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quinta-feira, 12 de julho de 2018

LIVRO ABERTO NO DESERTO I - Vigília







Que vigilo eu?
No topo de uma duna
Onda estática de um mar imóvel
Agora que o vento amainou
E no céu esmeralda mil luzeiros cintilam
Tão suavemente 
Que nem dá para fazer bulir um grão de areia

Apenas uma ideia
Oportuna
Serpenteia em minha mente

Os soldados ressonam
Enfiados nos sacos cama
Ouço bater os seus corações

Não sei quem são
Nem donde são
Só os conheço daqui
E só eu sei que como eu
Não vivem de ilusões
Vão para lado nenhum
Para onde o destino aprouver

São a lama da raça humana
Sem pátria, nem lar
Talvez fugidos do amor de uma mulher
Só lhes dói a saudade

São flores de Lotus
Que germinam na bruma
Como eu
Pura espuma de espiritualidade

Que vigilo eu?

(Algures no Deserto do Sahara)
 xxviii-iv-mmix


segunda-feira, 2 de julho de 2018

Tocando o burro à nora



Tocando o burro à nora

Assim era outrora
mas ainda agora se ouvia
o tilintar metálico da nora
movida sem lamento
pelo paciente jumento
que o garoto descalço
no seu encalço zurzia
se parava estático para pensar
ou simplesmente urinar

Às voltas andava o burro
o rapaz casmurro
e os alcatruzes de lata
enquanto água de prata
medrava melões e melancias
e outras sadias poesias
na horta de ao pé da porta

Era assim naquele tempo
e ainda é agora

O garoto casmurro
que ora ri ora chora
qual burro de nora
toca a roda da vida
doída de cruzes
e devaneios

Alcatruzes de luzes
que ora rodam cheios de ambição
ora vazios de desilusão


quarta-feira, 27 de junho de 2018

Sento-me de novo na mesma pedra de sempre



Sento-me de novo na mesma pedra de sempre

Dei volta à vida
mundo fora

Rodou o tempo
outro é o vento
mas nada 
ou quase nada
mudou

Volto agora
a sentar-me na mesma pedra
emoldurada de hedra
postada no recinto
da velha ermida
voltada para Poente
erguida numa colina sagrada 
da minha amada
Terra Quente

Que bem que aqui me sinto!

O mesmo Firmamento
as mesmas luarentas noites de Verão
que me marcaram a mente 
e iluminaram o coração

As mesmas estrelas
as mesmas constelações 
os movimentos de sempre

As mesmas emoções
a mesma silenciosa solidão
os mesmos sonhos
a mesma Fé
a mesma oração
a mesma ânsia de verdade

De diferente
apenas e só…
mais
e ainda mais
da mesma…
Saudade

in ANAMNESIS (1.ª Edição: Janeiro de 2016)

terça-feira, 26 de junho de 2018

Percebi isto, hoje, em dia de chuva



Percebi isto, hoje, em dia de chuva

Hoje
percebi que os pinheiros abrem as copas
e distendem os ramos
em direcção ao céu
abençoando a chuva
que lhes dessedenta as raízes
e fertiliza a terra

Que vivemos além da vida
na medida em que temos fé
e nos damos
para lá de nós

Quando amamos
e semeamos flores
e amores

Quando criamos animais
plantamos árvores
e nos alegramos
mesmo estando sós

Quando geramos filhos
ou escrevemos poemas
que florescem alegres e livres
como os lírios do campo
ou as aves do céu
que se alimentam livremente dos frutos
das árvores que plantamos

Quando o vento
que nos fustiga o rosto
se transforma em brisa
e a ira se adoça
e suavizamos a voz

Quando compreendemos que a vaidade
e a glória
não têm sentido
e que mais tino tem
dar
e amar

Vivemos além da vida
na medida em que temos Fé
e nos damos
para lá de nós

Embora ter Fé
seja não acreditar em nenhuma coisa concreta
mas simplesmente manter 
uma porta
aberta

Percebi isto, hoje, em dia de chuva


in ANAMNESIS (1.ª Edição: Janeiro de 2016)


sábado, 23 de junho de 2018

Agora que os calos das minhas mãos florescem em rosas






Agora
que os calos das minhas mãos florescem em cravos
e rosas
que o suor do meu rosto frutifica em cerejas
e gotas do meu sémen geraram filhos
muito queridos

Agora que as minhas ideias se concertam em poesias
que os meus afectos encontram ecos em mil amizades
e aprendi a partilhar dores e alegrias

Agora
que admito que as minhas derrotas
foram justas vitórias de outrem 
e cuido que as minhas vitórias
não sejam a humilhação de ninguém

Agora que conheço o fascínio de amar
que ainda não perdi o encanto de sonhar 
e aprendi a converter angústias em preces

Agora
que da vida já não espero outras benesses
que não as de viver com verdade e amor

Agora já posso dizer
com fervor:
- Vale bem a pena viver!
Bem hajas, ó Criador!

 
in ANAMNESIS (1.ª Edição: Janeiro de 2016)




terça-feira, 19 de junho de 2018

Apalpando a alma



Apalpando a alma

Afago a cabeça

Mimoseio-me 
numa tentativa de me encontrar
mas não me encontro
nem é a mim que tacteio

Não me enxergo
no crânio escalvado
acabado de sair do barbeiro

Mas sinto uma sensação
suprema
que me percorre o corpo inteiro
me pacifica
e me acalma o coração
embora esprema
a Razão

Transfiro-me para as cabeças dos dedos das mãos
com que apalpo a caixa craniana
em que se aloja o encéfalo

Sinto-me
no curto-circuito que se estabelece
entre a pele dos dedos
e a Mente
sucedânea

E dá-me prazer ficar assim
por momentos 
a andar à roda
atrás de mim
como pescadinha de rabo na boca
de olhos vendados
a jogar comigo
à cabra-cega

Que melhor prova posso querer
da existência de mim
se é a minha alma
que a si própria
se apalpa?!

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)