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sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Abro a porta de trás da minha alma

 


Abro a porta de trás da minha alma

que dá directamente para o mundo

 

Ouço sons ladrados no silêncio da noite

pios fantasmagóricos de aves noctívagas

tiros

sons de pneus a chiar

sirenes de ambulâncias

choros de crianças

gritos de fome e de dor

clamor de revolta

cães à solta

insultos

blasfémias

ódios gritados

amores martirizados

violências domésticas

ruídos de discotecas

 

Vejo milhares de mãos entendidas

no umbral

tentando forçar a entrada

sem nada me pedir

 

Dou-lhes poemas

do meu jantar

frugal

para eles caviar

certamente

 

Nada mais tenho para lhes dar

 

Reluzem luzes semeadas na escuridão da Terra

tremeluzem luzeiros na obscuridade do Firmamento

 

Acendem-se angústias na penumbra do meu ser

tenho o coração em chaga viva

a arder

 

Fico pregado no Crucifixo que trago dependurado ao peito

ofusca-me a luz do arrebol

 

Para quando o Apocalipse, Senhor?

Já no próximo eclipse

do Sol?

 

Misericórdia!

Já?!Assim tão de repente?

 

Dai-nos ao menos tempo para vestir a Lua

que anda nua

inocente

 

Vale de Salgueiro, Terça-feira 3 de Junho de 2008

Henrique António Pedro


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Quem nunca pecou que me atire a primeira pedra

 


Entrei no templo mais escuro e distante para me confessar

como manda a religião

 

Por meu livre alvedrio deixei os pecados mais leves à porta

e avancei na obscuridade

arrastando-me no lajedo frio como se condenado ao degredo

tal o peso que me curvava dos pecados mortais

 

Não encontrei padre algum, porém, para me ouvir em confissão

pelo que apelei ao Papa mas também ele estava ocupado a pecar

 

Apenas um santo ermita guardião postado à saída

me aspergiu com água benta e me disse

que só pecam os anjos e os cidadãos banais

os donos do mundo não pecam porque cumprem o seu mister

que é pecar

 

Aqui e agora por isso me confesso publicamente

a vós irmãos

 

E se vós me perguntais de que pecados me confesso

direi apenas que ando no mundo por ver andar os outros

os meus pecados são iguais aos vossos

tantos e tais como os demais

 

Quem nunca pecou que me atire a primeira pedra, portanto

ainda que eu não duvide que algum de vós seja santo

 

 

Vale de Salgueiro, 2 de março de 2017

Henrique António Pedro

 

 

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Deus?! É assim como Deus é!


Deus?!

É como o Amor é!

Só sente e vê o Amor

ou no Amor crê

quem anda enamorado

 

Deus?!

É assim como o Saber é!

Só sabe quem entusiasmado

procura saber

 

Deus?!

É assim como a Verdade é!

Só a conhece quem é verdadeiro

por inteiro

 

Deus?!

É assim como a Paz é!

Só a tem quem a faz

 

Deus?!

É assim como a Felicidade é!

Só a vive quem com esperança

a espera

 

Deus?!

Deus é assim como Deus é!

Apenas nos é dado acreditar

ou desconfiar

como Ele é

 

Deus?!

Deus é como Deus é

Só Ele sabe como Ele é

 

Vale de Salgueiro, segunda-feira, 4 de Outubro de 2010

Henrique António Pedro

 

 

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Desisto de ser poeta

 


Desisto de ser poeta

cansei!

Duvido mesmo
que algum poeta algum dia
tenha ganho qualquer batalha

embora a poesia a todos valha

É sabido também
que ser poeta é profissão de alto risco

é ser-se fora da lei

proscrito

embora a arte poética seja uma ética

Por isso os ditadores filhos das mães
não perdoam aos poetas
a quem por regra mandam abater
como cães

 

Desisto de ser poeta

cansei!

Depois, que gozo dá ser sepultado

num qualquer Panteão Nacional lotado

lado a lado com futebolistas e sacristas?

Ou ser representado
decepado

sem tronco e sem membros
em frio bronze
num qualquer recôndito recanto
dos recantados Jardins Municipais
para gáudio de pombas e pardais

que ali pousam para defecar?

Desisto de ser poeta

 

Por mim
por tudo isto
e por nada mais

A partir de agora
passarei a escrever poemas apenas por puro amor
a escrever só por escrever
somente pelo prazer que tal me dá

Muito embora com a secreta esperança de que alguém os irá ler

com alegria
e gostar

 

Desisto de ser poeta

não da poesia

já se vê

só por amor a quem me lê

 

Vale de Salgueiro, terça-feira, 8 de Junho de 2010

Henrique António Pedro

 

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Aula de Anatomia


Despedacem-me o corpo

e a minha vida se esvairá

num sopro

 

Retalhem-me o coração

 

Não encontrarão o mais leve indício de afecto

a mais indelével marca da paixão

apenas sangue que livremente escorrerá

pelo chão

 

Dissequem-me cérebro

 

Encontrarão apenas axónios

e neurónios

ondas cerebrais

e nada mais

 

Não perceberão uma só ideia

um só projecto

um poema

a mais leve crítica ao sistema

sequer

o menor traço de homem ou mulher

 

Mas eu estarei lá!

 

E continuarei a amar e a sonhar

a pôr-me a salvo

expedito

sem soltar um grito

nalgum outro lugar

fora do espaço-tempo

imune à chuva e ao vento

já no mundo do Espírito

 

À minha alma só Deus conhece a sua anatomia

e só eu a sei dissecar

com poesia

 

               Vale de Salgueiro, 16 de Abril de 2008

               Henrique António Pedro