Voluptuosa Idade
Agora que passei dos setenta
que o cabelo rareia e as rugas da face concorrem com as do ventre
já sinto necessidade de usar chapéu para me proteger do calor de Verão
que
mordisca a pele desguarnecida pela força dos anos
e do frio de Inverno que me arrepia com o mesmo arrepio
que
me causou a água fria da pia baptismal
no meu crânio escalvado de recém-nascido
Agora que já me apetece dormitar à beira da lareira
com o mesmo enlevo com que em menino
adormecia em sonhos no escano fronteiro
bafejado pelas labaredas crepitantes da raiz de oliveira
e pelo vapor do caldo verde que fervia na panela cantante
em intróito ritmado de sagrada ceia
protegido pela proximidade atenta de minha mãe
e mais além por uma estrela distante
que luzia
noite
e dia
Agora quando a púbis da mulher sensual e jovem
já não me provoca voluptuosidade, heroísmo ou vaidade
perco-me em truísmos de ternura, estética e saudade
e já não penso as mesmas ideias de domínio e conquista da Terra inteira
Agora
que passei das setenta
outras
volúpias de prazer me envolvem, me animam e me fazem viver
sonhar
mais alto ainda porque fui feliz na infância
fui rei
fui príncipe
fui criança
e acabo de renunciar às glórias do mundo
e partir à reconquista do Universo pelo amor e pela palavra
de
um mero verso
Agora e aqui
ensaio amar-me a mim mesmo com verdade
e a amar os outros
o próximo e o distante
como diz Jesus
na liturgia da palavra de Cristo
e na
prática de Francisco de Assis
Respeito a diferença, a humildade da erva rasteira
a simplicidade do cronómetro do caracol
que contemporiza os ponteiros do relógio com os desígnios do sol
Agora e aqui vivo o dia-a-dia com o labor da formiga
na plenitude e autenticidade da paz e liberdade das nuvens e das aves
deixo que a alma amadureça de verdade como a cereja
por força do húmus e dos raios cósmicos
trazidos pelo sol
pelo luar
pela dor
e
pelo amor
Esta a minha heresia maior
a minha igreja:
não conseguir viver
ver e sentir
agir e amar
sem uma absoluta referência divina, terna, eterna, terrena
Agora sim
sinto sede de viver sem que tenha medo de morrer
Não anseio passar à posteridade
procuro apenas a imortalidade
Henrique
António Pedro
Vale
de Salgueiro, 10 de Setembro de 2007