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quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Olival Escuro.


No caminho vicinal que desde Vale de Salgueiro serpenteava até Miradeses, quando a descida se acentuava percorrido que estava cerca de um quilómetro, apartava-se à esquerda, caminhava-se mais uma escassa centena de metros a esmo e …eis-nos no Olival Escuro!

Mais ampla visão tinha-se, todavia, se logo ali na Cruz das Favas metêssemos pelo caminho do Campelo e, já lá no cimo, mesmo sem treparmos ao Alto do Toco, espraiássemos o olhar pelo vasto emaranhado de vales e colinas que se distende até à majestosa Serra da Santa Comba, que vista deste lado se apresenta como um maciço único, azulado, mas que na realidade se compõe de duas formosas montanhas, a serra dos Passos e a de Santa Comba propriamente dita, separadas por um profundo vale transversal.

Baixando o olhar, obliquamente, quase a tocar os pés, deparávamos com o temido lugar mesmo à frente do nariz: o sombrio e assombrado olival, do qual até o próprio Sol se arredava. Melhor o iluminava a Lua, ainda assim, fantasmagórica nas noites claras de Janeiro que é quando o luar não tem parceiro, embora o de Agosto lhe bata no rosto.

Até nas horas do dia dava arrepios lá permanecer, ainda que, ao que se dizia, as oliveiras do Olival Escuro eram as que melhor azeite produziam, talvez por serem maioritariamente lentiscas. Azeite que de tão fino era escolhido para alumiar ao Santíssimo o que indicia, seguramente, que o carácter maligno do lugar estava na cabeça dos intervenientes, tão-somente.

Verdade é que naquele tempo o Olival Escuro era um local estranho, assombrado, temido, onde durante o dia era raro encontrar vivalma, muito embora os campos enxameassem de pessoas e animais votados às múltiplas tarefas agrícolas. Ao Olival Escuro, porém, apenas se ia durante o dia e pelo tempo estritamente necessário. Durante a noite só os mais temerários lá se aventuravam.

Claro que havia homens destemidos naquele tempo. Homens que nem deles próprios tinham medo e que, por isso mesmo, protagonizaram episódios do mais fantástico realismo mágico que imaginar se pode.

 

É o caso de Aurélio Lebroto que foi ao Olival Escuro cortar estacas para replantar, em noite já adiantada, embora de céu estrelado e luarento dado que, ao que se dizia, para se garantir a tão afamada qualidade do azeite, deveriam ser cortadas no mais cristalino silêncio nocturno.

Trepou à oliveira que mais asada lhe pareceu, sem a menor sombra de medo e meteu mãos à obra. Logo à primeira machadada uma perdiz saltou do ninho, assustada, em voo rasteiro e uma lebre viu-se forçada a largar a cama, lesta, constrangida a procurar leito mais tranquilo e seguro. Nada que minimamente perturbasse o Aurélio, ainda assim. O silêncio imaculado da noite passou a ser apenas perturbado pelo som ritmado do machado a golpear o lenho até que, inesperadamente, uma voz tonítrua, cavernosa, se lhe sobrepôs ecoando por todo o olival:

- Cortar corta-las, mas levar não as levas!

O Aurélio parou, pôs todos os sentidos em alerta, olhou à roda, mas como nada de concreto vislumbrasse prosseguiu.

 Não tardou, a mesma voz fazia-se ouvir pela segunda vez, falada sabe se lá por quem:

- Cortar corta-las, mas levar não as levas!

Novamente o Aurélio suspendeu o trabalho, apurou ainda mais o ouvido, olhou em volta por tempo mais dilatado, mas de novo de nada se deu conta.

Ainda assim pensou: “Algum brincalhão a falar por um embude, como na Serrada da Velha, para me meter medo”.

Segurou o machado com mais força, encarrapitou-se mais firmemente na oliveira e continuou o trabalho. A voz, porém, não desistiu. Pela terceira e última vez se fez ouvir, agora já mais próxima e assustadora:

- Cortar corta-las, mas levar não as levas!

Certo é que à terceira o Aurélio não resistiu. Tomou-se de tremores, um calafrio estranho percorreu-lhe a espinha, largou o machado que, ao que se dizia, permaneceu durante anos enterrado no tronco que golpeava, saltou lesto da oliveira e escapuliu-se para casa, em passo estugado, sem olhar para trás uma só vez que fosse. Branco como a cal e tremendo que nem varas verdes, ainda encontrou tempo e forças para contar à mulher a sua aventura, rematando:

- Não vi nada, não vi fosse lá o que fosse, mulher. Mas que escutei, escutei, com estes ouvidos que ainda ouvem bem: cortar corta-las, mas levar não as levas!

Posto isto foi deitar-se, a tremer e a suar frio, pediu à mulher que o agasalhasse com mais um cobertor e não mais saiu da cama.

- Coitadinho! Tão bom homem que era. Já nem para o cemitério foi pelo próprio pé. - Lamentava-se, chorosa, a vizinha, a tia Elvira.

 

Não se pense, porém, que era só no mais cerrado e escuro do olival que fenómenos extranaturais deste teor aconteciam. Também no caminho bordejado de oliveiras outros acontecimentos mirabolantes eram reportados por transeuntes notívagos.

Este outro feito fantástico era atribuído ao João Repolho, homem agigantado, abrutalhado, fanfarrão, quando também outra noite por ali passava, depois de demorada e agitada sessão de batota, lá para os lados de Rio Torto. De acordo com o que mais tarde confidenciou aos amigos mais chegados, embora sem se alongar muito, o que não obstou que o sucedido se tivesse espalhado rapidamente, vinha ele a assobiar às bruxas e aos zangões, como dizia ser seu hábito, quando por três vezes foi desafiado, de viva voz e de rajada, por algo, ou alguém que não se deixou ver:

- Ó bufão, bufa lá, agora. Ó bufão, bufa lá, agora. Ó bufão, bufa lá, agora.

- Se calhar foi a mesma voz que apoquentou o Aurélio. – Observou um circunstante.

Claro que o João Repolho não bufou, não respondeu e muito menos perguntou fosse lá o que fosse. Estugou o passo, porque quem tem cu tem medo. Pelo sim pelo não, tirou do bolso a sevilhana que comprara na festa do Domingo de Lázaro, em Verin, apertou a mola para soltar a lâmina disposto a pôr a tripas ao luar a quem se lhe metesse à frente, fosse o que fosse ou quem fosse e continuou o caminho de ouvido atento e pé ligeiro. Outro desfecho não teve esta parlenda que não fosse, a partir daí, passar o Repolho a ser alvo de chalaças que celebrizavam o dito “ Ó bufão, bufa lá, agora”. Mas sempre com ele bem distante porque, como se viu, o Repolho não era homem para brincadeiras.

 

Também se contava que outro heróico notívago, o Arrãs, um salta-pocinhas laracheador que amiúde recolhia a casa já de madrugada vindo sabe-se lá donde e de que esconsos afazeres, noutra noite, quando passava pelo Olival Escuro, deu de caras com um jumento ruço que tosava erva por entre as oliveiras, mesmo à beira do caminho. À primeira vista pareceu-lhe o burro do Malaia que talvez se tivesse escapulido da loja sem o dono dar conta.

-Vem mesmo a calhar. Monto-me nele e toco o jumento ao dono. – Disse para consigo.

 Mas como estava a merujar e o jumento entretanto se embugara na erva orvalhada, achou melhor não o fazer para não sujar as calças de “terylene” que estreara nesse mesmo dia. E ainda bem que o não fez porque, mal virou costas, o jerico começou a crescer, a crescer, desmedidamente, até que, quando as orelhas, enormes, já batiam nas fragas do picoto das Couquelas, atirou dois traques medonhos que mais pareceram tiros ou trovões e desapareceu, a escoucear, salvando montes e vales, lá para os lados de Valverde.

Narração que outro conhecido noitibó, o Luís Melro, que nessa noite andava a armar ratoeiras, ali perto, na Pala Quarteira, afiançava, jurando que bem ouviu os peidos da criatura. E mais:

- A besta, ou fosse lá o que fosse, até deitava chispas pelo cu, salvo seja, como se cagasse estrelas. Escusado será dizer que em paga de tão firme testemunho o Luís Melro emborcava mais uns tantos copos de três. Às custas do Arrãs, de quem havia de ser.

 

Numa outra ocasião, regressava o Chibinhas a casa, vindo de Miradeses onde estivera a ajudar os compadres na mata reca, a que se seguira o lauto banquete do costume, confecionado com os despojos do animal, já se sabe. Vinha um tanto toldado, é certo, mas direito, sem medo mas desconfiado, porque bem conhecia a fama do lugar. Só não sabia, ou não lhe veio à mente, que se dava o caso de haver um defunto em Miradeses à espera do caixão.

Pois foi neste contexto que o Chibinhas, inopinadamente, se deparou no começo da recta que bordejava o Olival Escuro, com uma funesta criatura que descia em sentido contrário, com uma grinalda funerária enfiada no pescoço, em que apoiava o esquife que transportava às costas, luzidio por força do luar que se reflectia nas lantejoulas que o enfeitavam. Ademais a aparição entoava, repetidamente, a sinistra litania:

- É para ti o caixão meu irmão. A cova é a tua nova alcova. Lá no céu bem dormes ao léu.

 Estacou de pronto, o Chibinhas, fixou-se por breves instantes na aparição que não lhe pareceu deste mundo, imaginou que seria para ele o caixão e… ala: desatou numa correria louca em sentido contrário, de regresso a donde viera, só parando a bater freneticamente à porta do compadre que já lhe apareceu em ceroulas e de candeia na mão porque estava prestes a deitar-se e que, sobressaltado, de pronto lhe perguntou:

- Ele que foi, compadre? Saiu-lhe ao caminho algum medo? Alguém lhe bateu?

Já dentro de casa, porta trancada, o Chibinhas explicou o sucedido, gaguejando. Surgiu entretanto Etelvina, a comadre que, sorrindo, exclamou:

- Ó compadre, você é mesmo cagão, carago. Olhe que era o maluco do Chupeta que foi a Vale de Salgueiro encomendar o caixão ao ti Álvaro carpinteiro, que os faz na hora e por medida. Lá bebeu um copito a mais, por certo, enquanto esperava. Não admira que viesse alegre.

Certo é que o Chibinhas se ficou por Miradeses nessa noite.

 

Já agora, fiquem também a saber que não havia apenas homens destemidos naquele tempo e que as mulheres, muito embora de uma só aqui se fale, tinham lugar de destaque.

 Chamava-se Carminda. Era uma raparigaça. Bonita, asseada, de face rosada e buço fino, pernas bem torneadas até onde as saias as deixavam ver. Vários a requestavam lá na aldeia, solteiros e casados, com promessas aliciantes. Mas ela entendia guardar-se para aquele que mais agrados e ganhos lhe garantia, pondo os olhos no Alfredo Lobão que embora fosse bastante mais velho, era rico que nem porco e estava prestes a enviuvar, dado que a mulher sofria de mal sem cura. Ainda que nunca tivessem chegado à fala e muito menos a promessas e contratos, os olhares já diziam mais que as palavras.

Carminda, não tinha onde cair morta. Eram tantos lá em casa que nem havia lugar à mesa e muito menos pão para todos. Por isso ela andava à jeira para ajudar os pais a sustentar a filharada. Na altura da apanha da azeitona escapulia-se pela calada da noite, para fazer uma brecha, um pequeno roubo no olival mais a jeito. Produto que era vendido aos taberneiros como se fosse obtido licitamente no rebusco, só permitido depois da apanha.

 Como é óbvio o Olival Escuro era um local privilegiado para esse práctica costumaz para aqueles que para tanto tinham coragem bastante. Assim foi que uma noite andava Carminda debruçada, sozinha, descontraída, em silêncio, a apanhar azeitona do chão, depois que ripara a que estava no ar ao alcance da mão, quando se apercebeu duma sombra, enorme, agigantada, com recorte de capote e chapéu de aba larga, projectada pelo luar, atrás de si.

Ergueu-se e voltou-se de repente, por reflexo, deparando com um vulto em pé, imóvel, tenebrosamente em silêncio, de mãos nos bolsos, com o chapéu a tapar-lhe o rosto, especado no sítio em que a sombra começava.

 - Credo! Cruzes! Vá de retro satanás - Exclamou enquanto se persignava. Como o vulto se mantivesse mudo e imóvel Carminda desatou a correr que nem desalmada, ladeira acima, deixando para trás a cesta e o saco já meado de azeitona. Seguiu-a a estranha criatura, mais vagarosa mas de passada mais larga, com as botas brochadas a raspar ruidosamente no cascalho da lavoura.

 Carminda só parou, quando já rebentava de cansaço, no cabanal que havia lá bem no cimo da encosta e que ainda tinha o chão acolchoado da palha limpa em que no Verão tenderam figos a secar. Transida de medo, agachou-se num canto, com braços e mãos a tapar a cabeça, convencida de que essa seria a melhor maneira de se defender. Enganou-se ou não terá relatado os factos como na verdade se passaram.

Contou que fora abusada de todas a formas e feitios, sem saber por quem, nem se era humana ou diabólica a criatura, porque desfalecera e só veio a si quando já o sol raiava.

- Porí foi o lobisomem.- Sugeriu Perpétua, uma amiga, tentando confortá-la.

- Ai credo, mulher, não digas tal!- ripostou Carminda, melindrada.

 A verdade é que nove meses depois, o escândalo já corria de boca em boca desde que os primeiros sinais de gravidez se fizeram notar, dando aso a mil estapafúrdias conjecturas, nascia um menino lindo, rechonchudo, que era a cara chapada da mãe, sem a menor parecença com qualquer homem da aldeia, por mais que as bisbilhoteiras se esforçassem por encontrar semelhanças.

A Joana Jalaca, cotada chocalheira, ainda teve ensejo de invectivar o Xispas, guardador de olivais:

- Ó Xispas, então sempre foste tu que emprenhas-te a Carminda lá para os lados do Olival Escuro?

-Eu?! Nem pensar. Mas que tenho pena, lá isso tenho.- Ripostou prontamente o Xispas calando de vez a Joana que meteu a viola no saco embora continuando a tocar lá freguesia.

Para adensar, ou aclarar, o mistério o Alfredo Lobão que era abastado mas de poucas falas, assim disfarçando os muitos segredos que levou consigo para a cova, morreu inesperadamente, primeiro que a mulher. Segredos que só a Rosa Cachopa conhecia, apesar de paralítica, surda e muda, porque do seu janeluco, que dava directamente para o pátio do Lobão, nas longas noites de vigília, bem via, embora não ouvisse, nem falasse, coisas do arco-da-velha que o comum dos mortais ignorava.

Certo é que desconhecido ficou para sempre o pai da criança. Incógnito e anónimo, como argumentava o velho Tancredo, encarregado do Posto de Registo Civil, para se recusar, terminantemente, a registar o enigmático infante gerado no mal-afamado Olival Escuro e ainda por cima em noite de luar e sem que se soubesse por quem e com que artes.

Até o padre Rafael, piedoso por demais, entendeu por bem não passar a respectiva cédula de baptismo embora se predispusesse a baptizar o menino, por caridade e para o proteger das investidas do maligno. Seria a própria mãe a baptizá-lo isto é, a dar-lhe nome, magoada com a cruel e injusta recusa das autoridades:

- Ai o meu filho não vai ter papeis? Pois limpem o rabo com eles. Nome vai ter que sou eu que lho ponho e é para já: Zé Ninguém. Vai Chamar-se Zé Ninguém!

 E assim foi que um dia qualquer nasceu o Zé Ninguém cidadão do Olival Escuro. Um Zé Ninguém que nunca foi à tropa, dado que nunca constou de qualquer recenseamento civil ou militar. Um Zé Ninguém apátrida. Um Zé Ninguém que teve mulher e filhos mas que nunca se casou. Um Zé Ninguém que viveu sem ter existido. Um Zé Ninguém que não morreu porque ninguém lhe passou a certidão de óbito.

O Olival Escuro lá está, ainda que profundamente transformado. Esconjurado de todo o mal, continua a produzir o melhor azeite do mundo, embora destronado pela energia eléctrica que passou a alimentar as lamparinas que agora alumiam o Santíssimo.


 in Rostos da Terra (Academia de Letras de Trás-os-Montes-Maio 2019)



domingo, 3 de janeiro de 2021

Alegrai-vos, segadores!

 


Esta história começa quando ainda o génio mágico de São Martinho de Anta não havia transformado o sáfaro Trás-os-Montes no Reino Maravilhoso, nem convertido os rudes transmontanos em seres lendários.

Quando as terras da Terra Quente ainda não eram retalhados pelas pesadas rodas dos tractores e nos caminhos chiavam ronceiros carros de bois no tempo da acarreja do cereal para as eiras.

 E o ti Raimundo montava o Ruço, com as pernas a arrastar pelo chão, para ir amanhar a horta da Nabarega, onde mal cabiam duas couves tronchas. Enquanto agora o filho vai e vem quando lhe apetece, com o “espada” de matrícula francesa a espantar lagartos e pardais, inundando os ares com músicas do Quim Barreiros.

Ainda as searas começavam por tingir de verde vivo os declives suaves das colinas para, mais tarde, ondularem ao vento, douradas, dando a ideia de estarem a fugir para lado nenhum, como a angústia da gente que mourejava de sol a sol, numa roda-viva quotidiana, sem nunca se atrever a mudar de vida.

Ainda o luar de Janeiro só tinha parceiro no de Agosto, que lhe batia no rosto, sem lâmpadas eléctricas a ofuscarem o firmamento e na Lua esmaltada se recortava um homem com um bardo de silvas às costas, que o americano Armstrong aliviaria do seu peso, mais tarde.

Ainda, pelo Estio, bruxas e zângões sopravam vendavais que rodopiavam em vertiginosos pulverinhos de pó e palha que subiam na atmosfera mais alto que a Serra da Santa Comba, esconjurados por figas e carvalhos. Agora, outras bruxas bailam, e quando o vento sopra, desordenado, sem tempo nem eira, arrasta latas vazias de Coca-Cola e sacos plásticos do Feira Nova.

Ainda os majestosos olivais tradicionais se ficavam pelas baixas, serenos e sombrios, sem se atreverem a alastrar por ladeiras e cabeços e a expulsar o pão e o trigo, como o fizeram as fraldiqueiras oliveiras da CEE, em cujas veias deixou de correr sangue e suor, porque se alimentam da seiva dos subsídios.

Ainda o pão era feito de farinha de centeio, moída em moinhos e azenhas tocadas por águas cristalinas, amassada com o suor do rosto e cozida pelo afecto das padeiras.

- Ti Antónho... veja lá se me faz render o grão! - Exclamava, engustiada, a pobre viúva, boca aberta de fome, na hora de entregar o taleigo à moenda.

- Ele é cada grão seu pão! - Retorquia o Escaldado, moleiro, filósofo, sofrido. 

Ainda se trabalhava de sol a sol, com resignação e à força de braços e,

 

... ainda o lusco-fusco da alvorada não se abrira de todo e o orvalho escorria pelas palhas, já Manuel Santana se destacava à testa da camarada, imparável, seitoura manejada com desembaraço, deixando atrás de si longa esteira de grossos molhos de trigo.

- Vale por dez – segredava, de si para si, Albino Lopes, o amo dos segadores.

 Manuel Santana era isso mesmo: incansável, tenaz, imbatível!

E quando o astro rei dobrava o zénite e as sombras minguavam, no caminho que curvava com a encosta, apareciam, por fim, as mulheres, com ajoujadas gigas de verga à cabeça, transportando o jantar para os segadores, àquela hora já sôfregos por comida e descanso.

 Nesse preciso instante, o Amadeu, também conhecido pelo Fodinhas, e a quem competia dar o lamiré, deixou de apontar a dolente “Oh minha mãe, minha mãe/ Oh minha mãe minha amada/ Quem tem uma mãe tem tudo/ Quem não tem mãe não tem nada.”, repetida vezes sem conta, para lançar a mais animada “Alegrai-vos segadores/ Ligeira vem a cozinheira/ Deixa o rancho no restolho/ Leva a panela com ela. “, no que seria seguido por um coro de vozes roufenhas que se espraiavam, encostas acima e abaixo, até se esvaírem em ecos por todo o vale.

Em breve a mesa estava posta sobre alvas toalhas de linho estendidas no restolho, o garrafão corria de mão em mão e das largas chaspas de alumínio saía o rancho fumegante que, à mistura com os ervanços e o toucinho, também traziam humor e alento.

É então que, entre outros ditos e dichotes, Antero, tido por lacoeiro, que é outra forma de em Trás-os-Montes se dizer mandrião, atirou:

- Ó Manuel Santana! Tu parece que queres acabar com o trabalho!

Ao que o visado se limitou a retorquir, erguendo por instantes a cabeça do prato de esmalte, sem levantar a voz:

- Ou eu acabo com ele ou ele comigo!

Estalou a risota geral. Até o jumento do ti Raimundo, que até ali se mantivera em silêncio tosando erva fresca numa agueira, desatou em tonitruante algazarra, harmonizada de chios e ornejos.

Aproveitou a deixa o Luís Lafrau que, já alegre da bebida, se saiu com esta, enquanto passava o garrafão ao companheiro do lado:

- Jaquim, dá de beber ao burro do Raimundo, não vá o doutor secar-se dos beiços.

Bem...! Uns tantos anos depois, Manuel Santana, que emigrara e enriquecera lá pelas américas, e outro fado não poderia ter quem tanto se devotava ao trabalho, regressa à terra, com a pompa e circunstância requeridas pelo peso da fama e das saudades, quando já há muito o asfalto se estendera de Mirandela a Rebordelo, os postes do telefone e da electricidade emolduravam as ruas de Vale das Rosas e o relógio do campanário martelava as horas, as meias e os quartos, entre outras inovações menores.

Na hora da recepção, com comes, bebes e umas mãos cheias de dólares lançados às rebentinas, para gáudio da canalha e dos graúdos engalfinhados na disputa, (aonde já ia o tempo em que, de igual forma, se batiam por uma mão cheia de rebuçados!), Antero, como sempre manhoso que nem uma mula, interpela:

- Ó Manuel Santana! Quer então dizer que sempre conseguiste acabar com o trabalho!?

Ao que Manuel Santana, com indisfarçável sotaque americano, de pronto contrapôs, sorridente, em olímpica atitude:

- Com o meu trabalho acabei, que já estou “retairede”. Mas trago-vos muito “emploimente”, que é do que vós andais precisados.

A maioria dos circunstantes, afeiçoados à sonoridade da língua francesa nos caminhos da emigração - que na verve do momento tinha a musicalidade da prosa do americano Barac Obama - bem percebeu a mensagem do compatriota regressado de terras de tio Sam.

Tanto que o Amadeu ainda balbuciou, timidamente, um “alegrai-vos segadores“, mas seria Antero a fazer-se ouvir, uma vez mais:

- Pois então venham lá os “ emploimentes ” que trabalho já nós temos de duro!

Reeditou-se a risota da segada de há anos atrás. Ecoou, porém, estrondeante e obscena na lembrança de Manuel Santana, que estaria a negociar com a Câmara Municipal facilidades para instalar um moderno complexo agroalimentar no cruzamento da Bouça.

Consta que, nessa mesma hora, Manuel Santana se decidiu por levar os empregos de volta para a América e deixar por cá os trabalhos.

Por opção do seu autor este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico.

 

Henrique Pedro

 

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

À hora de entre o cão e o lobo.

 


À hora de entre o cão e o lobo.

Meu tio Daniel, crente, temente de Deus e piedoso devoto de S. Francisco de Assis como era, dizia que até as pedras têm alma.

Das pedras duvido, mas daquele lobo com quem partilhei felizes momentos da minha infância encantada, fiquei com a convicção de que se a não tinha, alguém lha emprestara, ainda que por breves momentos.

Nos tempos em que esta história tem lugar Vila Nova de Monforte era um lugarejo perdido numa falda da Serra da Padrela, bem aconchegado de soutos frondosos, lameiros verdejantes e úberes linhares, aonde apenas se chegava a pé ou a cavalo, por veredas e caminhos carreteiros.

Excepcionalmente a velha furgoneta Ford de meu pai, do modelo dito “calças arregaçadas”, aventurava-se a galgar a serra envolta em nuvens de pó, rugidos, “ratés” e solavancos maiores que as montanhas, fazendo-se ouvir a quilómetros de distância, o que dava tempo a que a garotada da aldeia, mais lestos e silenciosos que a maravilhante máquina, me viesse esperar ao alto da Cruz.

Sujos e lanudos, lá apareciam o Acácio, o Carmim e o Valdemar que eu começava por fitar de soslaio, calado, desafiador, já a imaginar brincadeiras sem limites, por montes e vales, árvores e penedos.

Meu pai ia de volta à Terra Quente e ali ficava eu por largas temporadas entregue aos desvelos de minha madrinha Inocência.

Vivia-se de tudo que a terra dava, que era muito e inigualavelmente bom para os conceitos biológicos actuais: ar, água, batata, castanha, centeio, leite, boa saúde e santa liberdade. De que me restam saudades infinitas encerradas nas paredes do robusto casarão solarengo, originariamente presbitério construído por mãos godas convertidas que terá sido governado, nos primórdios, por um qualquer presbítero guerreiro, possivelmente também chamado Eurico. E que poderei muito bem ter sido eu noutra encarnação.

Meu irmão lobo, porém, que eu mesmo baptizara de Godo, sem saber a que onomástica canina fui buscar o nome, marcar-me-ia para sempre.

Fora-me oferecido por Romão, velho criado de servir, que o roubara do ninho rodeado de silvedos e acolchoado de fetos, bem escondido no fojo mais profundo do Vale de Murilha, quando a Primavera despontava em sinfonia de flores silvestres e no chilreio de carriças e toutinegras.

Romão, além do mais, garantiu-me que o resto da ninhada ficara intacta e que da refrega dos mastins com a mãe loba, interrompida ao primeiro assobio mal deitara as mãos à primeira cria, apenas resultaram arranhões de parte a parte. Isso bem o podia eu comprovar no focinho da cadela Salomé, que exibia comprido sulco pelado e ainda encarniçado.

-  Juro-te por Deus Nosso Senhor, Eurico, que a mãe e os irmãos ficaram todos escorreitos. – Mais me afiançou Romão, com ar sério e convincente.

Em breve o Godo abriria dois olhos enormes, oblíquos, azuis como o céu, cresceria desmedido de pernas delgadas, desempenado de corpo, focinho aguçado e orelhas cónicas pontiagudas. E se converteria no meu mais indefectível companheiro de lutas simuladas, correrias e algazarras.

À hora certa, quando ainda eu deambulava em vale de lençóis embalado em sonhos, mal o sol despontava no horizonte, ali bem próximo, na crista da serra, quase em sincronia com o estridente cantar dos galos, já o Godo, sorrateiro, empurrava a porta entreaberta do meu quarto para, com a delicadeza de um verdadeiro lobo, me despertar com repetidos toques do seu focinho frio e húmido na minha face quente.

Chorei no dia em que dele tive que me afastar quando, no início de um Outono frio e chuvoso, meu pai me arrancou à felicidade edénica de Vila Nova de Monforte para me iniciar na vida escolar em Vale de Salgueiro, a minha aldeia natal, bem no coração da úbere Terra Quente.

Apenas soube que o Godo também desaparecera poucos dias depois de nos termos separado, para não mais ser visto, quando mais tarde voltei a Vila Nova. Foi Romão o primeiro a dar-me a notícia, em jeito de pedido de desculpas e de conforto:

-Bô! Ele não era cristão. A natureza dele é vadiar pela serra. Porí, a estas horas, anda “praí” a encher o bandulho de lebres e de perdizes. Se ainda o não mataram!

Mesmo assim, corri as cercanias assobiando e gritando pelo seu nome, mas não tive outras respostas para lá do eco e do pio de uma coruja que, de um pinheiro alto, bateu as asas e desceu em voo picado lá para o mais fundo do vale.

Passaram, entretanto, alguns anos. Meia dúzia, se tantos!

A Páscoa caíra num mês de Março, frio e agreste como as encostas que medeiam entre o Barracão e Vila Nova, terra negra e sáfara, varrida por ventos gélidos, cortantes que nem barbeiro podão, onde apenas medravam a urze, a carqueja, o tojo e a giesta e a mão do semeador, de onde em onde, lançava esparsas searas de centeio e batata.

Tinha ficado assente que, desta vez, passaria as férias em Vila Nova, pelo que, tomei o meu posto na venturosa aventura de vencer o Brunheiro a partir de Chaves, no vagaroso autocarro da Auto Viação do Tâmega. Alcançámos o Barracão, naquele tempo não mais que duas ou três casas erguidas à sombra dos portentosos castanheiros que abrigavam a paragem da carreira, já a tarde declinava.

Do ambiente caloroso de alegria e convívio estudantil reinante no autocarro, saltei, lesto, para o silêncio e solidão da serra. No ar volteavam as primeiras fagulhas de neve, etéreas qual delicadas partículas de cinza que se evolavam de uma lareira anelada e invisível.

O frio era cortante, mordia-me a carne e os ossos, penetrando no pesado sobretudo de sarrobeco como se de ténue folha de papel se tratasse. Eram as imaginárias moscas brancas, materializadas nos seus efeitos. A atmosfera carregara-se de um cinzento imaculado. No céu e na terra reinava uma quietude quase absoluta. Por instinto de sobrevivência reconstruí, mentalmente, o trajecto, avaliei a distância e calculei o tempo. Por reflexo estuguei o passo. Num primeiro troço o caminho corria ladeado de espessas giestas. No mais alto da montanha limitava-se a dois sulcos paralelos rasgados no tapete de urze, que acolchoava toda a serra, pelos pesados rodados dos carros de bois para, quando começava a descer para a aldeia, se tornar pedregoso e acidentado, antes mesmo de penetrar no espesso souto cujas copas roçavam as primeiras casas.

 Em breve o cinzento do céu se tornaria mais carregado, impenetrável à vista. Escassos metros à minha frente pouco mais divisava que sombras paradas. A neve precipitava-se agora, sem voltejar, em grossos farrapos que se acamavam, fundindo-se em espesso e alvo manto.

 Ouvi o primeiro uivo! De imediato a imagem amiga do Godo me veio à lembrança. Ocorreu-me chamá-lo. Ainda ensaiei um breve assobio. Porém, num ápice, lembrei-me das histórias trágicas que ouvira sobre lobos que devoraram pessoas. Como a da professorinha de quem apenas restaram os sapatos e nem o jumento que montava se salvou. Ou a dos oitentas soldados de Napoleão que na campanha da Rússia foram dizimados por uma alcateia imensa não sem antes terem abatido a tiro trezentas feras. No campo de batalha apenas terão sido encontrados os uniformes esfarrapados e as espingardas.

Os uivos eram agora mais frequentes e vinham de várias direcções, ululados em concerto, como se houvesse trocas de mensagens a perpassar a serra, de lés a lés. Ensaiei correr mas retomei o passo com receio de perder o caminho.

 De repente, porém, dei-me conta de que era seguido a curta distância e uma certa segurança interior me recompôs o ânimo. Atrás de mim pressenti um ser que saltava para fora e para dentro do caminho, sem que eu o divisasse, até porque não me atrevia a olhar para trás e muito menos a parar. Mas um suave “frreee..., frreee..., frreee” de patas a comprimirem a neve era perceptível, descompassado do som mais pesado dos meus passos.

De novo me ocorreu chamar pelo Godo. Voltei a não o fazer por igualmente me ter lembrado de ouvir dizer que os lobos não têm olfacto mas possuem, em contrapartida, ouvido apuradíssimo. As alcateias orquestravam por perto e o propósito do meu inesperado companheiro de jornada talvez fosse mantê-las afastadas, não referenciando a minha presença, nem dando ensejo a que outros batedores caninos o fizessem. Prossegui encorajado por este positivo raciocínio.

Até que o odor característico de lenha queimada exalado das lareiras no ar silencioso, cinzento e frio, único prenúncio de humanização, me anunciou a tranquilizadora proximidade do povoado.

Em breve reconheci os castanheiros familiares, passei a ouvir o gorjeio líquido da fonte comunitária, mesmo defronte da capela de Santo António e, mais uns passos, estava a bater sofregamente a aldraba de ferro do robusto portão de castanho. No pátio interior os mastins saltaram, de imediato, em algazarra desenfreada.

 Atrevi-me, então, a olhar para trás. Claramente exposto sobre o muro mais próximo lá estava o Godo, corpulento, imóvel, suavemente ofegante, de orelhas espetadas, sentado nas patas traseiras qual impassível guardião. Só quando, de dentro, rodaram o pesado ferrolho, não sem antes eu levantar o braço em gesto de saudação e gritar um agradecido “ vai irmão!”, a enigmática criatura desapareceu de um salto, mergulhando, por magia, na névoa escura em que já se diluía a derradeira luz do dia e a noite ganhava os seus próprios contornos. Ao lusco-fusco. À hora de entre o cão e lobo!

Falta dizer que a primeira coisa que fiz, na manhã seguinte, foi ir agradecer a Santo António, de quem eu tanto me lembrara, embora só agora o confesse, durante aquela inolvidável travessia da inóspita serra, a graça de estar ali, ajoelhado, e não a ser digerido, retalhado às postas, pelo estômago de qualquer lobo esfaimado que não o Godo.

Henrique António Pedro (in Antologia de Autores Transmontanos, Durienses e da Beira Transmontana-Maio 2018)




terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Caldo de castanhas com figos secos

 


Caldo de castanhas com figos secos

Em tempos que já lá vão, muito embora permaneçam bem vivos na memória de muitos, a romaria da Senhora da Saúde de Valpaços era o ponto de encontro primordial das gentes da Terra Quente e da Montanha.

 Sendo que os fregueses das aldeias do lado da Terra Quente do lendário Rabaçal, tratados por “figacheiros” pelos da Montanha, se referiam a estes seus vizinhos do lado de lá do rio como os “montanheses”.

O conceito de Montanha era assim preferido ao de Terra Fria, talvez porque o relevo sobranceiro não alcançasse as alturas das terras de Bragança e Miranda, não deixando, por isso, de ser marcante a diferenciação climática, edáfica e agrária, consumada em distintas idiossincrasias.

 Ainda assim, as terras mais altas de onde o Rabaçal e o Tuela descem, lá das bandas de Vinhais, mereciam o epíteto de “Serra”, simplesmente.

Na Terra Quente, genericamente xistosa, cultivava-se, antes do abastardamento agrário provocado pela CEE, a oliveira, o trigo, o vinho e o figo, enquanto na Montanha, marcadamente granítica, predominavam a castanha, a batata, o centeio e a pecuária.

De tudo isto resultavam fluxos e refluxos afectivos, culturais e comerciais relevantes: trocava-se mel por azeite, comerciava-se batata, castanha, vinho e concertavam-se casamentos.

Assim era que, consoante a época, os montanheses amimavam os seus amigos figacheiros com “magustos de castanhas” logo que os ouriços as davam à luz e os figacheiros os seus amigos montanheses com cestas de figos e uvas acabadinhos de amadurar.

Mas era na congregante romaria valpacense que mutuamente se privilegiavam com gracejos, abraços e beijos, e amiúde se encetavam derriços e consumavam noivados. Elucidativa é a cantiga, verdadeiro ícone do folclore regional, que rezava assim:

Oh minha mãe deixe, deixe/ Oh minha mãe “deixemir” (deixe-me-ir) / Ao arraial a Valpaços/ Que eu vou e torno a vir.

Manda a verdade que se diga, porém, que não raras vezes a alegria genuína dos arraiais era perturbada por tumultos de índole bairrista motivados, por exemplo, pela disputa das fragas do recinto festivo em que os romeiros das diferentes aldeias se assentavam para merendar ou simplesmente descansar e mais comodamente assistir ao deslumbrante fogo-de-artifício.

 Sem esquecer que no tempo das segadas, ranchos de montanheses organizados em camaradas, desciam à Terra Quente para desembaraçar o aperto da ceifa dos trigais e, inversamente, os da Terra Quente subiam à Montanha para agilizar ceifa do centeio.

Segadores que, como é óbvio, eram portadores de todo o tipo de mensagens que muito contribuíam para o mútuo relacionamento dos povoados, por regra acantoados no seu isolamento peculiar.

Daí que quando os da Terra Quente se cruzavam com os da Montanha era quase certo ouvir-se esta amistosa chalaça: “Montanhês da montanha, compõe três com uma castanha!”. Sendo que o dito recíproco não era menos gozoso: “ Figacheiro da Terra Quente, figos secos e aguardente!”.

Isto acontecia em tempos de grande austeridade, quando os transmontanos subsistiam com o que tiravam da terra com muito suor e à força de braços, de bois e muares.

Quando se ceava e seroava à lareira e à luz da candeia e apenas se abandonava o lar para cumprir o serviço militar ou procurar melhor vida além-mar.

Tempo em que tribos de ciganos deambulavam entre a Terra Quente e a Montanha com poiso assegurado em palheiros e currais, sustentados pela generosidade cristã dos aldeanos e do que, à sorrelfa, rapinavam das hortas que marginavam os caminhos.

Justiça lhes seja feita, porém. Também compravam e vendiam cavalgaduras nas feiras sendo que os animais de unha rachada estavam fora do seu alcance. Eventualmente também exerciam os misteres de cesteiro e latoeiro e as mulheres liam a sina, mas só excepcionalmente deitavam a mão à enxada ou à charrua.

Posto isto, vem a propósito lembrar o abençoado caldo de castanhas com figos secos, ou do Dia dos Fiéis Defuntos, que dizem ter sido inventado por Benigna Bilhó, montanhesa de Monte de Arcas, terra farta de batata e castanha, que casara com um figacheiro de Vale de Telhas, pelo que, enquanto o marido fora vivo, nunca em casa lhe faltaram chicharros e figos secos.

Receita supimpa a de Benigna, que punha amarfinados bilhós a nadar no suculento puré de castanha, com dois ou três figos secos à revelia, em comunhão com olhos de couve, feijão branco e os afamados chicharros, que nunca voltam a cara uns para os outros, o que fundamenta este outro dito popular: “é mau como os chicharros!”. Tudo temperado com o melhor azeite da Terra Quente, quanto bonde, claro está.

Benigna Bilhó, já velhinha de provecta idade morava só, arrastando-se como podia pelas ruas da aldeia e pela pequena horta de ao pé da porta, que não era tudo que lhe restava, porque dores, doenças e lamúrias as tinha para dar e vender:

- Oh, Nossa Senhora não me levar! Oh, Nossa Senhora não me levar! Oh, Nossa Senhora não me levar!- Repetia, vezes sem conta, por tudo e por nada.

Até que um dia, teve ainda ela o ensejo de o contar, Nossa Senhora lhe apareceu, predisposta a fazer-lhe a vontade:

- Prepara-te, Benigna, que tenho lugar reservado para ti, lá no Céu. – Ter-lhe-á dito a Divina Mãe.

Benigna estremeceu. Caiu-lhe a alma aos pés. De pronto a apanhou e a recolocou no seu lugar. Recomposta ripostou:

- Ó minha Nossa Senhora! Deixai-me, ao menos, viver até ao Natal que está à porta, para me poder consolar, pela última vez e ganhar forças para a viagem, com o caldinho de castanhas de que tanto gosto. Prometo que Vo-lo-dou a provar.

Terá anuído a Divina Mãe à piedosa petição de Benigna. Também pelo prometido caldo de castanhas com figos secos, claro está. E porque não?!

Mas não por muito tempo mais, porém, porque quando ainda os ouriços não haviam parado de parir, a jovem Josefa, zeladora da capela de Santo Amaro, notando a falta de Benigna na missa do Dia dos Fiéis Defuntos, precisamente, foi encontrá-la morta, tombada junto borralho onde ainda fumegava uma panela de caldo de castanhas com figos secos.

 Sobre uma mesa improvisada, contou Josefa, estavam duas malgas vazias, sendo que uma só poderia ser a que Nossa Senhora utilizou.

De pronto se levantou uma lenda que conta que a Mãe do Céu, depois de ter provado o caldo de castanhas com figos secos cá na Terra, pôs Benigna Bilhó a cozinhá-lo para toda a corte celestial, assim o convertendo num verdadeiro manjar dos céus.

Tanto assim é que, no dizer dos mais espirituosos figacheiros, nos dias em que é servido caldo tão energético lá nas alturas, se ouve trovoar por toda a Montanha.

Ripostam os montanheses, contrapondo, dizendo que as trovoadas são dos figos secos e não das castanhas.

Henrique António Pedro in " Quem me dera cá o Tempo" -Outubro 2020

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Nas entranhas carcomidas de um castanheiro milenar

 

 

Eu já fui rei

 … um dia

 

Por breves mas felizes anos

de um plácido e amplo reino

sem equívocos nem enganos

que tinha por singular palácio

um velho e carcomido castanheiro

 

No tempo em que os montanheses

ainda usavam tamancos de amieiro

apascentavam rebanhos na serra

e desmatavam a terra safara

para semear searas de centeio

 

Enquanto dóceis ruminantes

manadas de bois e vacas

pastavam nos lameiros verdejantes

e nos úberes linhares

floriam abóboras e batatas

 

Palácio plantado num espaço breve

a norte de Vila Nova de Monforte

num contraforte isolado

votado ao sol e à neve

na suave serra da Padrela

 

Não havia então outra aldeia

tão fresca, farta e sadia

como ela

 

A árvore milenar erguia-se majestosa

à entrada do humilde povoado

com outras castaneáceas menores

a compor a sua corte silenciosa

um souto frondoso e bem copado

 

E diz-me o douto coração da memória

e da imaginação

de tão longínqua tradição

que já os próceres suevos e godos

por ali reuniam os seus povos em comícios

sob a ramagem de místicos castanheiros

ao luar dos mágicos solstícios

ou em certas manhãs de nevoeiro

para dirimir querelas entre clãs

celebrar alegres festejos rituais

consumar sagrados esponsais

ou eleger chefes guerreiros

sempre que por toda a serra

sopravam ventos de guerra

 

Foi também à sua beira

tão perto que muito ouriço

dava à luz já sobre o adro

que seria mais tarde edificado

pequeno templo votado a Santo António

oficina de religião e virtude

onde o aldeão piedoso orava

quebrantava o enguiço

e se demarcava do demónio

 

E a dois passos dali

mal espaçados

murmurejava noite e dia

a cristalina fonte comunitária

que dessedentava humanos

e animais adrede

e a água que era demais

seguia seu curso livremente

pela natureza em frente

tecendo rendilhada líquida rede

 

Até que nos tempos ditos modernos

a empestaram com pesticidas

supostamente para livrar de pragas a terra

mas que maiores chagas abriram

no ecossistema de toda a Serra

 

Era aquele o meu reino

de encanto

e os meus aposentos reais

as entranhas do tronco cavernoso

todas moldadas em castanho

onde apenas entrava quem eu queria

gente do meu tamanho

e que se aventurava

a tanto

 

Ali me refugiava sempre que a vida

cá fora me não sorria

ou recebia chamamento especial

para viajar pelo Cosmos

dentro de um castanheiro carcomido

transformado em nave espacial

 

Era eu o rei daquele plácido reino

com perfumado palácio no seio

dum carcomido castanheiro

onde aprendi a enfrentar todo o mal

a não ter medo de sonhar

a ser senhor de mim mesmo

e a ter um domínio só meu

 

E também aprendi

por experiência interior

nas entranhas carcomidas

de um castanheiro milenar

que a única competição justa e lícita

de um homem verdadeiro

é consigo próprio na verdade

 

E que com todos os demais

que no talento e no saber

nascem e são desiguais

apenas deverá haver

solidariedade

 

Vale de Salgueiro, 9 de Dezembro de 2007

Henrique António Pedro

In Anamnesis (prosaYpoesia) 1.ª Edição: Janeiro de 2016

 


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O que falta neste Natal é o que mais falta faz!



Muito embora a noite fosse fria

havia muito amor e muita luz

no divino presépio de Belém

em que nasceu Jesus

iluminado pelo luar

e pelas estrelas do céu

com anjos a cantar também

cânticos de esperança 

de fé

e de alegria

 

Também não faltou à Divina Criança

o calor do seio de Sua mãe, a Virgem Maria 

e a companhia de Seu pai, São José 

 

Porém

o que falta no nosso Natal, hoje em dia

não são prendas nem prebendas

ou sinecuras

tudo que o dinheiro atrai


O que há demais

são luzes e molduras

enfeites de encanto

a brilhar nos ares e nos lares

nas catedrais e nos centros comerciais


O que falta no nosso Natal, hoje em dia

é Alegria

é a ternura das mães e dos pais!

 

A luz do Amor e da Paz

é o que mais falta faz

ainda assim

 

O que falta neste nosso Natal

não é o Pai Natal, não!

 

É o Menino Jesus, isso sim!

 

Vale de Salgueiro, segunda-feira, 24 de Dezembro de 2012

Henrique António  Pedro