Seja bem vindo/a. A mesa da poesia está posta. Sirva-se. Deixe, por favor, uma breve mensagem. Poderá fazê-lo para o email: hacpedro@hotmail.com. Bem haja. Please leave a brief message. You can do so by email: hacpedro@hotmail.com. Well done.

domingo, 3 de junho de 2018

Agora outros galos cantam pela madrugada



Agora outros galos cantam pela madrugada

O relógio da sala tocou a nota musical introdutória
com poesia
embora igual para todas as horas certas
ou incertas
(os quartos e as meias têm outras melodia)
e depois deu doze sonoras badalas
espaçadas
metálicas
marteladas

Entristece-me que os mestres relojoeiros de relógios analógicos
não hajam construído mais relógios zoomórficos
para lá dos cucos a que damos corda
para que continuem a cucar
mesmo que não seja à hora certa
e o seu canto
pela certa
não vá ninguém
acordar

Concorrendo com os modernos “timers” digitais
dos anúncios de néon feéricos nas avenidas
de dígitos a piscar no ar
virtuais
com quantas casas decimais se pretender
em consonância com o que se quiser comprar
ou vender

Preferia ouvir os relógios analógicos badalar
em contraposição à insana inovação
que põe milhares de relógios digitais a piscar
por toda a parte
acelerando ainda mais o tempo
e obrigando as pessoas a correr
ainda mais

Ainda assim
quanto a mim
todos acabamos por andar
dessincronizados com o Cosmos

Por isso preferia ouvir os relógios analógicos badalar
crocitar
cucar
e porque não
balir
para me despertar
pela madrugada

Como quando era o galo
madrugador
que com seu estridente estertor
anunciava a alvorada

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)



sábado, 26 de maio de 2018

Afinal as fadas existem









Afinal as fadas existem

 

Esta estória sucedeu já no Inverno passado
mas só agora achei o momento asado
para a contar

Vestia a minha soberana samarra transmontana
e o boné
que uso quando o mau tempo acomete
assim como apareço em fotos difundidas pela net

pelo que não seria difícil alguém me referenciar

Sentado à mesa de um café
a tomar o pequeno-almoço
embora só estando presente até ao pescoço
a minha cabeça não estava ali

tanto que de nada nem me apercebi


De olhar fixo num ponto dentro de mim
embora sem nada ver
dentro e fora

o meu espírito vogava
e pensava
que a vida é um desencanto


Tanta coisa linda
em que acreditamos quando criança
e nos inunda de esperança
que até nos causa espanto
mas que depois concluímos não existirem

e que nos são contadas só para nos iludirem

 

É o Pai Natal
o Menino Jesus
as fadas

as musas
a democracia
o mítico Portugal
as moiras encantadas
as bruxas
e mesmo as palavras esdrúxulas.

Tudo fantasia!

Quanto a bruxas,

Ah!
Sei que continua a haver quem diga
que não acredita
mas que as há,

Há!
Mas isso é outra cantiga

Estava eu nestas tergiversações supra reais

quando senti algo

ou alguém

tocar-me ao de leve
muito suavemente

no ombro

para meu assombro
já que não esperava ninguém

Seria gente?

Uma fada?
Uma bruxa?

Uma musa?
Um pingo de chuva?

Talvez fosse alguma palavra esdrúxula

que com o Acordo Ortográfico andam disparatadas

já que são agora acentuadas

ora de grave ora de circunflexo.

Pensei.

 

Não liguei de imediato

mas ao segundo toque despertei,

perplexo

 

Não era a chuva

uma bruxa

nem uma palavra esdrúxula

que essas não tocam assim

 

Era uma fada verdadeira

de carne osso

perfumada

de cara iluminada

pelo olhar

e que usou o sorriso sedutor

como varinha de condão

para me tocar o coração

 

E me falou

para me dizer

que me adorava ler

mas que achava os poetas pouco fiáveis

porque não sabem guardar segredos

 

Todos os amores e medos

grandezas e fraquezas

que alguém cai na asneira

mesmo se por brincadeira

de com um poeta partilhar

é sabido que vão parar à net

e a todo o Universo

ir-se-ão espalhar

em verso

embora nem sempre se saiba

a quem o poema remete

 

Por isso ela ali me aparecia

para com a sua fantasia

tornar credível

a minha poesia

 

Mas que tinha a certeza

que eu lhe iria dar razão

já no próximo poema

versando este tema

 

Tocou-me o coração

respondeu afirmativamente ao meu convite

de “aparece quando quiseres”

e desapareceu

deixando-me no limite

em alvoroço

 

Afinal as fadas existem

e são de carne e osso

 

Perfumadas

radiosas

amorosas

 

Assim como mulheres!

  

Vale de Salgueiro, sexta-feira, 10 de Setembro de 2010

Henrique António Pedro


in Mulheres de Amor Inventadas (1.ª Edição, Outubro de 2013)

quinta-feira, 24 de maio de 2018

A poesia de amor nasceu nos olhos de uma mulher apaixonada





A poesia de amor
nasceu da luz da Lua
do esplendor do luar
reflectido no olhar
de alguma mulher nua
apaixonada

Quando o homem assim amado
tomado de amor e fantasia
lendo esse poema original
nos olhos da sua amada
de paixão assim tomada
e de irrealidade coberta
abriu o coração sentimental
e se fez poeta

E não tardou a aprender
a de amor sofrer

A não dizer a verdade
sem mentir
a fingir
para sua dor iludir
melhor se compreender
e consolar

Poemas de amor são lágrimas de luar


segunda-feira, 21 de maio de 2018

Espaço-Tempo-Amor-Além




Paro para pensar
anulo o movimento
anula-se o tempo
e alarga-se o meu
Eu

Rumo à Eternidade
por dentro e por fora de mim
em busca do Absoluto

A partir daqui
deste meu reduto de espaço-tempo-amor-além

Daqui
deste meu chão

Meu sítio
meu canto 
meu mundo
meu berço 
meu lar
meu ninho
minha terra
minha pátria
meu céu e meu mar
minha ampla planura
minha serra a cerrar o horizonte
minha névoa e luar
meu covil e castelo
meu casebre e palácio
meu sol de abrasar
minha lura de lebre
meu espaço com fim
minha janela aberta à Eternidade

Porta de sonho e esperança
escancarada no seio do Cosmos
na angústia e na saudade 
vidraça do futuro e da lembrança 
que tento partir à pedrada
qual criança

Daqui
deste meu sítio
onde dependuro pote e capote

Me sento e amanso
durmo e descanso
canto e rio
grito e cicio

Por entre ranger de estrelas e ladrar de cães
choro de crianças
aflições de mães
trinados de aves
toque de finados
e o silêncio
indiferente
de Deus
com que me aflijo e angustio

Daqui
deste meu chão
por este meu reduto de espaço-tempo-amor-além 
impregno o Cosmos de meus odores
e humores
minhas lágrimas e meu mijo
meu cuspo, suor e sémen
uivos de dor
canções de amor e de embalar
sussurros de presença
gritos de ausência
tédio e saudade
perfume de tília
colorido de glicínia e buganvília
ensopado de vida e angústia
por dentro e por fora do Alfa e do Ómega
de onde o espírito advém

Daqui
deste meu mundo
moldado por minhas ideias
e mãos
sonhos e sofrimentos
angústias e tormentos
assobiados por mim e pelos ventos 
que por aqui perpassam
pelas asas dos pássaros que esvoaçam
por mil raízes que minam o solo em procura de húmus
e consolo

Não para sobreviver
mas para dar frutos e alegria
porque vida e guarida
a têm garantida

Aqui e agora
por este meu reduto de espaço-tempo-amor-além
liberto da cobiça e da obrigação de ir à missa
e dizer ámen
compreendo também
a filosofia de meu avô João:
«A Salvação
uma libra gasta
outra na mão»

E espero
aqui
um dia
vir a morrer
crente de que a morte 
é um passo da vida vivida
não um golpe de má sorte

É um adeus definitivo
não o definitivo adeus

Paro para pensar
anulo o movimento
anula-se o tempo
e alarga-se o meu
Eu

Rumo à Eternidade
por dentro e por fora de mim
em busca do Absoluto

A partir daqui
deste meu reduto de espaço-tempo-amor-além


in Angústia, Razão e Nada (1.ª Edição 2007)


domingo, 20 de maio de 2018

Encantamento d’alma



Encantamento d’alma

Este encantamento d’alma
de caminhar ao luar
noite adentro
de me firmar
no Firmamento

De ouvir o espírito segredar-me coisas
que o cérebro ouve
mas não entende
nem é capaz de codificar em palavras
explícitas

Coisas que não cabem neste mundo
nem mesmo no universo perceptível

Este prazer corporal
de exercitar e relaxar os músculos
caminhando
enquanto o cérebro rumina
em surdina
limitado à lógica aristotélica

Enquanto o espírito voga iluminado de alegria
pelo Cosmos sem fim
saltitando de universo
em universo

Este encantamento d’alma
é a práxis poética
pura


segunda-feira, 14 de maio de 2018

Urinando em formigueiros e tocas de grilos nos lameiros




É uma minha boa lembrança de criança malvada

mijar em formigueiros

e tocas de grilos

nos lameiros

 

Não terei sido eu o primeiro

a inventar tamanha maldade

 

Fazia até uma tremenda ginástica

para acertar,  de pé, nas tocas dos grilos

e nos carreiros  dos formigueiros

por falta de prática

 

Ainda era menino de calção

mas só desistia quando sentia

que uma formiga me picava os testículos

e uma multidão de insectos desafectos

me perseguia no carreiro

 

Então

qual poeta proscrito

aflito

proferia a palavra mais obscena do presente poema:

- Foda-se!

 e fugia

 

Foi assim que aprendi

que há uma infinidade de espaço no Universo

onde poderei urinar à vontade

um simples verso que seja

sem importunar

uma formiga por demais pequenina

que mal se veja

 

 

Vale de Salgueiro, domingo, 5 de Abril de 2009

Henrique António Pedro


sábado, 12 de maio de 2018

Nostalgia Transmontana




Caminhei descalço no restolho afiado
Resto triste dos fugidios trigais 
E nos olivais sombrios
Procurei ninhos de doirados pintassilgos
A quem fartava de painço e prisão
Em troca de uma mais alegre canção

Senti os pés escaldar
No pó fervente dos caminhos
À torreira do sol mediurno
Que secava os figos em fragas arredondadas
Na hora em que até as aves estavam caladas
E dos rostos caíam pingos de suor salgado

Ouvi a passarada cantar alegre
No espaço verde da devesa
E invejei-lhe a liberdade

Chamei pela matilha em agudos assobios
E ouvi o latir do galgo
Que célebre persegue a lebre
E o estampido do tiro 
Que pronto a fere

Segui o voo soturno das rolas mansas
Defronte da minha escopeta
Quando já das cerejas restavam passas 
E pelas mãos calosas corriam palhas ásperas
Que depois de mil martírios 
Iriam encher o celeiro

Dei caminho à água fresca
Nos regos do milho a estalar
E senti melões e melancias a inchar 
De sol e húmus

Cantei romances pela segada
E debiquei as uvas pela vindima

Amei raparigas rosadas
A cantarem cantigas cristalinas
Nas manhãs louçãs de Primavera

Apanhei amoras nos silvedos
Quando já o bago pintava
E nas noras metálicas se apreciava a água

Tornei-me ousado 
A trepar alcantilados rochedos
Cresci são a respirar ar puro
E adorei a beleza cristã 
De papoilas e malmequeres

Não temi o Inverno rigoroso
Sorvi a neve
E o meu peito
Foi mais forte que a geada

Adorei Cristo
Em cada mendigo andrajoso
Que no primeiro degrau da escada
Rezava humildes Pai-nossos
Enquanto minha mãe 
Condoída ela mesma
Lhe enchia de azeite na lata

Armei o Presépio pelo Natal
Joguei ao rapa pela Consoada
Pus máscara pelo Carnaval
E botei o pião pela Quaresma

Senti
Em mim
O toque das Avé-Marias
Quando pelo findar do dia
O arfar quente da terra fez de mim poeta
E calado vi descer a noite
No fumo diáfano da aldeia
Em visão bíblica de deserto e oásis

Sorvi o caldo quente
Com a religiosidade de meus avós
E na lareira rubra 
Encontrei doce temperança
Para os músculos doridos

Um dia emigrei
E nas terras distantes
Não esqueci meus pais

Vivo com vida
A vida de cada ano
Sou 
E sempre serei

Transmontano!

In Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-
2000)

Henrique Pedro


sexta-feira, 4 de maio de 2018

Quando a minha sombra mais se alonga




Quando a minha sombra mais se alonga

O Sol nasce atrás de mim
lá para as bandas da serra de Bornes

À hora em que ainda durmo
inocente

O Sol poente
porém
oscila
entre o cabeço do Boi e a serra da Santa Comba

Entre as cinco da tarde no Inverno
e as nove da noite
no Verão
horas a que a minha sombra
mais se alonga

E não é por acaso mediterrâneo

É porque é à hora do ocaso
que a minha mente mais se perde
em divagações astronómicas
dilacerada entre poesia e astronomia

Hora a que a minha alma mais se sente
se angustia
e delira em arrufos místicos
espontâneos

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)

terça-feira, 1 de maio de 2018

Amorável, doida, doída, dorida, nonsense.



 

Por mais que se pense

ou não pense

se diga ou se fique calado

extasiado

a olhar o céu

a poesia é o que é:

Nonsense

 

É a arte do utópico

dos picos da paixão

e de outros males do coração

das indefiníveis estéticas

amor sem dor

é utopia

 

É génese de religiões

ainda que Amor e a Fé

não sejam meras construções

poéticas

 

Melhor que nada, que outra coisa nenhuma

a poesia nos inuma na tristeza

nos liberta do real

nos desperta

nos afunda nas raízes profundas do ser

daquilo que verdadeiramente é

nos despoja do ter e do haver

mais nos aproxima do bem

e nos afasta do mal

 

A poesia

é como a vida é

amorável

inexplicável

irracional

doida

doída

dorida

nonsense


Vale de Salgueiro, 12 de Novembro de 2007

Henrique António Pedro