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sábado, 12 de maio de 2018

Nostalgia Transmontana




Caminhei descalço no restolho afiado
Resto triste dos fugidios trigais 
E nos olivais sombrios
Procurei ninhos de doirados pintassilgos
A quem fartava de painço e prisão
Em troca de uma mais alegre canção

Senti os pés escaldar
No pó fervente dos caminhos
À torreira do sol mediurno
Que secava os figos em fragas arredondadas
Na hora em que até as aves estavam caladas
E dos rostos caíam pingos de suor salgado

Ouvi a passarada cantar alegre
No espaço verde da devesa
E invejei-lhe a liberdade

Chamei pela matilha em agudos assobios
E ouvi o latir do galgo
Que célebre persegue a lebre
E o estampido do tiro 
Que pronto a fere

Segui o voo soturno das rolas mansas
Defronte da minha escopeta
Quando já das cerejas restavam passas 
E pelas mãos calosas corriam palhas ásperas
Que depois de mil martírios 
Iriam encher o celeiro

Dei caminho à água fresca
Nos regos do milho a estalar
E senti melões e melancias a inchar 
De sol e húmus

Cantei romances pela segada
E debiquei as uvas pela vindima

Amei raparigas rosadas
A cantarem cantigas cristalinas
Nas manhãs louçãs de Primavera

Apanhei amoras nos silvedos
Quando já o bago pintava
E nas noras metálicas se apreciava a água

Tornei-me ousado 
A trepar alcantilados rochedos
Cresci são a respirar ar puro
E adorei a beleza cristã 
De papoilas e malmequeres

Não temi o Inverno rigoroso
Sorvi a neve
E o meu peito
Foi mais forte que a geada

Adorei Cristo
Em cada mendigo andrajoso
Que no primeiro degrau da escada
Rezava humildes Pai-nossos
Enquanto minha mãe 
Condoída ela mesma
Lhe enchia de azeite na lata

Armei o Presépio pelo Natal
Joguei ao rapa pela Consoada
Pus máscara pelo Carnaval
E botei o pião pela Quaresma

Senti
Em mim
O toque das Avé-Marias
Quando pelo findar do dia
O arfar quente da terra fez de mim poeta
E calado vi descer a noite
No fumo diáfano da aldeia
Em visão bíblica de deserto e oásis

Sorvi o caldo quente
Com a religiosidade de meus avós
E na lareira rubra 
Encontrei doce temperança
Para os músculos doridos

Um dia emigrei
E nas terras distantes
Não esqueci meus pais

Vivo com vida
A vida de cada ano
Sou 
E sempre serei

Transmontano!

In Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-
2000)

Henrique Pedro


sexta-feira, 4 de maio de 2018

Quando a minha sombra mais se alonga




Quando a minha sombra mais se alonga

O Sol nasce atrás de mim
lá para as bandas da serra de Bornes

À hora em que ainda durmo
inocente

O Sol poente
porém
oscila
entre o cabeço do Boi e a serra da Santa Comba

Entre as cinco da tarde no Inverno
e as nove da noite
no Verão
horas a que a minha sombra
mais se alonga

E não é por acaso mediterrâneo

É porque é à hora do ocaso
que a minha mente mais se perde
em divagações astronómicas
dilacerada entre poesia e astronomia

Hora a que a minha alma mais se sente
se angustia
e delira em arrufos místicos
espontâneos

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)

terça-feira, 1 de maio de 2018

Amorável, doida, doída, dorida, nonsense.



 

Por mais que se pense

ou não pense

se diga ou se fique calado

extasiado

a olhar o céu

a poesia é o que é:

Nonsense

 

É a arte do utópico

dos picos da paixão

e de outros males do coração

das indefiníveis estéticas

amor sem dor

é utopia

 

É génese de religiões

ainda que Amor e a Fé

não sejam meras construções

poéticas

 

Melhor que nada, que outra coisa nenhuma

a poesia nos inuma na tristeza

nos liberta do real

nos desperta

nos afunda nas raízes profundas do ser

daquilo que verdadeiramente é

nos despoja do ter e do haver

mais nos aproxima do bem

e nos afasta do mal

 

A poesia

é como a vida é

amorável

inexplicável

irracional

doida

doída

dorida

nonsense


Vale de Salgueiro, 12 de Novembro de 2007

Henrique António Pedro

domingo, 29 de abril de 2018

Estas fragas que me falam




Não ouvi esta fábula a nenhum animal
da terra, do mar ou do ar
mamífero, ave, peixe ou réptil
a nenhuma flor espadice ou séssil
nem a ninguém com boca para a contar

Escutei-a a uma fraga, granítica, disforme e fria
das inúmeras que emolduram o quadraçal
qual quistos implantados na face rugosa da terra
por onde corre, já velho e alquebrado
o meu benquisto rio Rabaçal

Quando encostei o ouvido ao ventre da monstra autista
na ilusão de descobrir em qual delas se escondia Narciso 
jovem beócio natural de Tespia 
filho da linda ninfa Liríope e do brando Zéfiro
vento suave e conciso
fruto da mais amorosa viração

Uma daquelas fragas arredondadas
acariciadas pelo rio cristalino 
teria que ser o divino Narciso
por quem toda a mulher bela se apaixonava
mas que enamorado de si para seu mal
a todas por igual desprezava

Até que a bela e agreste ninfa Eco
a quem também Narciso não sorria
vendo que ele desmerecia tamanha paixão
o transformou em pedra de verdade
sem coração, alma ou chama
e é por isso que hoje em dia
mais louvamos a avisada Ecologia
que a supérflua usura mundana

Na verdade não ouvi dizer a nenhuma fraga informe
que seria ela o próprio Narciso
jovem beócio natural de Tespia 
transformado em pedra pela ninfa fatal 
quando ruída de despeito e ciúme 
o viu apaixonado pela própria imagem
reflectida ao sol posto 
no lume do rosto do meu rio Rabaçal

Mas todas as fragas me segredaram 
enquanto se miravam nas águas mansas
por entre chilreios de passarinhos
e o tremeluzir da folhagem
que Deus colocou a semente da poesia
no empedernido coração do homem selvagem
cego pela vaidade e desejo de vingança
para que a figura da verdade e da esperança 
melhor se reflictam na superfície imaculada da alma
onde pela noite serena também resplandece a Lua
em romântica luminosidade e amorosos sinais
e o Sol em tardes de calma se vem banhar
impiedoso e ofuscante para os olhos mortais

Assim Deus deu aos homens o dom abençoado da poesia
acorde de todas as harmonias
capaz de extirpar a angústia e aplacar o ódio
suavizar a amargura e sufragar a desilusão
partilhar amores e alegrias
e melhor suportar os males da paixão

E quanto mais os políticos e os tecnocratas
partirem fragas e removerem montanhas
sem amor nem fantasia
mais dor e sofrimento haverá em cada dia
e mais a insana sociedade
se afastará da felicidade

Por isso há inúmeros poemas silenciados
transformados em fragas nas entranhas do quadraçal
salvaguardados de todo o mal
cujos acordes só eu ouço
e cujo conteúdo ninguém pressente
ainda que estejam ao alcance da vista
e dos ouvidos de toda a gente

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)


segunda-feira, 23 de abril de 2018

Pedras e palavras soltas




(Ainda antes de falar palavras
lançou mão de pedras
o homem)

Oh! Que prazer que me dá
a mim
empilhar seixos e xistos
pequenos
disformes
conformes com os dedos
do tamanho da palma da mão
tão leves como o coração
ainda assim!

Atirá-los
lançá-los a esmo
sem projectos nem enredos
para um tosco montão

Ouvi-los bater uns nos outros
com rusticidade
vê-los rebolar
para posições mais estáveis
como se fora deles a opção
e não da gravidade

Sentir que o meu espírito voa
para longe dali
à medida que o montão cresce
caótico
que cada pedra é uma palavra
que ali não fica sepultada
uma ideia que se solta
salta
e voa
à procura do poema a que pertence

E que inocente prazer
é ver o merouço crescer
de diferentes perspectivas
e sem outro dilema sentir
que não seja ver
e ouvir
o que vejo e ouço

Julgo eu
que não sou entendido em Pré-história
nem desta parte
em História de Arte
nem fazer doutrina tenho em mente
que terá nascido assim
a primeira obra poética
o mais tosco poema
escrito em pedra solta
certamente

Com a mesma beleza dos seixos
que na boca de Demóstenes
por força da sua fé
floriam em palavras de poemas

E que terão a mais as pirâmides do Vale de Gizé
do que este patético amontoado de pedra
que terem sido edificadas
por milhares de artífices escravizados?

E que terá a mais a Grande Muralha da China
para lá de ser maior
ter ameias
e blocos de granito mais solidamente cimentados?

E que terão a mais a Ilíada e a Odisseia
do que esse pré-histórico tosco poema
que não seja mais versos
mais harmoniosamente rimados?

De pedras e palavras se faz poesia
se a mão que as lança
a língua que as afia
forem tocadas pela imaginação


in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)

domingo, 22 de abril de 2018

Tocam os sinos a sinais




Na minha aldeia
por genuína ideia
ao toque de finados
o povo chama de “sinais”

Sim…ais…
“sinais”
sons
doridos
sofridos
fatais

Que soam nos ouvidos
ecoam nos descampados
e se calam no coração

Dlãoooooooooo
Dlãoooooooooo

Sempre que alguém morre
seja lá quem for
ou qual for a sua condição
os sinos tocam na torre
doridos sons de dor
o toque a “sinais”

Dlimmmmmmm
Dlimmmmmmm

Dlãoooooooooo
Dlãoooooooooo

São sinais!

Sinais de fim
sinais de compaixão
sinais assim…
de…
…adeus

Sinais a Deus
que receba mais
um dos seus
lá nos céus

Dlimmmmmmm
Dlimmmmmmm

Dlãoooooooooo
Dlãoooooooooo


in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016Henrique Pedro)