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quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Nas entranhas carcomidas de um castanheiro milenar

 



Eu já fui rei

 … um dia

 

Por breves mas felizes anos

de um plácido e amplo reino

sem equívocos nem enganos

que tinha por singular palácio

um velho e carcomido castanheiro

 

No tempo em que os montanheses

ainda usavam tamancos de amieiro

apascentavam rebanhos na serra

e desmatavam a terra safara

para semear searas de centeio

 

Enquanto dóceis ruminantes

manadas de bois e vacas

pastavam nos lameiros verdejantes

e nos úberes linhares

floriam abóboras e batatas

 

Palácio plantado num espaço breve

a norte de Vila Nova de Monforte

num contraforte isolado

votado ao sol e à neve

na suave serra da Padrela

 

Não havia então outra aldeia

tão fresca, farta e sadia

como ela

 

A árvore milenar erguia-se majestosa

à entrada do humilde povoado

com outras castaneáceas menores

a compor a sua corte silenciosa

um souto frondoso e bem copado

 

E diz-me o douto coração da memória

e da imaginação

de tão longínqua tradição

que já os próceres suevos e godos

por ali reuniam os seus povos em comícios

sob a ramagem de místicos castanheiros

ao luar dos mágicos solstícios

ou em certas manhãs de nevoeiro

para dirimir querelas entre clãs

celebrar alegres festejos rituais

consumar sagrados esponsais

ou eleger chefes guerreiros

sempre que por toda a serra

sopravam ventos de guerra

 

Foi também à sua beira

tão perto que muito ouriço

dava à luz já sobre o adro

que seria mais tarde edificado

pequeno templo votado a Santo António

oficina de religião e virtude

onde o aldeão piedoso orava

quebrantava o enguiço

e se demarcava do demónio

 

E a dois passos dali

mal espaçados

murmurejava noite e dia

a cristalina fonte comunitária

que dessedentava humanos

e animais adrede

e a água que era demais

seguia seu curso livremente

pela natureza em frente

tecendo rendilhada líquida rede

 

Até que nos tempos ditos modernos

a empestaram com pesticidas

supostamente para livrar de pragas a terra

mas que maiores chagas abriram

no ecossistema de toda a Serra

 

Era aquele o meu reino

de encanto

e os meus aposentos reais

as entranhas do tronco cavernoso

todas moldadas em castanho

onde apenas entrava quem eu queria

gente do meu tamanho

e que se aventurava

a tanto

 

Ali me refugiava sempre que a vida

cá fora me não sorria

ou recebia chamamento especial

para viajar pelo Cosmos

dentro de um castanheiro carcomido

transformado em nave espacial

 

Era eu o rei daquele plácido reino

com perfumado palácio no seio

dum carcomido castanheiro

onde aprendi a enfrentar todo o mal

a não ter medo de sonhar

a ser senhor de mim mesmo

e a ter um domínio só meu

 

 

E também aprendi

por experiência interior

nas entranhas carcomidas

de um castanheiro milenar

que a única competição justa e lícita

de um homem verdadeiro

é consigo próprio na verdade

 

E que com todos os demais

que no talento e no saber

nascem e são desiguais

apenas deverá haver

solidariedade

 

Vale de Salgueiro, 9 de Dezembro de 200720131122

Henrique Pedro


 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O que falta neste Natal é o que mais falta faz!



Muito embora a noite fosse fria

havia muito amor e muita luz

no divino presépio de Belém

em que nasceu Jesus

iluminado pelo luar

e pelas estrelas do céu

com anjos a cantar também

cânticos de esperança 

de fé

e de alegria

 

Também não faltou à Divina Criança

o calor do seio de Sua mãe, a Virgem Maria 

e a companhia de Seu pai, São José 

 

Porém

o que falta no nosso Natal, hoje em dia

não são prendas nem prebendas

ou sinecuras

tudo que o dinheiro atrai


O que há demais

são luzes e molduras

enfeites de encanto

a brilhar nos ares e nos lares

nas catedrais e nos centros comerciais


O que falta no nosso Natal, hoje em dia

é Alegria

é a ternura das mães e dos pais!

 

A luz do Amor e da Paz

é o que mais falta faz

ainda assim

 

O que falta neste nosso Natal

não é o Pai Natal, não!

 

É o Menino Jesus, isso sim!

 

Vale de Salgueiro, segunda-feira, 24 de Dezembro de 2012

Henrique António  Pedro


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

A mim sem mim me imagino


O destino cavalga as nuvens

disparando sobre mim

relâmpagos e trovões

 

Não sei que substância é a minha

quem é o eu que em mim habita 

que força move o meu pensamento

que sentimento me comove

que verdade me acredita

 

Temo a mim

anjo serafim

no mundo das ilusões

em mim

me perder

 

No meu cérebro bailam dilemas

que florescem em poemas

garantes da minha glória

 

Sinto medo de os esquecer

sem outro meio  de os escrever

que não seja na memória

 

A menos que alguém

como eu perdido também

os queira declamar

 

Por força do amor amar

rendo-me ao vento divino

a mim

sem mim

me imagino

 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 14 de Outubro de 2010

Henrique António Pedro


 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Dissecando a alma da mulher vaidosa


Até a mais rubra rosa tem espinhos

e no espírito de uma mulher virtuosa

sempre existe o espinho da vaidade

e mais espinhosos são os caminhos

se a rosa é vaidosa

 

Tomei alfinetes de prata e de marfim

para dissecar a alma de uma mulher vaidosa

que aparentava ser santa

acabei por me retalhar a mim

 

Dei-lhe a beber o veneno da fantasia

que não mata

mas encanta

se diluído em poesia

 

Provoquei-lhe mil desejos

e perdi-me em seus cabelos

olhos

seios

coxas

e humores

 

Povoei o meu ser de flores roxas

e dos ensinamentos sábios

que bebi em seus lábios

 

Apenas quando

por fim

o sopro da verdade me percorreu o corpo

e a punção da sexualidade

me alterou o coração

se libertou em mim o escopro da espiritualidade

 

De mil formas são as formas da vaidade

uma só a forma da verdade

 

Vale de Salgueiro, segunda-feira, 26 de Julho de 2010

Henrique António Pedro


domingo, 25 de outubro de 2020

Angola, Pátria mulata



Angola

Pátria mulata

Mista amor ardente

Europa e África

 

Rosto de ébano perfeito

Mãos cálidas de cavador

Gota de honrado suor

 

Frémito delirante de batuque

Sorriso puro de rubra romã

Grito de amor ao sol pôr

 

Queimada ateada na vastidão

Pirão amassado com o suor do rosto

Liberdade hasteada em pau de coqueiro

 

Cheiro a peixe seco em colmo de cubata

Picada regada de suor e angústia

Sanzala perdida nos confins do sertão

 

Pó de mandioca de alvura infinita

Canção de embalar de uma mãe preta

Rio espraiado em fauna e flora

 

Grácil mulher em sombra de palmeira

Rosa nascida por entre o capim

Fortaleza antiga a guardar a História

 

Tantã batido em ritmo novo

Amor e ódio a dilacerar o povo

 

Lufadas de guerra exaladas da terra

Humanismo de futuro

Glória e martírio das gentes

Sem cor.

 

Vendas Novas, 11 de Janeiro de 1971

 

in Poemas da Guerra de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2001)



terça-feira, 6 de outubro de 2020

Amo-a mas não gosto dela.

 


Amo-a

com enlevo

mais do que devo

ainda assim

lhe digo que não gosto dela

embora seja ela muito bela

 

Gostava isso sim

que ela fosse diferente

ou me fosse indiferente

 

Gostava de a amar e dela gostar

tal como ela é e como ela quer, mas…

sinceramente

não gosto dela!

 

Diz-me ela que não há mas nem meio mas

que é meu puro engano

ou a amo e gosto dela

assim como ela é

ou não amo

 

Saber que a amo

mas que não gosto dela

e que assim a ela não lhe gosto

como espero

e não reclamo

é o meu desgosto

 

Amo-a mas não gosto dela

nem a quero!

 

Henrique Pedro-1967