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sábado, 21 de dezembro de 2013

Cai neve na Terra Quente (Poema-conto-cântico de Natal)




A noite passada nevou
na Terra Quente Transmontana
e por toda a Montanha
circundante

Há neve por todo o lado!
Oh que alegria tamanha!
Que manhã surpreendente!
Encantada!
Rutilante!
E tudo tão comovente!

Fico mudo
contudo
calado
porque sinto no ar gelado
o frio da natureza humana

E também cai neve em mim…
também me neva na alma
ainda assim

Porque me lembro dos desgraçados
dos infelizes desabrigados
que andam de pés ao léu
e não têm como eu
cama quente para dormir
um lar onde se abrigar
do frio, da fome e do sofrimento
do desumano alvedrio

Uma mão amiga sequer
para os consolar
fazer sonhar e sorrir
vencer com alegria
o triste descontentamento

A neve é fofa e feérica
embora fria
para quem não sente o sopro gelado da alma
o tremor do corpo esfomeado

Poderá até ser poética e bela
para quem tiver um lar para se aquecer
e agasalho para dela se abrigar

Mas é patética para quem não a vê cair
ao som de música suave
nem tem comida e bebida
para bem comer
melhor beber
e paz para usufruir

Ponho-me a deambular
taciturno
mergulhando na neblina de silêncio
que cobre toda a Natureza 
apenas rasgada aqui e além
pelo bater de asas de uma ave
fantasmagórica 
que foge de mim 
como se eu fora um fantasma diurno

Só paro ao cair da tarde
numa planície erma
gelada
o meu coração ferve
a minha imaginação arde
a minha alma pasma

Tudo em redor é branco e frio
a própria atmosfera cinzenta
mal se distingue da terra dormente
nevoenta

Especa o negro mastim 
atrás de mim 
de orelhas espetadas que nem lobo
a farejar algum gesto suspeito
talvez um engodo
a olhar-me fixamente 
em canina expressão de fidelidade
e de angustiada interrogação
sobre o que fazemos ali
de verdade
na tristeza da noite antecipada

Acendo uma fogueira no descampado
aclara-se a escuridão
alegra-se o meu coração
derrete-se a neve a toda volta
e o espectáculo fica mais belo
e quente
mais digno de gente

De pronto se aproximam os sem-abrigo
os desamparados
os mal-amados da Terra
refugiados de guerra
novos, velhos e crianças
humanos de todas as cores
dores e sofrimentos
de diferentes andanças

Que rodeiam o fogo, receosos
tímidos, silenciosos
enquanto eu gesticulando 
vou convidando
para que não esmoreçam:
-Venham! Venham! Se aqueçam!

Em breve uma multidão enorme
estende as mãos para as chamas
que lhe lustram os rostos
sofridos de frio, de fome e de indiferença

Dou-lhes de comer do fumeiro
alheiras, linguiças e salpicões
os biscoitos que encontro na dispensa
reparto todo o pão da arca
sirvo taças de vinho fino
para que vençam a apatia
e nos seus corações
se instale a alegria

É então que um velho de barbas brancas
já mais alegre e jovial
falando alto abre o coração:
- Viva o nosso Pai Natal!

Não permito que a turba replique
sou eu que contraponho antes que seja tarde
e se instale o sonho:
- O Pai Natal não existe!
 É um logro!

Mas o velho não desiste:
- «Dizem que é o que há demais
nas superfícies comercias
e que vende de tudo
ceroulas, sobretudos e postais»

Todos riem estrondosamente!

Mas de novo se instala a dúvida
e a tristeza, naquela gente
mais crente nas chamas crepitantes
que em quimeras distantes

Mas eis que de repente uma criança
magra e macilenta
faz ouvir a sua voz inocente
e apontando-me o seu alvo dedinho 
no qual a fogueira reflecte luz 
proclama, pura e fagueira:
- «Se não és o Pai Natal…
 então és o Menino Jesus!»

E eu…
apanhado de surpresa
envergonhado e comovido com tanta pureza
respondo irreflectido:
- «Também não sou o Deus Menino!
Dizem até que foi raptado do Presépio
que anda por aí perdido
nu
e que Nossa Senhora e São José
andam aflitos à Sua procura!
Acaso não serás tu?»

E a criancinha modelar
de voz tão suave e condoída
que mais parecia ser ela, sim, o meigo Jesus 
responde baixinho, a contraluz:
- Mas eu não tenho prendas para dar!

É nesta altura que sua mãe
uma mulher jovem e bela
apesar de tamanha miséria
exclama erguendo o filho no ar:
- «És sim! Tu és o Menino Jesus
e tens o Sol para nos dar»

Naquele mesmo instante abre-se o astro rei
flagrante de alegria, calor e amor
a Natureza alumia-se com todo o esplendor
e a fria neve acende-se de verdade
feérica e linda pelo reflexo da luz solar
e pelo calor da mais pura solidariedade

E por toda a Terra Quente Transmontana
e pela circundante Montanha
ecoa um coro de anjos desabrigados:
- “Gloria in excelsis Deo…
e paz na Terra aos homens por Ele amados”

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)





quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Amor, simplesmente.



Sem tempo
nem vento

Aberto
discreto

Silencioso
delicado
deslumbrado

De sorriso suave
solidário
comprometido
sem se comprometer

De caminhar amoroso
de mão dada
sem dizer nada
e tudo dizer

De desfrute
com delite
do leito conjugal
na obscuridade da sensualidade
serena
do corpo
e da mente

De amar caloroso
terno
eterno
fraternal

Delicado como uma flor
mais forte que a dor

Amor simples
simplesmente


Simplesmente amor

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Trazíamos a electricidade no corpo e não sabíamos




Trazíamos a electricidade no corpo
e não sabíamos

No entanto
é a electricidade que dá estímulos ao coração

Tínhamos cálcio e ferro e sal nos ossos
como qualquer planta
ou animal
sem saber também
para nosso bem
ou nosso mal

E água
muita água e o sopro de vento
que nos faz respirar

E não víamos sequer a luz dos olhos
que nos faz ver

Como poderemos então perceber
o espírito e a alma
que pairam no nosso interior
se não abrimos os olhos e os ouvidos
do amor?

Tudo que ama tem alma!

Mesmo uma fraga descomunal
que seja
surda e muda
poderá ser o anjo encantado
que se transmuda

em catedral

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Dessa mulher nada quero saber





Não quero saber quem é
nem o que faz
ou que fez

É-me indiferente

Completamente

Não me importa saber se é bonita
catita
feia
fantasma
sereia
inteligente
indigente
morena
liberal
grande
pequena
sensual
bailarina
nórdica, arábica ou latina

Duvido até que é disléxica, estrábica e daltónica
porque mal me vê
e nem me fala

Sobre essa mulher
não me interrogo

Quero lá saber!

Apenas me questiono
porque será que só de a ver
me emociono

Dessa mulher nada quero saber

Vale de Salgueiro, segunda-feira, 27 de Fevereiro de 2012
Henrique Pedro

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Sorrisos que só mostram dentes



Os mais sinistros sinais
destes tempos dementes
são
quiçá
os sorrisos que não mostram mais
que dentes

São sorrisos coercivos
que vendem dentífricos inofensivos
“lingeries” vaporosas
e políticas maliciosas

São sorrisos sinistros
que enredam os espíritos
em ilusões cor-de-rosa
escondem a perfídia
disfarçam a traição
e levam à perdição

Urge
portanto
que aprendamos a sorrir
sorrisos mais explícitos
com natural encanto

Urge que a Humanidade
reaprenda a rir de verdade
a sorrir sorrisos que abracem
e enlacem

com naturalidade

sábado, 7 de dezembro de 2013

Coisas que sinto que não sei o que são



Há coisas que sinto
e que não sei o que são

São infinitas formas de angústia
sonhos
ilusões
pesadelos
dúvidas
desejos
outras tantas tentações

São estranhas formas de dor
e de sofrer
vontade de matar
e morrer
desejos de aniquilar
ódios e paixões

Tantas coisas eu sinto
que não sei o que são

Uma só forma de amor
e amar
têm lugar
de verdade

no meu coração

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Pleno poema é o meu pinhal






Pelas minhas próprias mãos plantado

pelo suor do meu rosto regado

cresceu livre do vil vento do mal

pleno poema é o meu pinhal!

 

Pela Mãe Natureza abençoado

é cântico sublime, sibilado

que viceja no húmus ancestral

corpo, sangue, alma universal!

 

Imune aos venenos que o vento

sopra sobre a Terra mal amada

ar de angústia e sofrimento

 

Das aves é guarida, sustento

de mim dádiva da vida sonhada

dom, som, sinal, aval dum novo tempo

 

Vale de Salgueiro, 9 de Abril de 2008

Henrique António Pedro


quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Cantar de encantar a pedra



Não me consta que houvesse
mestre maçom
por mais iluminado
que de porpianho mais soubesse
que o pedreiro Justiniano
embora ele não fosse
nem crente nem ateu

Encantado ficava eu
ouvindo o mestre canteiro
cantar à cantaria
que ele próprio esquadrou
nas fragas do inóspito
e sombrio quadraçal

Ei pedrinha ou…
ei pedrinha ou…

E o tosco bloco de granito
mais pesado que a cruz de Cristo
deslizava enlevado
por via da magia
do laico cantochão

Leve como a água de poesia
que então se vertia
na cabeça do neófito
na pia baptismal
em busca da salvação

Ei pedrinha ou…

ei pedrinha ou…

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Húmus de angústia



Hoje
vou caminhar
adrede
campos fora
noite a dentro
atolar-me na lama dos caminhos

Vou esquecer que existo
votar-me ao abandono
diluir-me na Natureza
não responder a ninguém
fintar o sono
tratar as ideias com desdém

Vou deixar que a minha angústia
se misture com a água da chuva
em húmus de poesia
que as raízes das plantas a absorvam
e a convertam em seiva

Para desabrochar em flores de alegria
já na próxima Primavera
e florir em fruto lá mais para o Outono

Hoje
vou caminhar
adrede
campos fora
noite a dentro
até entrar em transe
e explodir em êxtase

quando o Sol raiar

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Despeço-me. Adeus!



Agora sou verdadeiro
sou o que pareço

Já não morro
já não vivo

Não choro
nem rio

Não gozo
não sofro

Já nada faço aqui

Já voo outros céus
em círculo
respiro outros ares
a arfar
navego à vela noutros mares
distante das tempestades

Já vivo o que nunca vivi
não sou mais “eu”
nem sofro o que sofri

Sou agora um todo
inteiro
a sonhar

De mim
sem demora
me despeço
e me apresto
para a mim
breve
voltar

Em cada instante parto
de mim me aparto
e regresso a mim


Despeço-me. Adeus. Até ao meu regresso.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sombras de luar




Por agora ainda a Lua se desvanece
em fumo
no céu azul
imaculado

Alva
circular
translúcida
aparentemente imóvel
sem nuvens que a posssam referenciar

Percebe-se melhor
o seu movimento
depois que as primeiras estrelas
surgem no céu

É preciso esperar
para ver

O luar recorta nas almas
imagens doces
amorosas
mas as suas sombras
são vãs
ilusórias


São as sombras da paixão

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Batendo com a cabeça no Infinito





Nestas noites amenas e serenas
em que o espírito se embriaga de espiritualidade
e a angústia se adoça
em doce soledade
fascina-me o Firmamento

Vejo-me reflectido no imenso espelho
cristalino
que me envolve
e me toma o pensamento

Expedito
voo por ele adentro

Até que bato com a cabeça no infinito
qual insecto vagabundo
que se projecta contra o vidro
em que se vê reflectido

Também eu me iludo
e julgo ser aquele
o meu mundo

Mas depressa me dou conta
de que não tenho pernas
nem braços
nem asas
nem motor espacial
capazes de lá me levar

E que apenas se voar
por mim adentro
poderei
um dia

lá chegar