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quarta-feira, 1 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XIII - Uma mão cheia de areia e outra de deserto a desertar





Do chão
Apanho um punhado de areia
Para de mão erguida
A abrir de seguida
E deixar que as areias
Uma a uma
Retornem à duna

Assim me abstraio da minha ansiedade

Até que resta só
 O pó da saudade no ar
E dessa
Não me consigo libertar
                  Porque nenhum vento passa
Por perto
Que para longe a faça soprar

Do chão
Apanho outro punhado de areia
E lanço-a no ar
Do deserto
Onde se não divisa nenhum caminho

É por aí que segue o meu destino

À noite
Lanço outra mão cheia de areia
Ao vento
No espaço aberto do deserto
Para saber
De que lado está o vento
A soprar

Uma mão cheia de areia
Outra de deserto
A desertar

Vejo a Estrela do Norte no céu a fulgir
Ouço o Cosmos a tilintar
É minha amada que me está a sorrir
São horas de em amor 
Ao luar
Me banhar

Mais a norte
Ouve-se a morte a ribombar 

Daniel Monforte, Legião Estrangeira
(Algures no Deserto do Sahara)
  iv-viii-mmix



segunda-feira, 30 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XII - Pietá





Sentada no chão
À entrada do adobe esburacado
De semblante alucinado
Com o filho moribundo nos braços
É uma estátua de morte viva
Uma imagem trágica
Que me tolhe os passos

No crânio da criança
A fome esculpiu uma caveira
A boca febril é pasto de moscas
Os olhos mortiços saltam-lhe das órbitas

A barriga prenhe de fome
Parece prestes a parir a morte
Já os ossos lhes rasgam a pele

A mão estendida da mãe
Rasga-me o coração
A sua súplica silenciosa
Fura-me os tímpanos
A sua agonia é a mim que primeiro mata

Que tenho eu para lhes dar?
A arma?
Um sorriso?
Uma lágrima sentida?

Dou-lhes a ração de combate
Sacio a boca febril da criança
Com a água do cantil

No rosto da mãe
Esboça-se um ténue sorriso
De esperança
Agradecida

Não tenho coragem para prosseguir
E deixá-los ali
Sós
A agonizar

Neste deserto 
Aqui tão perto
No deserto da humanidade

Algures no Deserto do Sahara)
  xviii-vii-mmix


sábado, 28 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XI – Oásis



Depois duma penosa travessia
Em que por pouco enlouquecia
De calor
Sede
E solidão
Faltas-me tu
 Huri

De braços abertos
Sorriso rasgado
No rosto de amor iluminado

Rejubilante de alegria por me receber
Desejosa de me vitoriar

Mas se no deserto me perco
No oásis não me reencontro

Volto a acreditar, sim
Depois que estive a morrer
Que há mais vida para lá de mim
E mais prazer além do sofrer

Mas a água fresca que sacia a sede
Não mata a saudade
Apenas ouço o silêncio do que penso
Falta-me a tua voz encantada

Os lagos em que me banho
Não possuem a frescura perfumada
Da tua pele electrizada

O oásis sem ti é pior que o deserto
Ainda mais cruel
Mais me faz sofrer
Porque só de ti  me faz lembrar

Melhor será ao deserto retornar
Para de ti me esquecer

(Algures no Deserto do Sahara)
 iv-v-mmix


sexta-feira, 27 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO X – Cavaleiro Andante das Areias




Figura rara
Sem escudo nem laçarote
Cavalgo sem cessar
Sobre o dorso de um dromedário
Ondulante
Qual Quixote das ideias
Cavaleiro andante 
Errante nas areias do Sahara
Sem ter aonde parar

Sem escudeiro
Sem Sancho
Nem Pança
Nem lança

Este o sentido da minha poesia
Sendo que a minha Dulcineia
Me espera noutro lado
Distante
De angústia são as dunas em que me deito
E me servem de leito

Tomei partido pelo Bem
Sem olhar aonde
Nem a quem

Sendo que só com poesia se humaniza a guerra
Se suaviza o deserto
Se semeia oásis
Se planta a paz na Terra

Com o amor que se faz
E o a amor que se dá

Esta a minha maior vocação
Ser como S. João da Cruz
Como Francisco de Assis
Fardado e de arma na mão

Esta a angústia da minha contradição

(Algures no Deserto do Sahara)
 iii-v-mmix

quarta-feira, 25 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO I X – Vivo de ar, água e oração





Não é miragem
É milagre!

Ergo-me num derradeiro sopro
Pressinto-lhe o cheiro
A frescura envolvente
A minha alma está silente

Uma alegria indizível me revigora o corpo
Me embriaga o espírito
E alegra o coração

Corro!
Com as forças que já não tenho
Mas que acredito tererei
Depois de beber
E de me dessedentar

Paro!
Terei que me matar para beber?!
Olho em redor
Não vislumbro vivalma

É morrer o preço de beber?

Viva ou morra
Beberei!

Bebo
Com sofreguidão
A paz
Por fim
Se instala na minha Razão

É a Água
Não a Terra
A nossa mãe

Em terras de xisto
Cristo é o pão

De ar e de água se alimenta o corpo
À alma basta uma oração

(Algures no Deserto do Sahara)
 xxx-iv-mmix

segunda-feira, 23 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO VIII – Reclino a alma em manto de areia





Distende-se a noite sobre o manto ondulado de dunas
Abate-se a calma
Deita-se a morte na areia
Em que reclino a alma

Diáfano
Cobre-me o Firmamento
Maior é o meu pensamento
Onde uma ideia feita estrela bruxuleia

Procuro o poema Polar
A poesia do norte
Ponho-me a meditar

Sou cristão
Por isso não tenho religião

Sou branco
Ainda assim não tenho cor

Sou português
Não tenho pátria
Portanto

Pecador
Aspiro a ser santo

Nasci livre
Condenado a lutar
Para me libertar

Sinto amor
Mas não sei a quem amar

Escolhi o lugar mais ermo da Terra
O deserto
E a guerra
Para me pacificar

(Algures no Deserto do Sahara)
 xxvix-iv-mmix


sábado, 21 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO VII - A mulher da burca celeste




Imagino o céu de Sherezade
Reflectido no lago do oásis
E fico a sonhar
Como será na verdade
O encanto do seu olhar

Fito o Sol de frente na alvorada
No ocaso e ao meio dia
Corro o risco de cegar
Para tentar perceber
Que cor é a dos seus cabelos

Pressinto na Lua prateada
A tez da sua pele nua
Sem conseguir tacteá-la

Inebrio-me com a fantasia
De sorver na doçura das tâmaras maduras
A formosura dos seus seios

Dela me acerco
Tentando inalar o seu perfume
Corro o risco de morrer
Às mãos dos guardas do sultão

Enlaço com ternura a dócil gazela
Que passeia na cerca do seu jardim
Imaginando a graciosidade do seu porte
Mas ela foge de mim
Espavorida
Sem rumo ou norte

Como posso estar certo de que me sorri
Se a burca de seda celeste
Que lhe tapa o rosto
Também lhe cobre todo o corpo
E o seu sorriso não tem som?


Resta-me ler o tom do seu pensamento
No esvoaçar do véu
Que a sua mão levanta ao vento do céu
E fico esperando que por fim
Para minha gloriosa felicidade
Amorosa se dispa para mim

Ela mesma se libertará da burca terrena
E serena me apontará
O caminho da eternidade.

Algures no Deserto do Sahara)
 xiii-viii-mmix


sexta-feira, 20 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO VI – Mil saudades e uma só solidão




Areia!

Montanhas de areia me envolvem
Trazidas pelo vento suão
Cobrem-me e descobrem-me
De mil saudades e de uma só solidão

Nada vivo se vê por aqui!
Uma ave
Uma flor
Um réptil
Um roedor
Um insecto que seja
Apenas a morte tenta sua sorte

Dentro mim, Huri
Ardeja um amor mais forte
A Estrela Polar brilha mais a norte
És tu que ma chamas em surdina

Essa luz pequenina
Que bruxuleia no Firmamento
Batida pelo vento
É a chama da fogueira saudade
Que arde e nos queima
A ti e a mim

Só assim me mantenho vivo
E sobrevivo
Ao frio
À fome
À sede
Ao calor abrasador
À saudade
E à má sorte
Neste império da morte

(Algures no Deserto do Sahara)
 i-v-mmix


quinta-feira, 19 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO V - Soldado de fortuna



Obscuro soldado da fortuna
No verbo e no verso breve
Salta de noite
No escuro
E desce planando
Leve
Como pluma

Nada saber de ninguém
Nem de si
É seu fadário

Ninguém pergunta a um mercenário
Seja lá o que for
Ou o que tiver sido
Apenas se lhe pede que se mantenha de pé
Mesmo se vencido

Apenas se questiona o seu valor
No campo de batalha 
Que poderá bem ser
A sua mortalha

Rasga a atmosfera
Célere
Enquanto cogita

A Terra o espera
A loucura o toma
Grita de dor

Voga no plano astral

Apenas reentra no Universo
E recupera a sanidade mental
Se escreve
Versos de amor

(Algures no Deserto do Sahara)
 xxx-iv-mmix


terça-feira, 17 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO IV - Dança na minha mente a dança do ventre




Dança na minha mente
A dança do ventre
Huri

Amanhã entro em combate
Já o coração me bate
A rebate

Como os sinos da nossa aldeia
Que tocam a sinais
Tinindo dores e ais
Sempre que alguém morre
Quando quem vive
Embora só na ideia
É quem mais sofre

Porque te chamo eu, assim, de Huri
Se não és muçulmana
E nenhum profeta
De ti me fez presente
Estando eu ausente?

És transmontana linda
Ridente
Como a romã
Que pela manhã sorri
Com mil dentes de diamante

Amanhã entro em combate
Já o coração me bate
A rebate
Dança na minha mente
A dança do ventre
Huri

É o teu útero que eu quero ter
Para em ti renascer 
Se acaso morrer

Não neste deserto
Antes nesse oásis daí
De ti
Bem mais perto

(Algures no Deserto do Sahara)
 xxvix-iv-mmix


segunda-feira, 16 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO III - Miragem





Um mar de areia nos envolve
Em toda a jornada

O calor sufoca

Dunas
Mais dunas
Mais nada

Depois a sede
Adrede
Ardente
O suor
O estertor

Água!
Os meus lábios febris
Pedem água

Vejo oceanos além
Além
E além

E a imagem meiga de minha mãe
A acenar

Apetece-me correr
Saltar
Para a abraçar
E me dessedentar

Sou eu que sigo na dianteira
E se algum cair
Terei que parar o levantar
Não posso desistir

Se eu desisto
Outros desistem 
E todos acabamos por perecer


(Algures no Deserto do Sahara)
 xxix-iv-mmix


domingo, 15 de julho de 2018

LIVRO ABERTO NO DESERTO II - Minha doce huri






A minha cabeça pende
A meio da vigília
Vencida pelo sono e pelo cansaço
És tu, minha doce huri
Quem a afaga
E a reclina no seu regaço

És tu que te deitas a meu lado
Desnuda
Em sonhos súcubos
De airoso encantamento

Ouço o teu chamamento mavioso 
A pedir-me que regresse à Pátria
Onde me esperam os teus braços
E fico saudoso

Desperto
Neste deserto sem fim
Sem te encontrar

Não huri
Não pode ser assim
Prefiro morrer
Morrer por ti
Aqui

Foi aqui que eu vim
Te procurar


(Algures no Deserto do Sahara)
 xxviii-iv-mmix


quinta-feira, 12 de julho de 2018

LIVRO ABERTO NO DESERTO I - Vigília







Que vigilo eu?
No topo de uma duna
Onda estática de um mar imóvel
Agora que o vento amainou
E no céu esmeralda mil luzeiros cintilam
Tão suavemente 
Que nem dá para fazer bulir um grão de areia

Apenas uma ideia
Oportuna
Serpenteia em minha mente

Os soldados ressonam
Enfiados nos sacos cama
Ouço bater os seus corações

Não sei quem são
Nem donde são
Só os conheço daqui
E só eu sei que como eu
Não vivem de ilusões
Vão para lado nenhum
Para onde o destino aprouver

São a lama da raça humana
Sem pátria, nem lar
Talvez fugidos do amor de uma mulher
Só lhes dói a saudade

São flores de Lotus
Que germinam na bruma
Como eu
Pura espuma de espiritualidade

Que vigilo eu?

(Algures no Deserto do Sahara)
 xxviii-iv-mmix


segunda-feira, 2 de julho de 2018

Tocando o burro à nora



Tocando o burro à nora

Assim era outrora
mas ainda agora se ouvia
o tilintar metálico da nora
movida sem lamento
pelo paciente jumento
que o garoto descalço
no seu encalço zurzia
se parava estático para pensar
ou simplesmente urinar

Às voltas andava o burro
o rapaz casmurro
e os alcatruzes de lata
enquanto água de prata
medrava melões e melancias
e outras sadias poesias
na horta de ao pé da porta

Era assim naquele tempo
e ainda é agora

O garoto casmurro
que ora ri ora chora
qual burro de nora
toca a roda da vida
doída de cruzes
e devaneios

Alcatruzes de luzes
que ora rodam cheios de ambição
ora vazios de desilusão


quarta-feira, 27 de junho de 2018

Sento-me de novo na mesma pedra de sempre



Sento-me de novo na mesma pedra de sempre

Dei volta à vida
mundo fora

Rodou o tempo
outro é o vento
mas nada 
ou quase nada
mudou

Volto agora
a sentar-me na mesma pedra
emoldurada de hedra
postada no recinto
da velha ermida
voltada para Poente
erguida numa colina sagrada 
da minha amada
Terra Quente

Que bem que aqui me sinto!

O mesmo Firmamento
as mesmas luarentas noites de Verão
que me marcaram a mente 
e iluminaram o coração

As mesmas estrelas
as mesmas constelações 
os movimentos de sempre

As mesmas emoções
a mesma silenciosa solidão
os mesmos sonhos
a mesma Fé
a mesma oração
a mesma ânsia de verdade

De diferente
apenas e só…
mais
e ainda mais
da mesma…
Saudade

in ANAMNESIS (1.ª Edição: Janeiro de 2016)