No caminho vicinal que desde Vale de Salgueiro serpenteava
até Miradeses, quando a descida se acentuava percorrido que estava cerca de um
quilómetro, apartava-se à esquerda, caminhava-se mais uma escassa centena de
metros a esmo e …eis-nos no Olival Escuro!
Mais ampla visão tinha-se, todavia, se logo ali na Cruz
das Favas metêssemos pelo caminho do Campelo e, já lá no cimo, mesmo sem treparmos
ao Alto do Toco, espraiássemos o olhar pelo vasto emaranhado de vales e colinas
que se distende até à majestosa Serra da Santa Comba, que vista deste lado se
apresenta como um maciço único, azulado, mas que na realidade se compõe de duas
formosas montanhas, a serra dos Passos e a de Santa Comba propriamente dita,
separadas por um profundo vale transversal.
Baixando o olhar, obliquamente, quase a tocar os pés, deparávamos
com o temido lugar mesmo à frente do nariz: o sombrio e assombrado olival, do
qual até o próprio Sol se arredava. Melhor o iluminava a Lua, ainda assim,
fantasmagórica nas noites claras de Janeiro que é quando o luar não tem
parceiro, embora o de Agosto lhe bata no rosto.
Até nas horas do dia dava arrepios lá permanecer, ainda
que, ao que se dizia, as oliveiras do Olival Escuro eram as que melhor azeite
produziam, talvez por serem maioritariamente lentiscas. Azeite que de tão fino
era escolhido para alumiar ao Santíssimo o que indicia, seguramente, que o carácter
maligno do lugar estava na cabeça dos intervenientes, tão-somente.
Verdade é que naquele tempo o Olival Escuro era um local
estranho, assombrado, temido, onde durante o dia era raro encontrar vivalma, muito
embora os campos enxameassem de pessoas e animais votados às múltiplas tarefas
agrícolas. Ao Olival Escuro, porém, apenas
se ia durante o dia e pelo tempo estritamente necessário. Durante a noite só os
mais temerários lá se aventuravam.
Claro que havia homens destemidos naquele tempo. Homens
que nem deles próprios tinham medo e que, por isso mesmo, protagonizaram
episódios do mais fantástico realismo mágico que imaginar se pode.
É o caso de Aurélio Lebroto que foi ao Olival Escuro cortar
estacas para replantar, em noite já adiantada, embora de céu estrelado e
luarento dado que, ao que se dizia, para se garantir a tão afamada qualidade do
azeite, deveriam ser cortadas no mais cristalino silêncio nocturno.
Trepou à oliveira que mais asada lhe pareceu, sem a menor
sombra de medo e meteu mãos à obra. Logo à primeira machadada uma perdiz saltou
do ninho, assustada, em voo rasteiro e uma lebre viu-se forçada a largar a
cama, lesta, constrangida a procurar leito mais tranquilo e seguro. Nada que
minimamente perturbasse o Aurélio, ainda assim. O silêncio imaculado da noite passou
a ser apenas perturbado pelo som ritmado do machado a golpear o lenho até que, inesperadamente,
uma voz tonítrua, cavernosa, se lhe sobrepôs ecoando por todo o olival:
- Cortar corta-las, mas levar não as levas!
O Aurélio parou, pôs todos os sentidos em alerta, olhou à
roda, mas como nada de concreto vislumbrasse prosseguiu.
Não tardou, a
mesma voz fazia-se ouvir pela segunda vez, falada sabe se lá por quem:
- Cortar corta-las, mas levar não as levas!
Novamente o Aurélio suspendeu o trabalho, apurou ainda mais
o ouvido, olhou em volta por tempo mais dilatado, mas de novo de nada se deu
conta.
Ainda assim pensou: “Algum brincalhão a falar por um
embude, como na Serrada da Velha, para me meter medo”.
Segurou o machado com mais força, encarrapitou-se mais
firmemente na oliveira e continuou o trabalho. A voz, porém, não desistiu. Pela
terceira e última vez se fez ouvir, agora já mais próxima e assustadora:
- Cortar corta-las, mas levar não as levas!
Certo é que à terceira o Aurélio não resistiu. Tomou-se
de tremores, um calafrio estranho percorreu-lhe a espinha, largou o machado que,
ao que se dizia, permaneceu durante anos enterrado no tronco que golpeava,
saltou lesto da oliveira e escapuliu-se para casa, em passo estugado, sem olhar
para trás uma só vez que fosse. Branco como a cal e tremendo que nem varas
verdes, ainda encontrou tempo e forças para contar à mulher a sua aventura, rematando:
- Não vi nada, não vi fosse lá o que fosse, mulher. Mas
que escutei, escutei, com estes ouvidos que ainda ouvem bem: cortar corta-las,
mas levar não as levas!
Posto isto foi deitar-se, a tremer e a suar frio, pediu à
mulher que o agasalhasse com mais um cobertor e não mais saiu da cama.
- Coitadinho! Tão bom homem que era. Já nem para o
cemitério foi pelo próprio pé. - Lamentava-se, chorosa, a vizinha, a tia Elvira.
Não se pense, porém, que era só no mais cerrado e escuro
do olival que fenómenos extranaturais deste teor aconteciam. Também no caminho
bordejado de oliveiras outros acontecimentos mirabolantes eram reportados por transeuntes
notívagos.
Este outro feito fantástico era atribuído ao João Repolho,
homem agigantado, abrutalhado, fanfarrão, quando também outra noite por ali
passava, depois de demorada e agitada sessão de batota, lá para os lados de Rio
Torto. De acordo com o que mais tarde confidenciou aos amigos mais chegados,
embora sem se alongar muito, o que não obstou que o sucedido se tivesse
espalhado rapidamente, vinha ele a assobiar às bruxas e aos zangões, como dizia
ser seu hábito, quando por três vezes foi desafiado, de viva voz e de rajada,
por algo, ou alguém que não se deixou ver:
- Ó bufão, bufa lá, agora. Ó bufão, bufa lá, agora.
Ó bufão, bufa lá, agora.
- Se calhar foi a mesma voz que apoquentou o Aurélio. – Observou
um circunstante.
Claro que o João Repolho não bufou, não respondeu e muito
menos perguntou fosse lá o que fosse. Estugou o passo, porque quem tem cu tem
medo. Pelo sim pelo não, tirou do bolso a sevilhana que comprara na festa do
Domingo de Lázaro, em Verin, apertou a mola para soltar a lâmina disposto a pôr
a tripas ao luar a quem se lhe metesse à frente, fosse o que fosse ou quem
fosse e continuou o caminho de ouvido atento e pé ligeiro. Outro desfecho não teve
esta parlenda que não fosse, a partir daí, passar o Repolho a ser alvo de
chalaças que celebrizavam o dito “ Ó bufão, bufa lá, agora”. Mas sempre com ele
bem distante porque, como se viu, o Repolho não era homem para brincadeiras.
Também se contava que outro heróico notívago, o Arrãs, um
salta-pocinhas laracheador que amiúde recolhia a casa já de madrugada vindo sabe-se
lá donde e de que esconsos afazeres, noutra noite, quando passava pelo Olival
Escuro, deu de caras com um jumento ruço que tosava erva por entre as oliveiras,
mesmo à beira do caminho. À primeira vista pareceu-lhe o burro do Malaia que
talvez se tivesse escapulido da loja sem o dono dar conta.
-Vem mesmo a calhar. Monto-me nele e toco o jumento ao
dono. – Disse para consigo.
Mas como estava a
merujar e o jumento entretanto se embugara na erva orvalhada, achou melhor não
o fazer para não sujar as calças de “terylene” que estreara nesse mesmo dia. E
ainda bem que o não fez porque, mal virou costas, o jerico começou a crescer, a
crescer, desmedidamente, até que, quando as orelhas, enormes, já batiam nas
fragas do picoto das Couquelas, atirou dois traques medonhos que mais pareceram
tiros ou trovões e desapareceu, a escoucear, salvando montes e vales, lá para
os lados de Valverde.
Narração que outro conhecido noitibó, o Luís Melro, que nessa
noite andava a armar ratoeiras, ali perto, na Pala Quarteira, afiançava, jurando
que bem ouviu os peidos da criatura. E mais:
- A besta, ou fosse lá o que fosse, até deitava chispas
pelo cu, salvo seja, como se cagasse estrelas. Escusado será dizer que em paga
de tão firme testemunho o Luís Melro emborcava mais uns tantos copos de três. Às
custas do Arrãs, de quem havia de ser.
Numa outra ocasião, regressava o Chibinhas a casa, vindo
de Miradeses onde estivera a ajudar os compadres na mata reca, a que se seguira
o lauto banquete do costume, confecionado com os despojos do animal, já se sabe.
Vinha um tanto toldado, é certo, mas direito, sem medo mas desconfiado, porque
bem conhecia a fama do lugar. Só não sabia, ou não lhe veio à mente, que se
dava o caso de haver um defunto em Miradeses à espera do caixão.
Pois foi neste contexto que o Chibinhas, inopinadamente, se
deparou no começo da recta que bordejava o Olival Escuro, com uma funesta
criatura que descia em sentido contrário, com uma grinalda funerária enfiada no
pescoço, em que apoiava o esquife que transportava às costas, luzidio por força
do luar que se reflectia nas lantejoulas que o enfeitavam. Ademais a aparição entoava,
repetidamente, a sinistra litania:
- É para ti o caixão meu irmão. A cova é a tua nova
alcova. Lá no céu bem dormes ao léu.
Estacou de pronto,
o Chibinhas, fixou-se por breves instantes na aparição que não lhe pareceu
deste mundo, imaginou que seria para ele o caixão e… ala: desatou numa correria
louca em sentido contrário, de regresso a donde viera, só parando a bater freneticamente
à porta do compadre que já lhe apareceu em ceroulas e de candeia na mão porque estava
prestes a deitar-se e que, sobressaltado, de pronto lhe perguntou:
- Ele que foi, compadre? Saiu-lhe ao caminho algum medo? Alguém
lhe bateu?
Já dentro de casa, porta trancada, o Chibinhas explicou o
sucedido, gaguejando. Surgiu entretanto Etelvina, a comadre que, sorrindo, exclamou:
- Ó compadre, você é mesmo cagão, carago. Olhe que era o
maluco do Chupeta que foi a Vale de Salgueiro encomendar o caixão ao ti Álvaro
carpinteiro, que os faz na hora e por medida. Lá bebeu um copito a mais, por
certo, enquanto esperava. Não admira que viesse alegre.
Certo é que o
Chibinhas se ficou por Miradeses nessa noite.
Já agora, fiquem também a saber que não havia apenas homens
destemidos naquele tempo e que as mulheres, muito embora de uma só aqui se fale,
tinham lugar de destaque.
Chamava-se Carminda.
Era uma raparigaça. Bonita, asseada, de face rosada e buço fino, pernas bem torneadas
até onde as saias as deixavam ver. Vários a requestavam lá na aldeia, solteiros
e casados, com promessas aliciantes. Mas ela entendia guardar-se para aquele
que mais agrados e ganhos lhe garantia, pondo os olhos no Alfredo Lobão que embora
fosse bastante mais velho, era rico que nem porco e estava prestes a enviuvar, dado
que a mulher sofria de mal sem cura. Ainda que nunca tivessem chegado à fala e
muito menos a promessas e contratos, os olhares já diziam mais que as palavras.
Carminda, não tinha onde cair morta. Eram tantos lá em
casa que nem havia lugar à mesa e muito menos pão para todos. Por isso ela
andava à jeira para ajudar os pais a sustentar a filharada. Na altura da apanha
da azeitona escapulia-se pela calada da noite, para fazer uma brecha, um pequeno roubo no olival mais
a jeito. Produto que era vendido aos taberneiros como se fosse obtido
licitamente no rebusco, só permitido
depois da apanha.
Como é óbvio o
Olival Escuro era um local privilegiado para esse práctica costumaz para aqueles
que para tanto tinham coragem bastante. Assim foi que uma noite andava Carminda
debruçada, sozinha, descontraída, em silêncio, a apanhar azeitona do chão,
depois que ripara a que estava no ar ao alcance da mão, quando se apercebeu
duma sombra, enorme, agigantada, com recorte de capote e chapéu de aba larga, projectada
pelo luar, atrás de si.
Ergueu-se e voltou-se de repente, por reflexo, deparando
com um vulto em pé, imóvel, tenebrosamente em silêncio, de mãos nos bolsos, com
o chapéu a tapar-lhe o rosto, especado no sítio em que a sombra começava.
- Credo! Cruzes!
Vá de retro satanás - Exclamou enquanto se persignava. Como o vulto se mantivesse
mudo e imóvel Carminda desatou a correr que nem desalmada, ladeira acima, deixando
para trás a cesta e o saco já meado de azeitona. Seguiu-a a estranha criatura, mais vagarosa mas de passada mais larga, com as
botas brochadas a raspar ruidosamente no cascalho da lavoura.
Carminda só parou,
quando já rebentava de cansaço, no cabanal que havia lá bem no cimo da encosta e
que ainda tinha o chão acolchoado da palha limpa em que no Verão tenderam figos
a secar. Transida de medo, agachou-se num canto, com braços e mãos a tapar a
cabeça, convencida de que essa seria a melhor maneira de se defender. Enganou-se
ou não terá relatado os factos como na verdade se passaram.
Contou que fora abusada de todas a formas e feitios, sem
saber por quem, nem se era humana ou diabólica a criatura, porque desfalecera e
só veio a si quando já o sol raiava.
- Porí foi o lobisomem.-
Sugeriu Perpétua, uma amiga, tentando confortá-la.
- Ai credo, mulher, não digas tal!- ripostou Carminda, melindrada.
A verdade é que
nove meses depois, o escândalo já corria de boca em boca desde que os primeiros
sinais de gravidez se fizeram notar, dando aso a mil estapafúrdias conjecturas,
nascia um menino lindo, rechonchudo, que era a cara chapada da mãe, sem a menor
parecença com qualquer homem da aldeia, por mais que as bisbilhoteiras se
esforçassem por encontrar semelhanças.
A Joana Jalaca, cotada chocalheira, ainda teve ensejo de
invectivar o Xispas, guardador de olivais:
- Ó Xispas, então sempre foste tu que emprenhas-te a Carminda
lá para os lados do Olival Escuro?
-Eu?! Nem pensar. Mas que tenho pena, lá isso tenho.-
Ripostou prontamente o Xispas calando de vez a Joana que meteu a viola no saco embora
continuando a tocar lá freguesia.
Para adensar, ou aclarar, o mistério o Alfredo Lobão que
era abastado mas de poucas falas, assim disfarçando os muitos segredos que
levou consigo para a cova, morreu inesperadamente, primeiro que a mulher. Segredos
que só a Rosa Cachopa conhecia, apesar de paralítica,
surda e muda, porque do seu janeluco, que dava directamente para o pátio do
Lobão, nas longas noites de vigília, bem via, embora não ouvisse, nem falasse,
coisas do arco-da-velha que o comum dos mortais ignorava.
Certo é que desconhecido ficou para sempre o pai da
criança. Incógnito e anónimo, como argumentava o velho Tancredo, encarregado do
Posto de Registo Civil, para se recusar, terminantemente, a registar o enigmático
infante gerado no mal-afamado Olival Escuro e ainda por cima em noite de luar e
sem que se soubesse por quem e com que artes.
Até o padre Rafael, piedoso por demais, entendeu por bem não
passar a respectiva cédula de baptismo embora se predispusesse a baptizar o
menino, por caridade e para o proteger das investidas do maligno. Seria a
própria mãe a baptizá-lo isto é, a dar-lhe nome, magoada com a cruel e injusta recusa
das autoridades:
- Ai o meu filho não vai ter papeis? Pois limpem o rabo com
eles. Nome vai ter que sou eu que lho ponho e é para já: Zé Ninguém. Vai
Chamar-se Zé Ninguém!
E assim foi que um
dia qualquer nasceu o Zé Ninguém cidadão do Olival Escuro. Um Zé Ninguém que nunca
foi à tropa, dado que nunca constou de qualquer recenseamento civil ou militar.
Um Zé Ninguém apátrida. Um Zé Ninguém que teve mulher e filhos mas que nunca se
casou. Um Zé Ninguém que viveu sem ter existido. Um Zé Ninguém que não morreu
porque ninguém lhe passou a certidão de óbito.
O Olival Escuro lá está, ainda que profundamente transformado. Esconjurado de todo o mal, continua a produzir o melhor azeite do mundo, embora destronado pela energia eléctrica que passou a alimentar as lamparinas que agora alumiam o Santíssimo.
in Rostos da Terra (Academia de Letras de Trás-os-Montes-Maio 2019)
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