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sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Crónicas Secretas do Afeganistão I nas asas da sorte



Cheguei!
Aonde?
Não sei

A um ponto GPS
Que ninguém conhece
Nem mesmo eu

Vim a salto
Nas asas da sorte
Sem passaporte
Rumo ao desconhecido
Em sobressalto contido

Liberto de afectos
E de emoções
Ou de outras tentações
Ou ilusões
Que não seja sobreviver
E cumprir a missão

E tentar
Determinar
Expedito
Que coisa sou

Se coração
Se razão
Se espírito

Tentarei dissociar-me
E manter-me inteiro e íntegro

Afeganistão, Ponto GPS Mandrágora, 09082005
Brian P. Smith

Apostila:
Somos cinco, somente. O avião que nos transportou a partir de base algures num território vizinho subiu à altitude estabelecida e nós lançámo-nos no abismo negro da noite, para pairar por largo tempo, qual fantasmas alados, apenas atentos aos “bip” do GPS que ia assinalando a posição a que nos encontrávamos.
Abrimos os pára-quedas no exacto momento em que o sistema o recomendou, para poisar, com aspereza, no local planeado. De imediato tratamos de trepar para o alto da montanha, para o local em que agora nos encontramos, já devidamente instalados, com a parafernália de armas, sistemas de comunicações e meios electrónicos de observação nocturna. Sem esquecer os meios logísticos necessários a sobrevivermos naquele ambiente hostil, durante uma semana, sem sermos detectados.
A batalha vai desenrolar-se nos vales que nos rodeiam e nós estamos ali com a missão de fornecer às nossas tropas indicações preciosas sobre as movimentações das forças inimigas.
Sente-se Ben Laden arfar por todas estas montanhas. Esperemos que não seja ele, ou algum dos seus sequazes, a perceber, primeiro, o nosso respirar.

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXV – A Pátria, por fim





Não me alimentei de maná
Caído do céu
No deserto
Mas da fé que Deus me deu
Da força de viver
Que o amor me dá
Ânsia de imortalidade
Quimera de santidade

De que viveu o meu corpo já bem nem sei

Talvez de sopros de ar
Vindos do mar
Das gostas de suor
Que me caíram do rosto
Das migalhas de pão que aparei na mão
E amassei no mosto da saudade

Qual criança a sorrir
Inocente
Preparo-me agora para voltar
Ao mundo da gente
Na esperança de te encontrar, Huri
Feliz e contente
Radiante por me ver

Poder abraçar-te finalmente
É a minha maior alegria também

Retornar à Pátria
Por fim
E voltar a partir para longe de mim
É a mais bela melodia
Que a poesia contém



Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 30 de Agosto de 1955


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXIV - Dunas de fantasia





Ando arando com os dedos a duna
Imaginando que é o teu corpo
Abandonado ao gozo langoroso da praia
À frescura da espuma rendilhada de cambraia
Agora que aí em Portugal é Verão
E aqui é um eterno inferno

Sopram, sobre mim, brisas de emoção 
Que varrem as areias
E me fazem o sangue ferver nas veias
Enquanto massajo o teu seio
Com o gel do desejo
E os teus cabelos esvoaçando
Me acariciam o rosto

Antevejo
Em ti
Igual tentação ao sol-posto
Inebriada pelo divino mosto do amor

Assim semeio sonhos e saudades
No meu coração enamorado
Que se enrolam em ondas de vento e paixão
E me levam fascinado
A surfar deserto adentro

São fantasias de Verão
Planos para quando eu voltar

Sacudo a areia das mãos
Como se fossem as toalhas
Em que estivemos deitados
Lado a lado
Estirados ao Sol

Escondo a minha dor
Por detrás das muralhas de dunas importunas
Resignado com a minha condição


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 27 de Agosto de 1955


quarta-feira, 15 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXIII - Simum, o vento





Quando menos se esperava
Simum, o vento
Varreu violento o acampamento
Por mais de uma hora

A atmosfera ficou negra
Purulenta por dentro e por fora
De pó e areia
E da mais triste e virulenta
Ideia

Num sopro
Vejo-me a voar sem corpo
Universo fora
E mais além

É o corpo que me dá prazer
E dor também
E nele me amarro ao mundo

No espírito me afundo
Não sofro
Nem gozo
Na realidade

Apenas pressinto a luz da verdade
Que me mantém desperto
Neste deserto

Simum, o vento
Vai chegar aí também, Huri
Varrendo todo o espaço aberto
Feito ciclone de saudade
A assolar o teu coração

Na minha alma ficam cavadas
Dunas de ansiedade
Revoltas pelo vento suão


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 25 de Agosto de 1955


terça-feira, 14 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXII – Não chores mais por mim, Huri






Não chores mais por mim
Huri

Parti
Não fugi

Embora de mim fuja
A toda a hora
À procura de melhor sorte
Ainda assim
Arriscando-me a morrer
Sem encontrar a morte

De ti, porém, nunca parto
Nem me aparto
Nem de mim te quero sentir apartada
Nem tão pouco te perder

O teu pranto de despedida
Será lago de alegria
Canto de encanto
À chegada

Bebi essas lágrimas sagradas
E trouxe-as dentro de mim
De verdade

Só assim sobrevivo
Nesta terra de areia
Mal fadada
Na ideia de que está inundada
De lágrimas de amor

E que toda a dor
Se reduz a saudade


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 21 de Agosto de 1955


segunda-feira, 13 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXI – Sonhos súcubos






Rende-se o corpo ao cansaço
Adormeço
Deitado numa cova de areia
De uma recôndita duna

Quando o negrume da noite se expande
E as estrelas se acendem uma a uma
Em cadeia
A areia exala vapores
Que se corporizam em sonhos súcubos

Então
Mil bailarinas libidinosas dançam a dança do ventre
Vaporosas
Enfeitadas de mil rosas
E sorrisos elanguescidos
Por entre cascatas  
De água
Melodiosas

Breve é o sono
Fugaz o sonho
Acordo sobressaltado

Dou-me conta de que estava a sonhar
Que nada daquilo era verdade

E das areias do deserto emerge tenebroso
O ruidoso monstro da saudade
Que me impede de dormir
De continuar a sonhar
E me impele a poetar



Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 20 de Agosto de 1955


sábado, 11 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XX– Troglodita




Não me cabe a mim escolher
E não é pacífico o dilema
Nem o poema

Entre o deserto

Onde nem uma ave voa sequer 
Nem tão pouco voga um vulto de mulher
E a fome, a sede e a solidão matam e enlouquecem
Sem remissão

E as selvas
As florestas urbanas
E sub-humanas
Do Rio, de Paris ou de Lisboa
Onde nunca anoitece
Nem alvorece

Pudera eu ter-te aqui, ou lá, comigo, Huri
E a imensidão do deserto se transformaria em oásis frondoso
E a selva mais ardilosa
Quiçá
Num paraíso indiviso
Apenas partilhado por nós
E pelo Sol cor-de-rosa

Devaneio

Regressar à condição de troglodita
Será a minha glória
Ou a minha desdita?

Refugio-me nos subterrâneos do meu ser
Por onde vagueio
Desperto
Até me encontrar
Ou me perder

Sou um universo fechado
Num deserto aberto


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 17 de Agosto de 1955


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XIX – Banha-se nua, ao luar, no lago dos meus olhos






Banha-se nua
Em segredo e em fantasia
No lago dos meus olhos ao luar
O fascínio do seu albedo 
Me faz sonhar à luz do dia

E sentir medo de acordar
Neste mar de escolhos
O calor me seca os olhos
Não tenho lágrimas para chorar

Como a Lua que se banha nua
No céu
E chora lágrimas a cintilar
Que são estrelas
Assim é ela
Assim sou eu

De noite é sonho
De dia fantasia
E eu
Não sei que sou

Serei terra?
Serei céu?
Não sei que sou de verdade
Sou dor
Espuma de amor
Pura saudade

Por agora sou só sensação
Pouco mais que instinto
Trago uma fagulha de amor no coração
Faminto
Uma brasa que me abrasa a razão


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 14 de Agosto de 1955


quarta-feira, 8 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XVIII – Sempre que anoitece no deserto




Vivo dia por dia
Crente de que a vida me não engana
De que amanhã estarei vivo
E poderei continuar a sonhar
Contigo

Porém
Sempre deixo algo para fazer amanhã
E depois de amanhã
E na próxima semana
E no ano que vem

Algo que me prolongue o sonho
Que me faça pensar
E acreditar
Que assim viverei mais tempo
Quiçá para sempre

Nem mesmo a saudade
Que me vem de verdade
Sempre que anoitece
E me entristece
A sofrerei toda já
Hoje

Deixarei a maior parte
Para a sofrermos depois
Os dois
Em paz
Em silencioso lamento

Tenho assim a certeza
De que não te esquecerei

E que o meu amor merece a tua beleza
E não é tão fugaz
Como o vento


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 11 de Agosto de 1955

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XVII – Doí-me a alma e o coração





Estou deserto de regressar
Mas não deserto

Desperto
Continuo a sonhar

De novo me ausento
Para o deserto profundo
O único lugar do mundo
Onde somente sopra
O vento

Aqui melhor eu sinto
O ciclone da saudade
Dentro de mim a uivar

É a voz de Huri
Que não cessa de me chamar

É forçoso partir
Ir
E tornar

Se tapo os ouvidos para não a ouvir a chamar
Abranda o uivo do vento
Mas o seu lamento 
Mais forte me rasga por dentro

Nada me tira daqui
Deste mar seco de soledade
Deserto de ansiedade
Dunas de solidão
Dói-me a alma e o coração

Será que só a morte
Me libertaria desta triste sorte?

Não!
Da vida a morte é termo
Não é critério

Só o amor e a fé em Deus
Transforma este inferno
Em refrigério


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 9 de Agosto de 1955


domingo, 5 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XVI- Sahara



Não é Terra
É Marte, é Vénus, é lua

É areia
Despida
Nua
Sem húmus
Nem água
Nem ideia

Sem vida nem morte
O deserto mata
E seca
Só para sobreviver

Sem rumo ou norte
Sem além
É deserto é aragem
Miragem
É duna 
Ciclone
Convulsão
Local de passagem
Terra de ninguém
Aperto de coração

Sem vida nem morte
Sem rumo nem norte
O deserto incerto
É oásis
Quimera de éden


Tempo parado
A acontecer



Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 8 de Agosto de 1955


sexta-feira, 3 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XV – A viver e a morrer no deserto




O local ideal para um homem morrer
Desacompanhado
É o deserto

Na convicção de que a única fera que lhe devora as entranhas putrefactas
É o sol

E que os ossos calcinados
Se desvanecerão em pó
E se perderão na areia
Sem irem parar ao monturo de um qualquer cemitério
Da civilização
Destinados a serem reciclados 
Em qualquer produto industrial

Enquanto a própria alma se evolará
Na alvorada seguinte
Sem ritos litúrgicos
Como a mais pura exalação da vida

Donde se infere também
Que o local ideal para o homem viver
De verdade
É no espaço aberto
Do deserto
Onde melhor resiste às tentações
A alma se alimenta de fome, sede e orações
E o espírito mais claramente divisa o além
E se alcança a Eternidade

Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 6 de Agosto de 1955


quinta-feira, 2 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XIV – Semeando poesia na areia



No ar anda o ar da saudade
Angustiada
Condensada em grãos de ansiedade
Que me escorrega das mãos
Como areia
                  Ampulheta sem tempo
Que o vento molda 
Em dunas de sofrimento

Ideia que semeia poesia
Onde nada subsiste

Aqui apenas existe
Vento
Areia
E esta alegria
Breve e triste

Procuro flores escondidas
Transfiguradas em pólenes
Em esporos e esporângios
Que misturadas com as areias do deserto
Esperam há milénios
Por uma gota de suor e de esperma
Para germinar

E florir como anjos
Na frescura dos oásis
Se dessedentar de amor
E amar

Aqui a noite é de prata
Tem o toque da Lua
E do luar
O encanto da lubricidade

Já o Sol é demais
É de oiro
E mata


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 5 de Agosto de 1955