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sábado, 11 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XX– Troglodita




Não me cabe a mim escolher
E não é pacífico o dilema
Nem o poema

Entre o deserto

Onde nem uma ave voa sequer 
Nem tão pouco voga um vulto de mulher
E a fome, a sede e a solidão matam e enlouquecem
Sem remissão

E as selvas
As florestas urbanas
E sub-humanas
Do Rio, de Paris ou de Lisboa
Onde nunca anoitece
Nem alvorece

Pudera eu ter-te aqui, ou lá, comigo, Huri
E a imensidão do deserto se transformaria em oásis frondoso
E a selva mais ardilosa
Quiçá
Num paraíso indiviso
Apenas partilhado por nós
E pelo Sol cor-de-rosa

Devaneio

Regressar à condição de troglodita
Será a minha glória
Ou a minha desdita?

Refugio-me nos subterrâneos do meu ser
Por onde vagueio
Desperto
Até me encontrar
Ou me perder

Sou um universo fechado
Num deserto aberto


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 17 de Agosto de 1955


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XIX – Banha-se nua, ao luar, no lago dos meus olhos






Banha-se nua
Em segredo e em fantasia
No lago dos meus olhos ao luar
O fascínio do seu albedo 
Me faz sonhar à luz do dia

E sentir medo de acordar
Neste mar de escolhos
O calor me seca os olhos
Não tenho lágrimas para chorar

Como a Lua que se banha nua
No céu
E chora lágrimas a cintilar
Que são estrelas
Assim é ela
Assim sou eu

De noite é sonho
De dia fantasia
E eu
Não sei que sou

Serei terra?
Serei céu?
Não sei que sou de verdade
Sou dor
Espuma de amor
Pura saudade

Por agora sou só sensação
Pouco mais que instinto
Trago uma fagulha de amor no coração
Faminto
Uma brasa que me abrasa a razão


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 14 de Agosto de 1955


quarta-feira, 8 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XVIII – Sempre que anoitece no deserto




Vivo dia por dia
Crente de que a vida me não engana
De que amanhã estarei vivo
E poderei continuar a sonhar
Contigo

Porém
Sempre deixo algo para fazer amanhã
E depois de amanhã
E na próxima semana
E no ano que vem

Algo que me prolongue o sonho
Que me faça pensar
E acreditar
Que assim viverei mais tempo
Quiçá para sempre

Nem mesmo a saudade
Que me vem de verdade
Sempre que anoitece
E me entristece
A sofrerei toda já
Hoje

Deixarei a maior parte
Para a sofrermos depois
Os dois
Em paz
Em silencioso lamento

Tenho assim a certeza
De que não te esquecerei

E que o meu amor merece a tua beleza
E não é tão fugaz
Como o vento


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 11 de Agosto de 1955

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XVII – Doí-me a alma e o coração





Estou deserto de regressar
Mas não deserto

Desperto
Continuo a sonhar

De novo me ausento
Para o deserto profundo
O único lugar do mundo
Onde somente sopra
O vento

Aqui melhor eu sinto
O ciclone da saudade
Dentro de mim a uivar

É a voz de Huri
Que não cessa de me chamar

É forçoso partir
Ir
E tornar

Se tapo os ouvidos para não a ouvir a chamar
Abranda o uivo do vento
Mas o seu lamento 
Mais forte me rasga por dentro

Nada me tira daqui
Deste mar seco de soledade
Deserto de ansiedade
Dunas de solidão
Dói-me a alma e o coração

Será que só a morte
Me libertaria desta triste sorte?

Não!
Da vida a morte é termo
Não é critério

Só o amor e a fé em Deus
Transforma este inferno
Em refrigério


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 9 de Agosto de 1955


domingo, 5 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XVI- Sahara



Não é Terra
É Marte, é Vénus, é lua

É areia
Despida
Nua
Sem húmus
Nem água
Nem ideia

Sem vida nem morte
O deserto mata
E seca
Só para sobreviver

Sem rumo ou norte
Sem além
É deserto é aragem
Miragem
É duna 
Ciclone
Convulsão
Local de passagem
Terra de ninguém
Aperto de coração

Sem vida nem morte
Sem rumo nem norte
O deserto incerto
É oásis
Quimera de éden


Tempo parado
A acontecer



Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 8 de Agosto de 1955


sexta-feira, 3 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XV – A viver e a morrer no deserto




O local ideal para um homem morrer
Desacompanhado
É o deserto

Na convicção de que a única fera que lhe devora as entranhas putrefactas
É o sol

E que os ossos calcinados
Se desvanecerão em pó
E se perderão na areia
Sem irem parar ao monturo de um qualquer cemitério
Da civilização
Destinados a serem reciclados 
Em qualquer produto industrial

Enquanto a própria alma se evolará
Na alvorada seguinte
Sem ritos litúrgicos
Como a mais pura exalação da vida

Donde se infere também
Que o local ideal para o homem viver
De verdade
É no espaço aberto
Do deserto
Onde melhor resiste às tentações
A alma se alimenta de fome, sede e orações
E o espírito mais claramente divisa o além
E se alcança a Eternidade

Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 6 de Agosto de 1955


quinta-feira, 2 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XIV – Semeando poesia na areia



No ar anda o ar da saudade
Angustiada
Condensada em grãos de ansiedade
Que me escorrega das mãos
Como areia
                  Ampulheta sem tempo
Que o vento molda 
Em dunas de sofrimento

Ideia que semeia poesia
Onde nada subsiste

Aqui apenas existe
Vento
Areia
E esta alegria
Breve e triste

Procuro flores escondidas
Transfiguradas em pólenes
Em esporos e esporângios
Que misturadas com as areias do deserto
Esperam há milénios
Por uma gota de suor e de esperma
Para germinar

E florir como anjos
Na frescura dos oásis
Se dessedentar de amor
E amar

Aqui a noite é de prata
Tem o toque da Lua
E do luar
O encanto da lubricidade

Já o Sol é demais
É de oiro
E mata


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 5 de Agosto de 1955




quarta-feira, 1 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XIII - Uma mão cheia de areia e outra de deserto a desertar





Do chão
Apanho um punhado de areia
Para de mão erguida
A abrir de seguida
E deixar que as areias
Uma a uma
Retornem à duna

Assim me abstraio da minha ansiedade

Até que resta só
 O pó da saudade no ar
E dessa
Não me consigo libertar
                  Porque nenhum vento passa
Por perto
Que para longe a faça soprar

Do chão
Apanho outro punhado de areia
E lanço-a no ar
Do deserto
Onde se não divisa nenhum caminho

É por aí que segue o meu destino

À noite
Lanço outra mão cheia de areia
Ao vento
No espaço aberto do deserto
Para saber
De que lado está o vento
A soprar

Uma mão cheia de areia
Outra de deserto
A desertar

Vejo a Estrela do Norte no céu a fulgir
Ouço o Cosmos a tilintar
É minha amada que me está a sorrir
São horas de em amor 
Ao luar
Me banhar

Mais a norte
Ouve-se a morte a ribombar 

Daniel Monforte, Legião Estrangeira
(Algures no Deserto do Sahara)
  iv-viii-mmix



segunda-feira, 30 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XII - Pietá





Sentada no chão
À entrada do adobe esburacado
De semblante alucinado
Com o filho moribundo nos braços
É uma estátua de morte viva
Uma imagem trágica
Que me tolhe os passos

No crânio da criança
A fome esculpiu uma caveira
A boca febril é pasto de moscas
Os olhos mortiços saltam-lhe das órbitas

A barriga prenhe de fome
Parece prestes a parir a morte
Já os ossos lhes rasgam a pele

A mão estendida da mãe
Rasga-me o coração
A sua súplica silenciosa
Fura-me os tímpanos
A sua agonia é a mim que primeiro mata

Que tenho eu para lhes dar?
A arma?
Um sorriso?
Uma lágrima sentida?

Dou-lhes a ração de combate
Sacio a boca febril da criança
Com a água do cantil

No rosto da mãe
Esboça-se um ténue sorriso
De esperança
Agradecida

Não tenho coragem para prosseguir
E deixá-los ali
Sós
A agonizar

Neste deserto 
Aqui tão perto
No deserto da humanidade

Algures no Deserto do Sahara)
  xviii-vii-mmix


sábado, 28 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XI – Oásis



Depois duma penosa travessia
Em que por pouco enlouquecia
De calor
Sede
E solidão
Faltas-me tu
 Huri

De braços abertos
Sorriso rasgado
No rosto de amor iluminado

Rejubilante de alegria por me receber
Desejosa de me vitoriar

Mas se no deserto me perco
No oásis não me reencontro

Volto a acreditar, sim
Depois que estive a morrer
Que há mais vida para lá de mim
E mais prazer além do sofrer

Mas a água fresca que sacia a sede
Não mata a saudade
Apenas ouço o silêncio do que penso
Falta-me a tua voz encantada

Os lagos em que me banho
Não possuem a frescura perfumada
Da tua pele electrizada

O oásis sem ti é pior que o deserto
Ainda mais cruel
Mais me faz sofrer
Porque só de ti  me faz lembrar

Melhor será ao deserto retornar
Para de ti me esquecer

(Algures no Deserto do Sahara)
 iv-v-mmix


sexta-feira, 27 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO X – Cavaleiro Andante das Areias




Figura rara
Sem escudo nem laçarote
Cavalgo sem cessar
Sobre o dorso de um dromedário
Ondulante
Qual Quixote das ideias
Cavaleiro andante 
Errante nas areias do Sahara
Sem ter aonde parar

Sem escudeiro
Sem Sancho
Nem Pança
Nem lança

Este o sentido da minha poesia
Sendo que a minha Dulcineia
Me espera noutro lado
Distante
De angústia são as dunas em que me deito
E me servem de leito

Tomei partido pelo Bem
Sem olhar aonde
Nem a quem

Sendo que só com poesia se humaniza a guerra
Se suaviza o deserto
Se semeia oásis
Se planta a paz na Terra

Com o amor que se faz
E o a amor que se dá

Esta a minha maior vocação
Ser como S. João da Cruz
Como Francisco de Assis
Fardado e de arma na mão

Esta a angústia da minha contradição

(Algures no Deserto do Sahara)
 iii-v-mmix

quarta-feira, 25 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO I X – Vivo de ar, água e oração





Não é miragem
É milagre!

Ergo-me num derradeiro sopro
Pressinto-lhe o cheiro
A frescura envolvente
A minha alma está silente

Uma alegria indizível me revigora o corpo
Me embriaga o espírito
E alegra o coração

Corro!
Com as forças que já não tenho
Mas que acredito tererei
Depois de beber
E de me dessedentar

Paro!
Terei que me matar para beber?!
Olho em redor
Não vislumbro vivalma

É morrer o preço de beber?

Viva ou morra
Beberei!

Bebo
Com sofreguidão
A paz
Por fim
Se instala na minha Razão

É a Água
Não a Terra
A nossa mãe

Em terras de xisto
Cristo é o pão

De ar e de água se alimenta o corpo
À alma basta uma oração

(Algures no Deserto do Sahara)
 xxx-iv-mmix

segunda-feira, 23 de julho de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO VIII – Reclino a alma em manto de areia





Distende-se a noite sobre o manto ondulado de dunas
Abate-se a calma
Deita-se a morte na areia
Em que reclino a alma

Diáfano
Cobre-me o Firmamento
Maior é o meu pensamento
Onde uma ideia feita estrela bruxuleia

Procuro o poema Polar
A poesia do norte
Ponho-me a meditar

Sou cristão
Por isso não tenho religião

Sou branco
Ainda assim não tenho cor

Sou português
Não tenho pátria
Portanto

Pecador
Aspiro a ser santo

Nasci livre
Condenado a lutar
Para me libertar

Sinto amor
Mas não sei a quem amar

Escolhi o lugar mais ermo da Terra
O deserto
E a guerra
Para me pacificar

(Algures no Deserto do Sahara)
 xxvix-iv-mmix