Não ouvi esta
fábula a nenhum animal
da terra, do mar
ou do ar
mamífero, ave,
peixe ou réptil
a nenhuma flor
espadice ou séssil
nem a ninguém
com boca para a contar
Escutei-a a
uma fraga, granítica, disforme e fria
das inúmeras
que emolduram o quadraçal
qual quistos
implantados na face rugosa da terra
por onde
corre, já velho e alquebrado
o meu benquisto
rio Rabaçal
Quando encostei
o ouvido ao ventre da monstra autista
na ilusão de
descobrir em qual delas se escondia Narciso
jovem beócio natural
de Tespia
filho da
linda ninfa Liríope e do brando Zéfiro
vento suave e
conciso
fruto da mais
amorosa viração
Uma daquelas
fragas arredondadas
acariciadas
pelo rio cristalino
teria que ser
o divino Narciso
por quem toda
a mulher bela se apaixonava
mas que
enamorado de si para seu mal
a todas por
igual desprezava
Até que a
bela e agreste ninfa Eco
a quem também
Narciso não sorria
vendo que ele
desmerecia tamanha paixão
o transformou
em pedra de verdade
sem coração,
alma ou chama
e é por isso que
hoje em dia
mais louvamos
a avisada Ecologia
que a supérflua
usura mundana
Na verdade não
ouvi dizer a nenhuma fraga informe
que seria ela
o próprio Narciso
jovem beócio
natural de Tespia
transformado
em pedra pela ninfa fatal
quando ruída
de despeito e ciúme
o viu apaixonado
pela própria imagem
reflectida ao
sol posto
no lume do rosto
do meu rio Rabaçal
Mas todas as fragas
me segredaram
enquanto se
miravam nas águas mansas
por entre
chilreios de passarinhos
e o
tremeluzir da folhagem
que Deus
colocou a semente da poesia
no
empedernido coração do homem selvagem
cego pela
vaidade e desejo de vingança
para que a
figura da verdade e da esperança
melhor se reflictam
na superfície imaculada da alma
onde pela
noite serena também resplandece a Lua
em romântica luminosidade
e amorosos sinais
e o Sol em
tardes de calma se vem banhar
impiedoso e ofuscante
para os olhos mortais
Assim Deus deu
aos homens o dom abençoado da poesia
acorde de
todas as harmonias
capaz de extirpar
a angústia e aplacar o ódio
suavizar a amargura
e sufragar a desilusão
partilhar
amores e alegrias
e melhor
suportar os males da paixão
E quanto mais
os políticos e os tecnocratas
partirem fragas
e removerem montanhas
sem amor nem fantasia
mais dor e sofrimento
haverá em cada dia
e mais a insana
sociedade
se afastará
da felicidade
Por isso há inúmeros
poemas silenciados
transformados
em fragas nas entranhas do quadraçal
salvaguardados
de todo o mal
cujos acordes
só eu ouço
e cujo conteúdo
ninguém pressente
ainda que
estejam ao alcance da vista
e dos ouvidos
de toda a gente
in Anamnesis
(1.ª Edição: Janeiro de 2016)