com “magustos de castanhas” logo que os ouriços as davam à luz e os figacheiros
os seus amigos montanheses com cestas de figos e uvas acabadinhos de amadurar.
Mas
era na congregante romaria valpacense que mutuamente se privilegiavam com gracejos,
abraços e beijos, e amiúde se encetavam derriços e consumavam noivados. Elucidativa
é a cantiga, verdadeiro ícone do folclore regional, que rezava assim:
Oh
minha mãe deixe, deixe/ Oh minha mãe “deixemir” (deixe-me-ir) / Ao arraial a
Valpaços/ Que eu vou e torno a vir.
Manda
a verdade que se diga, porém, que não raras vezes a alegria genuína dos
arraiais era perturbada por tumultos de índole bairrista motivados, por
exemplo, pela disputa das fragas do recinto festivo em que os romeiros das
diferentes aldeias se assentavam para merendar ou simplesmente descansar e mais
comodamente assistir ao deslumbrante fogo-de-artifício.
Sem esquecer que no tempo das segadas, ranchos
de montanheses organizados em camaradas,
desciam à Terra Quente para desembaraçar o aperto da ceifa dos trigais e,
inversamente, os da Terra Quente subiam à Montanha para agilizar ceifa do
centeio.
Segadores
que, como é óbvio, eram portadores de todo o tipo de mensagens que muito
contribuíam para o mútuo relacionamento dos povoados, por regra acantoados no seu
isolamento peculiar.
Daí
que quando os da Terra Quente se cruzavam com os da Montanha era quase certo ouvir-se
esta amistosa chalaça: “Montanhês da
montanha, compõe três com uma castanha!”. Sendo que o dito recíproco não
era menos gozoso: “ Figacheiro da Terra
Quente, figos secos e aguardente!”.
Isto
acontecia em tempos de grande austeridade, quando os transmontanos subsistiam
com o que tiravam da terra com muito suor e à força de braços, de bois e
muares.
Quando
se ceava e seroava à lareira e à luz da candeia e apenas se abandonava o lar
para cumprir o serviço militar ou procurar melhor vida além-mar.
Tempo
em que tribos de ciganos deambulavam entre a Terra Quente e a Montanha com
poiso assegurado em palheiros e currais, sustentados pela generosidade cristã
dos aldeanos e do que, à sorrelfa, rapinavam das hortas que marginavam os
caminhos.
Justiça
lhes seja feita, porém. Também compravam e vendiam cavalgaduras nas feiras
sendo que os animais de unha rachada estavam fora do seu alcance. Eventualmente
também exerciam os misteres de cesteiro e latoeiro e as mulheres liam a sina, mas
só excepcionalmente deitavam a mão à enxada ou à charrua.
Posto
isto, vem a propósito lembrar o abençoado caldo de castanhas com figos secos, ou
do Dia dos Fiéis Defuntos, que dizem ter sido inventado por Benigna Bilhó,
montanhesa de Monte de Arcas, terra farta de batata e castanha, que casara com
um figacheiro de Vale de Telhas, pelo que, enquanto o marido fora vivo, nunca
em casa lhe faltaram chicharros e figos secos.
Receita
supimpa a de Benigna, que punha amarfinados bilhós a nadar no suculento puré de
castanha, com dois ou três figos secos à revelia, em comunhão com olhos de
couve, feijão branco e os afamados chicharros, que nunca voltam a cara uns para
os outros, o que fundamenta este outro dito popular: “é mau como os
chicharros!”. Tudo temperado com o melhor azeite da Terra Quente, quanto bonde,
claro está.
Benigna
Bilhó, já velhinha de provecta idade morava só, arrastando-se como podia pelas
ruas da aldeia e pela pequena horta de ao pé da porta, que não era tudo que lhe
restava, porque dores, doenças e lamúrias as tinha para dar e vender:
-
Oh, Nossa Senhora não me levar! Oh, Nossa Senhora não me levar! Oh, Nossa
Senhora não me levar!- Repetia, vezes sem conta, por tudo e por nada.
Até
que um dia, teve ainda ela o ensejo de o contar, Nossa Senhora lhe apareceu,
predisposta a fazer-lhe a vontade:
-
Prepara-te, Benigna, que tenho lugar reservado para ti, lá no Céu. – Ter-lhe-á
dito a Divina Mãe.
Benigna
estremeceu. Caiu-lhe a alma aos pés. De pronto a apanhou e a recolocou no seu
lugar. Recomposta ripostou:
-
Ó minha Nossa Senhora! Deixai-me, ao menos, viver até ao Natal que está à porta,
para me poder consolar, pela última vez e ganhar forças para a viagem, com o
caldinho de castanhas de que tanto gosto. Prometo que Vo-lo-dou a provar.
Terá
anuído a Divina Mãe à piedosa petição de Benigna. Também pelo prometido caldo
de castanhas com figos secos, claro está. E porque não?!
Mas
não por muito tempo mais, porém, porque quando ainda os ouriços não haviam
parado de parir, a jovem Josefa, zeladora da capela de Santo Amaro, notando a
falta de Benigna na missa do Dia dos Fiéis Defuntos, precisamente, foi encontrá-la
morta, tombada junto borralho onde ainda fumegava uma panela de caldo de castanhas
com figos secos.
Sobre uma mesa improvisada, contou Josefa, estavam
duas malgas vazias, sendo que uma só poderia ser a que Nossa Senhora utilizou.
De
pronto se levantou uma lenda que conta que a Mãe do Céu, depois de ter provado o
caldo de castanhas com figos secos cá na Terra, pôs Benigna Bilhó a cozinhá-lo
para toda a corte celestial, assim o convertendo num verdadeiro manjar dos
céus.
Tanto
assim é que, no dizer dos mais espirituosos figacheiros, nos dias em que é
servido caldo tão energético lá nas alturas, se ouve trovoar por toda a Montanha.
Ripostam
os montanheses, contrapondo, dizendo que as trovoadas são dos figos secos e não
das castanhas.
Henrique António Pedro in " Quem me dera cá o Tempo" -Outubro 2020
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