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sábado, 27 de maio de 2023

Poemas da guerra, de mim e de outrem ( Agora)

 


Poemas da guerra, de mim e de outrem

Agora

 

Sou folha solta em seio de tempestade

Ramo verde em outono agora

Procuro lagos onde germinar

E apenas vivo

Em marés de imaginação

 

Sou ave velha que não cede

E nem sente a tempestade

Árvore nova que teima em ter razão

De raízes erguidas ao céu

 

Sou alguém que caminha pela noite

Sempre à espera

De ver

Vir

O Sol

 

Quero amar

Não quero a guerra

Ainda que amar não seja a paz

 

Nangololo (Moçambique, 21 de Dezembro de 1972)

Henrique António Pedro

in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Ed.: 2000)


quinta-feira, 25 de maio de 2023

POEMAS DA GUERRA, DE MIM E DE OUTREM (Todos somos a um tempo bons e maus)

 



Todos somos a um tempo bons e maus

 

Os aviões rasam a floresta

Alongados de velocidade

E com a raiva própria

De quem não sabe

Aonde é o infinito

 

E na quietude do cair da tarde

Caiem bombas

Que ferem o silêncio

De quem esperava coisa nenhuma

Àquela hora morta

Para quem acaba de morrer

 

Mesmo assim daremos as mãos

Todos somos a um tempo bons e maus

Todos somos irmãos

 

E pelos trilhos apertados

Há feros guerrilheiros

Transportando silêncios

Granadas e morteiros

Que cavam buracos no ar

Como se estivera ali a paz sepultada

 

E a saudade dos homens é interrompida

Por estampidos dirigidos

Inacreditados

Que podem muito bem vir a ser

Notícia amarga

 

Mesmo assim daremos as mãos

Todos somos a um tempo bons e maus

Todos somos irmãos

 

 

Mueda (Cabo Delgado), 10 de Fevereiro de 1972

Henrique António Pedro

in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Ed.: 2000)

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Poemas da Guerra, de mim e de outrem (Na hora da despedida)

 


Na hora da despedida

 

Não mais poderei esquecer

O Metumbué e o Rovuma

O Lidede e o Nangade

Irei ter saudade

Das saudades que aqui

 Vivi

 

Em Nangololo deixei pensares imprecisos

Alongados como o misticismo do vale azul

O vasto vale de Miteda

Onde ecoaram os acordes primeiros

Deste Humanismo que surge

Ledo como a forma esguia das papaieiras

E se tinge de sangue

Como a casca verde das mangas maduras

 

E aquele Cristo de pau-preto

O Cristo Maconde

A quem sorri ele?

Aos Homens?

Á Guerra?

Oh! O seu sorriso é bondoso

        

Na terra ampla de Mueda

Sofri o céu inconstante

Não fui ali panteísta

Mas amei a terra

 

O salto breve para Nangade

É já o abraço do adeus

É banja sob a árvore grande

Mesmo ali à vista do lago

Já com pressa de partir

Mesmo sem que possa esquecer

O Metumbué e o Rovuma

O Lidede e o Nangade

E de ir a ter saudade

Das saudades que aqui

Vivi

 

 Nangade, 15 de Outubro de 1972

n Poemas da guerra, de mim e de outrem (Editora Piaget-2000)


segunda-feira, 22 de maio de 2023

Poemas da guerra, de mim e de outrem (Silêncio)

 



Poemas da guerra, de mim e de outrem

Silêncio

 

Vivo agora a guerra no silêncio de um quarto

Em que guardo um mapico maconde

Uma máscara macua

E um Cristo metálico

Que não é de etnia nenhuma

 

No ar há leve odor a insecticida

Nos ouvidos o zunir dos órgãos em descanso

Onda portadora de ruídos inqualificados

Filtrados pela razão

Onde vegetam mil doces recordações

Que penetram todo o meu corpo

Transformados que são em saudade

 

Sou uma fábrica de saudade

E estou em guerra no silêncio de um quarto

De porta fechada

De alma aberta

E na mente desperta

 

Uma criança chora

Um homem assobia

E motores alados tomam de assalto o aposento

Martelando-me os ouvidos

 

Pela cortina entreaberta

Entra a claridade adequada

Ao conforto da vista

E na luz que entra pela cortina entreaberta

Pelo vidro translúcido

E pela rede quadriculada

Encontro a paz procurada

Tão distante no infinito

 

Pena que os olhos só vejam

E não analisem com luz

Esta obscuridade psíquica

De quem tem um sol dentro de si

 

 Mueda (Norte de Moçambique), 10 de Janeiro de 1972

in Poemas da guerra, de mim e de outrem (Editora Piaget-2000)


sexta-feira, 19 de maio de 2023

Baptismo de fogo

 


Baptismo de fogo

Uma vez...

Lá no reino do régulo Capoca
Maconde
Diletante súbdito do Império Português


Já nem me lembro bem
Como
Quando
E porque  ali fora parar

A navegar
Na História
De boa e má memória

Que me lançou na frente de batalha
De uma guerra fora de tempo
E que a tantos Longe da terra

Serviu de mortalha

 

Era minha intensão

Pois então
Ser herói

Sim
E santo
Talvez

Porque não?


Dormia

O meu corpo suava
E a alma alagava-se do suor da saudade

Reinava o silêncio
No seio da juvenil companhia
Que ousara penetrar a floresta
Preparada para matar
Ou morrer

Tão só para sobreviver

Um estampido

Primeiro

Cavo
Abafado
Seguido de um silvo
Bem referenciado pelo ouvido
Treinado

A seguir
O deflagrar ensurdecedor de uma malina

Granada
De morteiro

Depois outra e mais outra
A terrível fuzilaria
Trágica

Ruidosa
Romaria

Ergo-me
Em incontida inconsciência
Pujante de adrenalina
Grito:
“Filhos da puta!”

E disparo
Disparo
Uma
Duas
Três

Mais e mais rajadas

Contra ninguém
Nem bem sabia sequer
Quem disparava para quem
Nem se alguém atirava contra mim

E foi assim

Pelo baptismo me tornei  cristão
Com água e sal
Ainda criança

E a ferro e fogo
Fui iniciado guerreiro  de Portugal
Homem inteiro

Do heroísmo
Resta-me a poesia

Da santidade
Sobra-me a esperança


Vale de Salgueiro, sábado, 22 de Maio de 2010

Henrique António Pedro

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Clepsidra

 




Clepsidra

 

A clepsidra

que marca o meu dia-a-dia

é a poesia

 

Pinga

pinga

vai pingando

pingos de amor e desamor

de alegria e de dor

de pura amargura

e nostalgia

 

 

É vento da vida a soprar

toque de realejo a tocar

vontade-desejo de amar

 

Fluem afectos

ideias

grãos de areias

sonhos despertos

pedaços do Universo formatados em verso

à medida que a vida se esvai

 

Pingo a pingo

um oceano sem fundura

de verdade e fantasia

se vai formando a cada momento

 

Esta clepsidra

que marca o meu dia-a-dia

é a medida do meu tempo

 

Vale de Salgueiro, quarta-feira, 18 de Agosto de 2010

Henrique António Pedro