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quarta-feira, 20 de março de 2024

A que horas é o funeral?

 


Há Domingos assim

sem nada que fazer

em que apenas vivemos

por viver

tão pouco pensamos

em morrer

 

São dias de manhãs enubladas

de montanhas submersas

em que o Sol se passeia pelos campos

só lá mais para o cair da tarde

 

Dias em que cada um de nós

tem um percurso próprio dentro de si

e outros com os outros

e todos outros mais

por esse mundo fora

 

Dias em que caminho um caminho privado

num mundo meu, privativo

onde vivo livre e cativo

 

Mundo em que tudo gira à volta de mim

num vórtice interior demolidor

aflitivo

que varre o próprio Universo

do espaço-tempo

 

Quando assim é

deixo-me ficar quedo

parado

com cara de enterro

a pensar

e a esfregar o nariz

 

Sem me sentir triste

ou alegre

tão pouco angustiado

apenas cismado

e devaneio

 

Como quando como hoje morre alguém

que pouco ou nada me diz

mas que ainda assim homenageio

 

A propósito:

 - A que horas é o funeral?

 

Vale de Salgueiro, domingo, 7 de Novembro de 2010

Henrique António Pedro

 

segunda-feira, 18 de março de 2024

Glória e morte de uma paixão


Guardámos três dias

cumprindo a tradição

para comprovadamente verificarmos que morrera

 

Foi então que a mulher

por quem eu andara apaixonado

e que só agora

de mim

se enamorara de verdade

removeu a pedra do sepulcro

em que se convertera o meu coração

depois que ali eu sepultara

essa derradeira paixão

 

Espantada, exclamou:

«Está vazio! Tu não me amas e nunca amaste ninguém!»

 

Com ternura respondi:

«Não! A paixão morreu, sim, mas o amor, esse, ressuscitou!»

«Vive, agora, em mim. Será que em ti, também?»

 

Apenas a paixão, a raiva, a ilusão morrem para sempre

levadas pelo vento

diluídas no tempo

 

O amor

esse

nunca morre

não!

 

A paixão sem amor é pecado

 

O amor à paixão abraçado

é Salvação

 

Vale de Salgueiro, domingo, 12 de Abril de 2009

Henrique António Pedro

 

 

 

sexta-feira, 15 de março de 2024

Florilégio

 


A rosa


A rosa tinha rosas no cabelo

por desvelo

na face

por disfarce

no ventre

por se demente

e no seio

por receio


E uma rosa maior no coração

que brilhava rubra

aculeada


Deu-me prazer

e fez sofrer

a malvada

Rosa, mulher, paixão

 

A malmequer


Desfolhei a delicada flor malmequer

em minha mão

alternando mal me quer com bem me quer

ao ritmo do bater

do coração

 

Só eu amei

porém


E mesmo depois de desfolhada

continuei sem saber

se era bem ou mal

o seu querer


Malmequer, mulher, indefinição

 

A camélia


Mergulhei de corpo e alma na camélia aveludada

lavada

inebriado de conforto

no horto do prazer

quase sem querer

até que murchou

com igual calma

 

Nada restou de verdade

 

Camélia, mulher, futilidade

 

A papoila


A papoila era louca

rubra

frágil

ágil

descuidada

perfumada de nada


Enrubescia o próprio vento

e quem com ela se cruzava

descuidado

no descampado

da vida

mundo do mau pensamento

Papoila, mulher, indevida

 

A Açucena


Na alvura

pura

da açucena

rezando a santa novena

havia espiritualidade


Amei-a

e sinto saudade


Fiquei sem saber

com muita pena

se era mulher de verdade


Açucena, mulher, castidade

 

A Tulipa


Olha-me de longe

com olhar distante

convencida

fechada


Sorri

pedante

 

Dela não me aproximo

sequer

não é flor de amor

tão pouco amante


Tulipa, mulher, vamp


A Flor de Cerejeira


Enxertei uma cerejeira

que amei como nunca ninguém

amei


E depois que a cerejeira amada

entumescida

floriu em flor

numa manhã de Primavera

alva

rosada

polida

de raios de sol irisada

brotaram cerejas lindas

produto de muito amor


Flor de Cerejeira, mulher, amor, mãe

 

Vale de Salgueiro, segunda-feira, 1 de Setembro de 2008

Henrique António Pedro

 

domingo, 10 de março de 2024

Eu, se minto sinto o que minto, falo verdade


Que importa se é dor

ou amor

o que sinto

se sendo poeta

sou um impostor

sem maldade

 

Tal como Pessoa

eu que sou um poeta menor

e de menor idade

se minto sinto o que minto

em meu versejar falo verdade

 

É outra forma de dizer

que sou um fingidor

 

Eu

um ser utópico

sem tempo ou lugar

ucrónico

inorgânico

anacrónico

 

Eu

um ser abstracto

dinâmico

que pinta o seu retrato em liberdade

à luz do dia

no espelho parabólico

metafórico

da poesia

 

Eu

quando minto

sinto o que minto

falo verdade

 

Vale de Salgueiro, domingo, 28 de Fevereiro de 2010

Henrique António Pedro


sexta-feira, 8 de março de 2024

AMAR SÓ DE NOS VERMOS SEM NOS OLHARMOS


Gosto de a encontrar

de por ela passar

de a ver sem olhar sequer

e sem lhe falar

 

Gosto de ver que também ela me vê

mas que não me olha

que sorri para dentro de si

fingindo não me conhecer

 

Vemo-nos sem nos olhar olhos nos olhos

em simultâneo

mutuamente

 

A mim muito me apraz assim amar

fingir que a não vejo

quando mais a desejo

 

Percebo

que também ela fica contente

por me ver

sem, contudo, me olhar

 

Que fica em paz

como eu

certamente

só por me encontrar

 

Feliz por me ver

sem me olhar

também a ela apraz

esta forma de amar

certamente

 

Perspicaz

ela nada me diz

e eu por castigo

nada lhe digo

Obviamente


Henrique António Pedro ( 2010)