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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Crónicas secretas do Afeganistão X Elif




X
Elif


Poderá ser santa a religião
Que macula de sangue a terra
E asperge ódio pelo céu?!

E asfixia com o véu da hipocrisia
Os sonhos, os sorrisos, os olhares da mulher
E a inibe de viver?!

Não! Mil vezes não!

E poderá ser divino 
O amor clandestino?

Sim. Mil vezes sim

Puro é o sexo com nexo
Sem constrangimentos de paixão
E apertos de coração
Ainda que possa não ser essa 
A senda da santidade

Homem e mulher livres
Que se amem de verdade
Sob o véu da poesia e da fantasia conexa
Saboreiam na terra
O sabor que tem no céu
A feliz felicidade

De nada vale sofismar

Foram o amor e a verdade
Que levaram Elif a se desvelar


Afeganistão, Ponto GPS Afrodite , 20092005

Daniel Rio Livre (Repórter de guerra fictício)


Apostila:
Reunimos com a célula “Falak” da RWA (Associação Revolucionária das Mulheres do Afegão), ainda nessa mesma noite e na mais rigorosa clandestinidade. O ambiente era extremamente pesado, de grande temor e constrangimento. Ouviam-se bater os corações e percebia-se que os olhos se agitavam, por de trás das redes das burcas, sobressaltados, em permanentes entreolhares de angústia.
A conferência, toda falada em pastó, língua de que não conheço uma só palavra que seja, foi, para minha surpresa, muito breve. Todas as mulheres começaram por ser beijadas pela minha companheira turca, alinhadas e sempre de rostos cobertos, para desgosto meu. Mantive-me sempre em silêncio, embora profundamente atento ao menor gesto ou ruído, pronto para reagir pelas armas a qualquer ameaça evidente.
Depois de um breve exposição da agente turca, e sem que tivesse havido diálogo, as mulheres dispersaram rapidamente, como sombras. Ficou apenas uma que nos conduziu, por corredores esconsos a um amplo aposento, onde acabamos por pernoitar.
Tapetes e almofadas espalhadas pelo chão, uma pequena mesa com duas chávenas, um bule repleto de chá-mate, frutas e acepipes diversos era tudo que o aposento comportava.
Sentamo-nos. Continuei mantendo o silêncio e a dar a iniciativa à minha estranha companheira que, num gesto abrupto, retirou a burca e soltou os cabelos. Fiquei perfeitamente siderado com tanta, beleza e juventude. Percebi, depois, o seu olhar determinado, meigo e sofrido. 
Apercebeu-se do meu espanto. Tranquilizou-me com um sorriso, levou os dedos à testa, depois aos lábios e soprou-me um beijo convidando-me a que também eu me libertasse da incómoda farpela exterior.
Sorri-lhe e repeti o gesto. E perguntei de imediato:
- Qual é o teu verdadeiro nome, posso saber?
- Claro! Tens todo o direito, porque eu já há muito que conheço o teu rosto e sei o teu nome. – Redarguiu, e continuou:
- Chamo-me Elif Shafak Sali. Elif, para ti. Sou turca, como já sabes, com ascendentes afegãs. E muçulmana.
Não resisti, e ainda confuso de espanto por tão encantadora criatura feminina que, sem que o esperasse, se revelava a meus olhos, retorqui:
- E que razões tão fortes te levam a tão grandes riscos e provações?
- Por certo o mesmo que a ti! – Rematou com convincente doçura.
Explicar-me – ia, depois, que a reunião foi rápida porque logo no cerimonial de abertura, ou seja, no cumprimento com um beijo a cada mulher, desconfiou haver uma agente taliban infiltrada, porquanto não usava o perfume que por ela é distribuído desde Cabul.
Por isso não deu ordem para que as mulheres destapassem os rostos e lhes explicou que receberiam instruções individuais, logo que possível, exortando-as a que mantivessem a calma.
E depois, nós, sós, falamos de tudo sem saber o que verdadeiramente nos ligava e o que sentíamos um pelo outro.
Inesperadamente, com naturalidade, libertamo-nos de vestes, armas e preconceitos, de todos os temores e angústias e entramos, abraçados, em êxtase.