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sexta-feira, 17 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXV – A Pátria, por fim





Não me alimentei de maná
Caído do céu
No deserto
Mas da fé que Deus me deu
Da força de viver
Que o amor me dá
Ânsia de imortalidade
Quimera de santidade

De que viveu o meu corpo já bem nem sei

Talvez de sopros de ar
Vindos do mar
Das gostas de suor
Que me caíram do rosto
Das migalhas de pão que aparei na mão
E amassei no mosto da saudade

Qual criança a sorrir
Inocente
Preparo-me agora para voltar
Ao mundo da gente
Na esperança de te encontrar, Huri
Feliz e contente
Radiante por me ver

Poder abraçar-te finalmente
É a minha maior alegria também

Retornar à Pátria
Por fim
E voltar a partir para longe de mim
É a mais bela melodia
Que a poesia contém



Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 30 de Agosto de 1955


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXIV - Dunas de fantasia





Ando arando com os dedos a duna
Imaginando que é o teu corpo
Abandonado ao gozo langoroso da praia
À frescura da espuma rendilhada de cambraia
Agora que aí em Portugal é Verão
E aqui é um eterno inferno

Sopram, sobre mim, brisas de emoção 
Que varrem as areias
E me fazem o sangue ferver nas veias
Enquanto massajo o teu seio
Com o gel do desejo
E os teus cabelos esvoaçando
Me acariciam o rosto

Antevejo
Em ti
Igual tentação ao sol-posto
Inebriada pelo divino mosto do amor

Assim semeio sonhos e saudades
No meu coração enamorado
Que se enrolam em ondas de vento e paixão
E me levam fascinado
A surfar deserto adentro

São fantasias de Verão
Planos para quando eu voltar

Sacudo a areia das mãos
Como se fossem as toalhas
Em que estivemos deitados
Lado a lado
Estirados ao Sol

Escondo a minha dor
Por detrás das muralhas de dunas importunas
Resignado com a minha condição


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 27 de Agosto de 1955


quarta-feira, 15 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXIII - Simum, o vento





Quando menos se esperava
Simum, o vento
Varreu violento o acampamento
Por mais de uma hora

A atmosfera ficou negra
Purulenta por dentro e por fora
De pó e areia
E da mais triste e virulenta
Ideia

Num sopro
Vejo-me a voar sem corpo
Universo fora
E mais além

É o corpo que me dá prazer
E dor também
E nele me amarro ao mundo

No espírito me afundo
Não sofro
Nem gozo
Na realidade

Apenas pressinto a luz da verdade
Que me mantém desperto
Neste deserto

Simum, o vento
Vai chegar aí também, Huri
Varrendo todo o espaço aberto
Feito ciclone de saudade
A assolar o teu coração

Na minha alma ficam cavadas
Dunas de ansiedade
Revoltas pelo vento suão


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 25 de Agosto de 1955


terça-feira, 14 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXII – Não chores mais por mim, Huri






Não chores mais por mim
Huri

Parti
Não fugi

Embora de mim fuja
A toda a hora
À procura de melhor sorte
Ainda assim
Arriscando-me a morrer
Sem encontrar a morte

De ti, porém, nunca parto
Nem me aparto
Nem de mim te quero sentir apartada
Nem tão pouco te perder

O teu pranto de despedida
Será lago de alegria
Canto de encanto
À chegada

Bebi essas lágrimas sagradas
E trouxe-as dentro de mim
De verdade

Só assim sobrevivo
Nesta terra de areia
Mal fadada
Na ideia de que está inundada
De lágrimas de amor

E que toda a dor
Se reduz a saudade


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 21 de Agosto de 1955


segunda-feira, 13 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXI – Sonhos súcubos






Rende-se o corpo ao cansaço
Adormeço
Deitado numa cova de areia
De uma recôndita duna

Quando o negrume da noite se expande
E as estrelas se acendem uma a uma
Em cadeia
A areia exala vapores
Que se corporizam em sonhos súcubos

Então
Mil bailarinas libidinosas dançam a dança do ventre
Vaporosas
Enfeitadas de mil rosas
E sorrisos elanguescidos
Por entre cascatas  
De água
Melodiosas

Breve é o sono
Fugaz o sonho
Acordo sobressaltado

Dou-me conta de que estava a sonhar
Que nada daquilo era verdade

E das areias do deserto emerge tenebroso
O ruidoso monstro da saudade
Que me impede de dormir
De continuar a sonhar
E me impele a poetar



Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 20 de Agosto de 1955


sábado, 11 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XX– Troglodita




Não me cabe a mim escolher
E não é pacífico o dilema
Nem o poema

Entre o deserto

Onde nem uma ave voa sequer 
Nem tão pouco voga um vulto de mulher
E a fome, a sede e a solidão matam e enlouquecem
Sem remissão

E as selvas
As florestas urbanas
E sub-humanas
Do Rio, de Paris ou de Lisboa
Onde nunca anoitece
Nem alvorece

Pudera eu ter-te aqui, ou lá, comigo, Huri
E a imensidão do deserto se transformaria em oásis frondoso
E a selva mais ardilosa
Quiçá
Num paraíso indiviso
Apenas partilhado por nós
E pelo Sol cor-de-rosa

Devaneio

Regressar à condição de troglodita
Será a minha glória
Ou a minha desdita?

Refugio-me nos subterrâneos do meu ser
Por onde vagueio
Desperto
Até me encontrar
Ou me perder

Sou um universo fechado
Num deserto aberto


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 17 de Agosto de 1955