À hora de entre o cão e o lobo.
Meu tio Daniel, crente, temente de Deus e piedoso devoto de S. Francisco
de Assis
como era, dizia que até as pedras têm alma.
Das pedras duvido, mas daquele lobo com quem partilhei felizes momentos da
minha infância encantada, fiquei com a convicção de que se a não tinha, alguém
lha emprestara, ainda que por breves momentos.
Nos tempos em que esta história tem lugar Vila Nova de Monforte era um
lugarejo perdido numa falda da Serra da Padrela, bem aconchegado de soutos
frondosos, lameiros verdejantes e úberes linhares, aonde apenas se chegava a pé
ou a cavalo, por veredas e caminhos carreteiros.
Excepcionalmente a velha furgoneta Ford de meu pai, do modelo dito “calças
arregaçadas”, aventurava-se a galgar a serra envolta em nuvens de pó, rugidos,
“ratés” e solavancos maiores que as montanhas, fazendo-se ouvir a quilómetros
de distância, o que dava tempo a que a garotada da aldeia, mais lestos e silenciosos
que a maravilhante máquina, me viesse esperar ao alto da Cruz.
Sujos e lanudos, lá apareciam o Acácio, o Carmim e o Valdemar que eu começava
por fitar de soslaio, calado, desafiador, já a imaginar brincadeiras sem limites,
por montes e vales, árvores e penedos.
Meu pai ia de volta à Terra Quente e ali ficava eu por largas temporadas
entregue aos desvelos de minha madrinha Inocência.
Vivia-se de tudo que a terra dava, que era muito e inigualavelmente bom
para os conceitos biológicos actuais: ar, água, batata, castanha, centeio,
leite, boa saúde e santa liberdade. De que me restam saudades infinitas
encerradas nas paredes do robusto casarão solarengo, originariamente
presbitério construído por mãos godas convertidas que terá sido governado, nos
primórdios, por um qualquer presbítero guerreiro, possivelmente também chamado
Eurico. E que poderei muito bem ter sido eu noutra encarnação.
Meu irmão lobo, porém, que eu mesmo baptizara de Godo, sem saber a que
onomástica canina fui buscar o nome, marcar-me-ia para sempre.
Fora-me oferecido por Romão, velho criado de servir, que o roubara do
ninho rodeado de silvedos e acolchoado de fetos, bem escondido no fojo mais
profundo do Vale de Murilha, quando a Primavera despontava em sinfonia de flores
silvestres e no chilreio de carriças e toutinegras.
Romão, além do mais, garantiu-me que o resto da ninhada ficara intacta e
que da refrega dos mastins com a mãe loba, interrompida ao primeiro assobio mal
deitara as mãos à primeira cria, apenas resultaram arranhões de parte a parte. Isso
bem o podia eu comprovar no focinho da cadela Salomé, que exibia comprido sulco
pelado e ainda encarniçado.
-
Juro-te por Deus Nosso Senhor, Eurico, que a mãe e os
irmãos ficaram todos escorreitos. – Mais me afiançou Romão, com ar sério e
convincente.
Em breve o Godo abriria dois olhos enormes, oblíquos, azuis como o céu,
cresceria desmedido de pernas delgadas, desempenado de corpo, focinho aguçado e
orelhas cónicas pontiagudas. E se converteria no meu mais indefectível
companheiro de lutas simuladas, correrias e algazarras.
À hora certa, quando ainda eu deambulava em vale de lençóis embalado em
sonhos, mal o sol despontava no horizonte, ali bem próximo, na crista da serra,
quase em sincronia com o estridente cantar dos galos, já o Godo, sorrateiro,
empurrava a porta entreaberta do meu quarto para, com a delicadeza de um
verdadeiro lobo, me despertar com repetidos toques do seu focinho frio e húmido
na minha face quente.
Chorei no dia em que dele tive que me afastar quando, no início de um
Outono frio e chuvoso, meu pai me arrancou à felicidade edénica de Vila Nova de
Monforte para me iniciar na vida escolar em Vale de Salgueiro, a minha aldeia
natal, bem no coração da úbere Terra Quente.
Apenas soube que o Godo também desaparecera poucos dias depois de nos
termos separado, para não mais ser visto, quando mais tarde voltei a Vila Nova.
Foi Romão o primeiro a dar-me a notícia, em jeito de pedido de desculpas e de conforto:
-Bô! Ele não era cristão. A natureza dele é vadiar pela serra. Porí, a
estas horas, anda “praí” a encher o bandulho de lebres e de perdizes. Se ainda o não mataram!
Mesmo assim, corri as cercanias assobiando e gritando pelo seu nome, mas
não tive outras respostas para lá do eco e do pio de uma coruja que, de um
pinheiro alto, bateu as asas e desceu em voo picado lá para o mais fundo do
vale.
Passaram, entretanto, alguns anos. Meia dúzia, se tantos!
A Páscoa caíra num mês de Março, frio e agreste como as encostas que
medeiam entre o Barracão e Vila Nova, terra negra e sáfara, varrida por ventos
gélidos, cortantes que nem barbeiro podão, onde apenas medravam a urze, a carqueja,
o tojo e a giesta e a mão do semeador, de onde em onde, lançava esparsas searas
de centeio e batata.
Tinha ficado assente que, desta vez, passaria as férias em Vila Nova, pelo
que, tomei o meu posto na venturosa aventura de vencer o Brunheiro a partir de
Chaves, no vagaroso autocarro da Auto Viação do Tâmega. Alcançámos o Barracão,
naquele tempo não mais que duas ou três casas erguidas à sombra dos portentosos
castanheiros que abrigavam a paragem da carreira, já a tarde declinava.
Do ambiente caloroso de alegria e convívio estudantil reinante no
autocarro, saltei, lesto, para o silêncio e solidão da serra. No ar volteavam as
primeiras fagulhas de neve, etéreas qual delicadas partículas de cinza que se
evolavam de uma lareira anelada e invisível.
O frio era cortante, mordia-me a carne e os ossos, penetrando no pesado
sobretudo de sarrobeco como se de ténue folha de papel se tratasse. Eram as
imaginárias moscas brancas, materializadas nos seus efeitos. A atmosfera
carregara-se de um cinzento imaculado. No céu e na terra reinava uma quietude
quase absoluta. Por instinto de sobrevivência reconstruí, mentalmente, o
trajecto, avaliei a distância e calculei o tempo. Por reflexo estuguei o passo.
Num primeiro troço o caminho corria ladeado de espessas giestas. No mais alto
da montanha limitava-se a dois sulcos paralelos rasgados no tapete de urze, que
acolchoava toda a serra, pelos pesados rodados dos carros de bois para, quando
começava a descer para a aldeia, se tornar pedregoso e acidentado, antes mesmo de
penetrar no espesso souto cujas copas roçavam as primeiras casas.
Em breve o cinzento do céu se
tornaria mais carregado, impenetrável à vista. Escassos metros à minha frente
pouco mais divisava que sombras paradas. A neve precipitava-se agora, sem
voltejar, em grossos farrapos que se acamavam, fundindo-se em espesso e alvo
manto.
Ouvi o primeiro uivo! De imediato a
imagem amiga do Godo me veio à lembrança. Ocorreu-me chamá-lo. Ainda ensaiei um
breve assobio. Porém, num ápice, lembrei-me das histórias trágicas que ouvira
sobre lobos que devoraram pessoas. Como a da professorinha de quem apenas restaram
os sapatos e nem o jumento que montava se salvou. Ou a dos oitentas soldados de
Napoleão que na campanha da Rússia foram dizimados por uma alcateia imensa não
sem antes terem abatido a tiro trezentas feras. No campo de batalha apenas terão
sido encontrados os uniformes esfarrapados e as espingardas.
Os uivos eram agora mais frequentes e vinham de várias direcções, ululados
em concerto, como se houvesse trocas de mensagens a perpassar a serra, de lés a
lés. Ensaiei correr mas retomei o passo com receio de perder o caminho.
De repente, porém, dei-me conta de
que era seguido a curta distância e uma certa segurança interior me recompôs o
ânimo. Atrás de mim pressenti um ser que saltava para fora e para dentro do
caminho, sem que eu o divisasse, até porque não me atrevia a olhar para trás e
muito menos a parar. Mas um suave “frreee..., frreee..., frreee” de patas a
comprimirem a neve era perceptível, descompassado do som mais pesado dos meus
passos.
De novo me ocorreu chamar pelo Godo. Voltei a não o fazer
por igualmente me ter lembrado de ouvir dizer que os lobos não têm olfacto mas
possuem, em contrapartida, ouvido apuradíssimo. As alcateias orquestravam por
perto e o propósito do meu inesperado companheiro de jornada talvez fosse
mantê-las afastadas, não referenciando a minha presença, nem dando ensejo a que
outros batedores caninos o fizessem. Prossegui encorajado por este positivo
raciocínio.
Até que o odor característico de lenha queimada exalado das lareiras no ar
silencioso, cinzento e frio, único prenúncio de humanização, me anunciou a
tranquilizadora proximidade do povoado.
Em breve reconheci os castanheiros familiares, passei a ouvir o gorjeio líquido
da fonte comunitária, mesmo defronte da capela de Santo António e, mais uns
passos, estava a bater sofregamente a aldraba de ferro do robusto portão de
castanho. No pátio interior os mastins saltaram, de imediato, em algazarra desenfreada.
Atrevi-me, então, a olhar para
trás. Claramente exposto sobre o muro mais próximo lá estava o Godo, corpulento,
imóvel, suavemente ofegante, de orelhas espetadas, sentado nas patas traseiras
qual impassível guardião. Só quando, de dentro, rodaram o pesado ferrolho, não
sem antes eu levantar o braço em gesto de saudação e gritar um agradecido “ vai
irmão!”, a enigmática criatura desapareceu de um salto, mergulhando, por magia,
na névoa escura em que já se diluía a derradeira luz do dia e a noite ganhava
os seus próprios contornos. Ao lusco-fusco. À hora de entre o cão e lobo!
Falta dizer que a primeira coisa que fiz, na manhã seguinte, foi ir
agradecer a Santo António, de quem eu tanto me lembrara, embora só agora o
confesse, durante aquela inolvidável travessia da inóspita serra, a graça de
estar ali, ajoelhado, e não a ser digerido, retalhado às postas, pelo estômago
de qualquer lobo esfaimado que não o Godo.
Henrique António Pedro (in Antologia de Autores Transmontanos, Durienses e da Beira Transmontana-Maio 2018)