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segunda-feira, 20 de maio de 2024

Abraço ao vivo e em tempo real


No exacto instante em que pousas a vista neste primeiro verso

anota o tempo

e regista o local preciso do Universo

em que te encontras

 

Coloca um cronómetro a contar

 

Lê bem alto

em silêncio

para ti

este poema

por forma a ser ouvido por todas as partes do teu ser

 

Nota que não sou eu que falo contigo

e que a mim

tão pouco

sequer

me podes imaginar

 

És tu que fantasias

e vives poesia ao vivo e em tempo real

 

Quem escreve apenas exterioriza o que o próprio sente

a menos que se coloque no teu lugar

 

O poeta real és tu que lês

sentes

interiorizas

e te pões a divagar

 

Tu que te libertas de ti

do mundo

e cavalgas no vento

 

Tu que te ergues por dentro

para viver aventuras impossíveis de contar

 

Tu que a ti muito te estimas

que não se atém a uma palavra

a um som

a uma rima

e tudo te serve para poetar

 

Tu que reduzes o espaço a um abraço

e o tempo a uma eternidade

 

Para o cronómetro agora

 

Por certo nem deste pelo tempo passar

 

Terão sido segundos

ou foi uma eternidade?

 

Estives-te aí ou noutro lugar?

 

Eu não sei

 

Apenas sei que acabaste de me abraçar

 

 

Vale de Salgueiro, sábado, 15 de Junho de 2013

Henrique António Pedro

 

 

 


sexta-feira, 17 de maio de 2024

Mandrágora


Eu nunca estive aqui

nem mesmo agora aqui estou

alguém se serve de mim

e de mim faz o que não sou

 

Alguém me enfeitiça e me atiça

me disfarça de ar e de água

de amor e de mágoa

 

Alguém me acusa

e se escusa

a me julgar

 

Eu nunca nasci

nem nunca morri

e sempre vivi noutro lugar

 

Para lá vou voltar

quando acordar

aonde

de onde

nunca saí

 

Apenas eu posso saldar esta injustiça

este feitiço de dor

pela magia do amor

 

in Introdução à Eternidade

Copyright © Henrique Pedro (prosaYpoesia)

1.ª Edição, Outubro de 2013

 

 

 

terça-feira, 14 de maio de 2024

Receito poesia


Escrevi este poema a pensar em si

menina bonita

que ontem à tarde

se queixava de se sentir estressada

contrita

sem saber por quê

 

Sem conseguir dormir

nem lhe apetecer sair

e que mesmo acordada

não lhe apetecia fazer nada

tão pouco sorrir

 

Não sou clínico nem farmacêutico

psicólogo, bruxo ou endireita

amigo displicente

já se vê

 

Sou apenas poeta de fraca valia

homem de boa vontade como sabe

por isso lhe passo esta receita

que nenhuma farmácia avia

certamente

 

Leia! Leia boa poesia!

amorosa

cor-de-rosa

surreal

social

medite

declame

e depois acame

sozinha ou com quem a ame

 

Verá que a poesia é uma luz

um remédio especial

que não faz mal a ninguém

não tem contra-indicação

que fortalece o coração

e até induz

relaxamento espiritual

 

Vale de Salgueiro, domingo, 15 de Junho de 2008

Henrique António Pedro

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Quem sou eu, afinal?

 


Quem sou eu, afinal

Sou um Cartão de Cidadão

um alarde Citizen Card

duma púdica República

chamada Portugal

 

A fotografia tosca de um rosto

sem sorriso

que não retrata um coração dorido

 

Um nome e um apelido nada mais

uma referência a meus pais

 

Um Número de Identificação Fiscal

outro de Contribuinte

que não teria se eu fora pedinte

 

Sou uma letrinha pequenina

sem nexo que identifica o sexo

que grande imbróglio

ó Portugal glorioso!

 

Sou o que meço de altura

omitindo a minha postura

 

Sou um número de utente

do Serviço Nacional de Saúde

outro da Segurança Social

demente e sem virtude

sou o local onde moro

é demais

 

Sou um cidadão numerado

marcado

de impostos pagador

eleitor de algum político impostor

 

Sou bites e bytes de uma Base de Dados

destinados a serem manipulados

partilhados

repartidos

abatidos

a bem ou mal

ditames do Orçamento de Estado

ou da Segurança Nacional

 

Não sou ninguém nem nada

em última análise

herói sequer de banda desenhada

catarse do que não quero esquecer

sem que saiba bem porquê

 

Sou esta angústia de não saber

aquilo que gostaria de ser

mas não um número já se vê!

 

Vale de Salgueiro, quarta-feira, 28 de Abril de 2010

Henrique António Pedro

 

 

 

terça-feira, 7 de maio de 2024

Dou-me conta de que falhei na vida


A cada dia que passa

Mais me dou conta

De que falhei

Na vida

 

Não porque seja indevida a minha vida

Tão pouco por eu não ter qualquer poder

Ou glória

 

A História nada me diz

Conquistar o mundo

Não me apraz

E nada tenho a perder


Tão só porque que me sinto um poeta falhado

Angustiado

Porque não escrevi

Ainda

O poema que a mim mais me satisfaz


Também

Porque não aprendi

Ainda

A amar

Como devia


Continuo a tentar

Porém

Na esperança de que por tanto insistir

Acabarei por me redimir

E triunfar


Um dia

 

Vale de Salgueiro, domingo, 16 de Outubro de 2011

Henrique António Pedro

 

 

domingo, 5 de maio de 2024

Uma etérea flor astral do jardim de minha mãe



Nasci de amor perfumado

qual flor de jasmim no jardim de minha mãe florido

onde meu pai havia semeado

embevecido

especial etérea semente astral

fruto do seu coração também

 

Nove meses andei escondido

naquele ventre doirado

protegido de todo o mal

ungido e baptizado na fé de Cristo

depois de haverem decidido

que o seu filho bem quisto

desejado por tanta gente 

haveria de nascer

à hora do sol nascente

 

Continuo sem saber

porém

a que pedra

a que fonte

a que estrela

a que ar ou a que água

foram meu pais escolher

essa etérea flor astral

com tão amorosa frágua

 

Porque nasci e vivi

e por crer que sou imortal

espero um dia podê-los rever

sem mágoa

também porque para meus pais

que moram agora no além

eu

jamais

morri

 

Vale de Salgueiro, domingo, 15 de março de 2015

Henrique António Pedro

 

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Peço a Deus que recrie o homem e leve a mulher de volta para o paraíso

 


Eu peço a Deus que recrie o homem!

 

Que lhe dê corpo mecânico

com pernas e braços hidráulicos

facilmente desaparafusáveis

e substituíveis

 

Com transistores e fusíveis nos sentidos

sistemas de vídeo nos olhos e ouvidos

um computador no lugar do cérebro

e uma bomba hidráulica no lugar do coração

alimentados por energias renováveis

e óleos biodegradáveis

para não afectar a Natureza

nem as demais espécies

 

Um homem que não sofra de angústia existencial

nem sinta dores físicas ou paixões

e que possa encostar na berma da estrada se o combustível faltar

podendo o espírito continuar a passo

sem embaraços nem buzinões

já que não haverá viaturas a circular

 

E não havendo sofrimento físico

nem sendo derramado sangue

apenas óleos e fluidos recicláveis

os horrores da guerra e do terrorismo

da fome, da doença, da miséria e da poluição

desaparecerão da superfície da Terra

 

Um homem que possa expiar as suas culpas ao ar livre

num cemitério de automóveis

não no inferno

e que sempre possa trocar a alma

para um modelo mais moderno

 

Peço ainda a Deus

que quando for forçoso morrer

seja suficiente buzinar o cláxon para dizer adeus

 

e voltar reencarnado num avião

ou mesmo numa nave espacial

 

É minha convicção

que apenas com um homem assim

salvo melhor juízo

se salvará a Civilização

 

Quanto à mulher

Deus meu

podereis levá-la de volta para o Paraíso

e deixá-la lá assim como é

que nenhum mal advirá ao mundo

 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 17 de Julho de 2008

Henrique António Pedro

 

 

 

 

 

domingo, 28 de abril de 2024

Eis o Amor!


 

Eis o Amor!

Nalgum momento

Certamente

Sentis-te que amavas alguém

E o declaraste

 

Nalgum momento

Certamente

Também ouviste alguém dizer que te amava

 

Em ambiente cor de rosa

Á luz das velas de uma mesa de jantar

No tálamo nupcial

Numa amorosa noite de luar

Ou de um romântico pôr do sol

 

Tomado de lícito desejo

Enlevado de irresistível paixão

Em paga de um terno beijo

Ou por mera piedosa mentira

 

Na euforia de uma vitória

Na alegria de uma festa

Por efeito de um copo de vinho

De uma taça de champanhe

De uma inopinada hormona

 Ou de uma libidinosa feromona

 

Por piedade ou compaixão por alguém que sofria

E cujo sofrimento também a ti te condoía

 

Será natural se assim for

 

Porém

Apenas sentiste

Disseste

Ou ouviste uma efémera imitação de Amor

 

Porque

Certamente

Dificilmente algum dia

Sentiste e declaraste que amavas alguém

Sabendo que esse alguém nada tinha para te dar de volta

E muito menos a quem te ofendeu

Ou martirizou

 

Mas aquilo que Jesus Cristo sentiu pela Humanidade inteira

Mesmo pela turba que O injuriou

Pelos algozes que O crucificaram

E o proclamou do alto da Cruz

Exangue e agonizante

Sem que ninguém Lhe tenha dito que O amava

Para lá de Sua Santa Mãe

Isso sim é Amor

 

Vale de Salgueiro, 16 de Março de 2008

Henrique António Pedro

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Medeia


Melhor seria não ter olhos para a ver

e me deixar fascinar

pelo seu olhar

 

Melhor fora ser surdo e mudo

para não poder ouvir o seu canto de sereia

nem poder responder e me deixar enredar

nos encantos da sua melopeia

 

Não ter braços para a abraçar

sem mais a poder largar

 

Nem ter sexo para a desejar

e ela

por reflexo

me poder a mim me cobiçar

 

Melhor seria que eu não tivesse coração

nem Razão

para não cair nesta cruel contradição

 

Mas a vida é assim

e assim sendo

não me arrependo

 

Mais vale sentir todos os sentidos abertos e despertos

e não a poder largar

nem ela

a mim

me poder abandonar

 

Mais vale sentir-me Jasão aprisionado

a seu lado

e sabê-la

a ela

a sereia Medeia

falaz

a mim acorrentada

sem poder fugir

 

 

Ouvir seu pranto de mulher apaixonada

sem ser capaz de resistir

 

Sem deixar de acreditar

que o espirito acabará por se libertar

 

Vale de Salgueiro, terça-feira, 24 de Agosto de 2010

Henrique António Pedro

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Canção de Abril a abrir

 


Nota prévia:

Poema escrito na Ilha de Moçambique, em 25 de Abril de 1971, precisamente. Por isso o tomo como uma inusitada, angustiada, saudosa e confusa premonição da revolução de 25 de Abril de 1974.

 

 

Canção de Abril a abrir

 

Perpassam veleiros entre mim e a História

Nesta tarde inglória de Abril

A abrir

 

Prostrado que estou em praia lânguida

Assalta-me a ideia cândida

De negar o corpo à guerra

E regressar à minha terra

 

Neste eterno mar de desentendimento

Sereno depois que em mim amainou

O Inverno do meu descontentamento

 

Calmo oceano para mim que sou do interior

Para quem nenhum mar é forma de vida

Mas tão somente praia perdida

Onde a minha alma fica dormente

 

Alma de quem está ausente

A travar batalhas de tormento

A tecer mortalhas de sentimento

Com que o coração envolve a razão

 

Noutro veleiro o horizonte se materializa, agora

À hora de me ir embora

 

Não é meu este mar

Esta água e este ar

É lá e não aqui a minha terra

 

Nenhuma é a minha guerra

 

Justo é viver em paz

Seja lá onde for

A mim tanto me faz

 

Ainda que injusto fosse o desforço

Tão fraco é o fosso

Que frágil veleiro consegue transpor

 

Quantas vez mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

 

Heroico será ir além do Bojador

Voltar à terra quando se é do interior

Se não tem o mar por ganha pão

Muito menos a morte por condição

 

Humano para mim

Ainda assim

Será sonhar cruzar de novo o mar

Idear novo Império

Outro Ultramar

Feito de História e luso Verbo

Sem sombra de vitupério

 

Abrir os olhos na neblina

Assumir o destino divino

Passar a sina e o sinal

Das novas pátrias

Dádivas do pródigo Portugal

 

Pátrias sem equadores a cortar a Justiça

Nem cores a estigmatizar as almas

 

Calmas são as tardes de Abril

A abrir

 

Ouço embevecido o frenesim das batucadas

Sorvo o sabor de mangas maduras

Sofro a saudade das melodias electricistas

O sofrimento das romãs ensanguentadas

A dor do caju retorcido

 

Quantas vezes mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

 

Quantas vezes mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

 

Quantas vezes mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

                                                        

Ilha de Moçambique, 25 de Abril de 1971

Henrique António Pedro