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quarta-feira, 15 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXIII - Simum, o vento





Quando menos se esperava
Simum, o vento
Varreu violento o acampamento
Por mais de uma hora

A atmosfera ficou negra
Purulenta por dentro e por fora
De pó e areia
E da mais triste e virulenta
Ideia

Num sopro
Vejo-me a voar sem corpo
Universo fora
E mais além

É o corpo que me dá prazer
E dor também
E nele me amarro ao mundo

No espírito me afundo
Não sofro
Nem gozo
Na realidade

Apenas pressinto a luz da verdade
Que me mantém desperto
Neste deserto

Simum, o vento
Vai chegar aí também, Huri
Varrendo todo o espaço aberto
Feito ciclone de saudade
A assolar o teu coração

Na minha alma ficam cavadas
Dunas de ansiedade
Revoltas pelo vento suão


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 25 de Agosto de 1955


terça-feira, 14 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXII – Não chores mais por mim, Huri






Não chores mais por mim
Huri

Parti
Não fugi

Embora de mim fuja
A toda a hora
À procura de melhor sorte
Ainda assim
Arriscando-me a morrer
Sem encontrar a morte

De ti, porém, nunca parto
Nem me aparto
Nem de mim te quero sentir apartada
Nem tão pouco te perder

O teu pranto de despedida
Será lago de alegria
Canto de encanto
À chegada

Bebi essas lágrimas sagradas
E trouxe-as dentro de mim
De verdade

Só assim sobrevivo
Nesta terra de areia
Mal fadada
Na ideia de que está inundada
De lágrimas de amor

E que toda a dor
Se reduz a saudade


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 21 de Agosto de 1955


segunda-feira, 13 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XXI – Sonhos súcubos






Rende-se o corpo ao cansaço
Adormeço
Deitado numa cova de areia
De uma recôndita duna

Quando o negrume da noite se expande
E as estrelas se acendem uma a uma
Em cadeia
A areia exala vapores
Que se corporizam em sonhos súcubos

Então
Mil bailarinas libidinosas dançam a dança do ventre
Vaporosas
Enfeitadas de mil rosas
E sorrisos elanguescidos
Por entre cascatas  
De água
Melodiosas

Breve é o sono
Fugaz o sonho
Acordo sobressaltado

Dou-me conta de que estava a sonhar
Que nada daquilo era verdade

E das areias do deserto emerge tenebroso
O ruidoso monstro da saudade
Que me impede de dormir
De continuar a sonhar
E me impele a poetar



Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 20 de Agosto de 1955


sábado, 11 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XX– Troglodita




Não me cabe a mim escolher
E não é pacífico o dilema
Nem o poema

Entre o deserto

Onde nem uma ave voa sequer 
Nem tão pouco voga um vulto de mulher
E a fome, a sede e a solidão matam e enlouquecem
Sem remissão

E as selvas
As florestas urbanas
E sub-humanas
Do Rio, de Paris ou de Lisboa
Onde nunca anoitece
Nem alvorece

Pudera eu ter-te aqui, ou lá, comigo, Huri
E a imensidão do deserto se transformaria em oásis frondoso
E a selva mais ardilosa
Quiçá
Num paraíso indiviso
Apenas partilhado por nós
E pelo Sol cor-de-rosa

Devaneio

Regressar à condição de troglodita
Será a minha glória
Ou a minha desdita?

Refugio-me nos subterrâneos do meu ser
Por onde vagueio
Desperto
Até me encontrar
Ou me perder

Sou um universo fechado
Num deserto aberto


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 17 de Agosto de 1955


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XIX – Banha-se nua, ao luar, no lago dos meus olhos






Banha-se nua
Em segredo e em fantasia
No lago dos meus olhos ao luar
O fascínio do seu albedo 
Me faz sonhar à luz do dia

E sentir medo de acordar
Neste mar de escolhos
O calor me seca os olhos
Não tenho lágrimas para chorar

Como a Lua que se banha nua
No céu
E chora lágrimas a cintilar
Que são estrelas
Assim é ela
Assim sou eu

De noite é sonho
De dia fantasia
E eu
Não sei que sou

Serei terra?
Serei céu?
Não sei que sou de verdade
Sou dor
Espuma de amor
Pura saudade

Por agora sou só sensação
Pouco mais que instinto
Trago uma fagulha de amor no coração
Faminto
Uma brasa que me abrasa a razão


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 14 de Agosto de 1955


quarta-feira, 8 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XVIII – Sempre que anoitece no deserto




Vivo dia por dia
Crente de que a vida me não engana
De que amanhã estarei vivo
E poderei continuar a sonhar
Contigo

Porém
Sempre deixo algo para fazer amanhã
E depois de amanhã
E na próxima semana
E no ano que vem

Algo que me prolongue o sonho
Que me faça pensar
E acreditar
Que assim viverei mais tempo
Quiçá para sempre

Nem mesmo a saudade
Que me vem de verdade
Sempre que anoitece
E me entristece
A sofrerei toda já
Hoje

Deixarei a maior parte
Para a sofrermos depois
Os dois
Em paz
Em silencioso lamento

Tenho assim a certeza
De que não te esquecerei

E que o meu amor merece a tua beleza
E não é tão fugaz
Como o vento


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 11 de Agosto de 1955