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domingo, 28 de maio de 2023

POEMAS DA GUERRA, DE MIM E DE OUTREM (Dia de Correio)

 


POEMAS DA GUERRA, DE MIM E DE OUTREM

(Dia de Correio)

 

Amanhã é dia de correio

E de teu seio

Saíram já

Por certo

Mil saudades escritas

Que em mim provocarão doces variações arteriais

E por demais belo será o sossego

Quando tiver lido

E sorrido

Da distância infinita que as cartas venceram

Para de ti trazerem palavras vivas

Desejos

Promessas

Saudades impressas

Em pedaço de papel fechado

No qual com amor colaste um selo

... E mil beijos

 

Mueda (Cabo Delgado-Moçambique), 21 de Janeiro de 1971

Henrique António Pedro


sábado, 27 de maio de 2023

Poemas da guerra, de mim e de outrem ( Agora)

 


Poemas da guerra, de mim e de outrem

Agora

 

Sou folha solta em seio de tempestade

Ramo verde em outono agora

Procuro lagos onde germinar

E apenas vivo

Em marés de imaginação

 

Sou ave velha que não cede

E nem sente a tempestade

Árvore nova que teima em ter razão

De raízes erguidas ao céu

 

Sou alguém que caminha pela noite

Sempre à espera

De ver

Vir

O Sol

 

Quero amar

Não quero a guerra

Ainda que amar não seja a paz

 

Nangololo (Moçambique, 21 de Dezembro de 1972)

Henrique António Pedro

in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Ed.: 2000)


quinta-feira, 25 de maio de 2023

POEMAS DA GUERRA, DE MIM E DE OUTREM (Todos somos a um tempo bons e maus)

 



Todos somos a um tempo bons e maus

 

Os aviões rasam a floresta

Alongados de velocidade

E com a raiva própria

De quem não sabe

Aonde é o infinito

 

E na quietude do cair da tarde

Caiem bombas

Que ferem o silêncio

De quem esperava coisa nenhuma

Àquela hora morta

Para quem acaba de morrer

 

Mesmo assim daremos as mãos

Todos somos a um tempo bons e maus

Todos somos irmãos

 

E pelos trilhos apertados

Há feros guerrilheiros

Transportando silêncios

Granadas e morteiros

Que cavam buracos no ar

Como se estivera ali a paz sepultada

 

E a saudade dos homens é interrompida

Por estampidos dirigidos

Inacreditados

Que podem muito bem vir a ser

Notícia amarga

 

Mesmo assim daremos as mãos

Todos somos a um tempo bons e maus

Todos somos irmãos

 

 

Mueda (Cabo Delgado), 10 de Fevereiro de 1972

Henrique António Pedro

in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Ed.: 2000)

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Poemas da Guerra, de mim e de outrem (Na hora da despedida)

 


Na hora da despedida

 

Não mais poderei esquecer

O Metumbué e o Rovuma

O Lidede e o Nangade

Irei ter saudade

Das saudades que aqui

 Vivi

 

Em Nangololo deixei pensares imprecisos

Alongados como o misticismo do vale azul

O vasto vale de Miteda

Onde ecoaram os acordes primeiros

Deste Humanismo que surge

Ledo como a forma esguia das papaieiras

E se tinge de sangue

Como a casca verde das mangas maduras

 

E aquele Cristo de pau-preto

O Cristo Maconde

A quem sorri ele?

Aos Homens?

Á Guerra?

Oh! O seu sorriso é bondoso

        

Na terra ampla de Mueda

Sofri o céu inconstante

Não fui ali panteísta

Mas amei a terra

 

O salto breve para Nangade

É já o abraço do adeus

É banja sob a árvore grande

Mesmo ali à vista do lago

Já com pressa de partir

Mesmo sem que possa esquecer

O Metumbué e o Rovuma

O Lidede e o Nangade

E de ir a ter saudade

Das saudades que aqui

Vivi

 

 Nangade, 15 de Outubro de 1972

n Poemas da guerra, de mim e de outrem (Editora Piaget-2000)


segunda-feira, 22 de maio de 2023

Poemas da guerra, de mim e de outrem (Silêncio)

 



Poemas da guerra, de mim e de outrem

Silêncio

 

Vivo agora a guerra no silêncio de um quarto

Em que guardo um mapico maconde

Uma máscara macua

E um Cristo metálico

Que não é de etnia nenhuma

 

No ar há leve odor a insecticida

Nos ouvidos o zunir dos órgãos em descanso

Onda portadora de ruídos inqualificados

Filtrados pela razão

Onde vegetam mil doces recordações

Que penetram todo o meu corpo

Transformados que são em saudade

 

Sou uma fábrica de saudade

E estou em guerra no silêncio de um quarto

De porta fechada

De alma aberta

E na mente desperta

 

Uma criança chora

Um homem assobia

E motores alados tomam de assalto o aposento

Martelando-me os ouvidos

 

Pela cortina entreaberta

Entra a claridade adequada

Ao conforto da vista

E na luz que entra pela cortina entreaberta

Pelo vidro translúcido

E pela rede quadriculada

Encontro a paz procurada

Tão distante no infinito

 

Pena que os olhos só vejam

E não analisem com luz

Esta obscuridade psíquica

De quem tem um sol dentro de si

 

 Mueda (Norte de Moçambique), 10 de Janeiro de 1972

in Poemas da guerra, de mim e de outrem (Editora Piaget-2000)


sexta-feira, 19 de maio de 2023

Baptismo de fogo

 


Baptismo de fogo

Uma vez...

Lá no reino do régulo Capoca
Maconde
Diletante súbdito do Império Português


Já nem me lembro bem
Como
Quando
E porque  ali fora parar

A navegar
Na História
De boa e má memória

Que me lançou na frente de batalha
De uma guerra fora de tempo
E que a tantos Longe da terra

Serviu de mortalha

 

Era minha intensão

Pois então
Ser herói

Sim
E santo
Talvez

Porque não?


Dormia

O meu corpo suava
E a alma alagava-se do suor da saudade

Reinava o silêncio
No seio da juvenil companhia
Que ousara penetrar a floresta
Preparada para matar
Ou morrer

Tão só para sobreviver

Um estampido

Primeiro

Cavo
Abafado
Seguido de um silvo
Bem referenciado pelo ouvido
Treinado

A seguir
O deflagrar ensurdecedor de uma malina

Granada
De morteiro

Depois outra e mais outra
A terrível fuzilaria
Trágica

Ruidosa
Romaria

Ergo-me
Em incontida inconsciência
Pujante de adrenalina
Grito:
“Filhos da puta!”

E disparo
Disparo
Uma
Duas
Três

Mais e mais rajadas

Contra ninguém
Nem bem sabia sequer
Quem disparava para quem
Nem se alguém atirava contra mim

E foi assim

Pelo baptismo me tornei  cristão
Com água e sal
Ainda criança

E a ferro e fogo
Fui iniciado guerreiro  de Portugal
Homem inteiro

Do heroísmo
Resta-me a poesia

Da santidade
Sobra-me a esperança


Vale de Salgueiro, sábado, 22 de Maio de 2010

Henrique António Pedro