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sexta-feira, 8 de março de 2024

AMAR SÓ DE NOS VERMOS SEM NOS OLHARMOS


Gosto de a encontrar

de por ela passar

de a ver sem olhar sequer

e sem lhe falar

 

Gosto de ver que também ela me vê

mas que não me olha

que sorri para dentro de si

fingindo não me conhecer

 

Vemo-nos sem nos olhar olhos nos olhos

em simultâneo

mutuamente

 

A mim muito me apraz assim amar

fingir que a não vejo

quando mais a desejo

 

Percebo

que também ela fica contente

por me ver

sem, contudo, me olhar

 

Que fica em paz

como eu

certamente

só por me encontrar

 

Feliz por me ver

sem me olhar

também a ela apraz

esta forma de amar

certamente

 

Perspicaz

ela nada me diz

e eu por castigo

nada lhe digo

Obviamente


Henrique António Pedro ( 2010)

 


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Pura amizade

 


Combinámos deitarmo-nos juntos
despidos
sem ter em mente outros assuntos
apenas para a nós mesmos provar

desinibidos
que nada de mal iria acontecer

E não aconteceu?

Bem!
Aconteceu o que tinha que acontecer
o que era inevitável que acontecesse
aquilo que a tentação ditou
e a amizade não evitou

nada que não se merecesse

Aconteceu fazermos amor por pura amizade

não por mero instinto ou desejo de prazer

 

Se assim não fora a amizade não seria amizade
seria uma enormidade
mas em nada a amizade se molestou

e no mais puro amor se transmutou


Muito embora ela ainda hoje me chame de atrevido
só porque eu estava despido

Mas eu respondo que atrevida foi ela

que estando igualmente despida
e sendo linda como uma estrela

se deitou comigo

nua

numa noite de lua

predisposta a amar

se deleitou

e me seduziu

só de a olhar

Será que valeu a pena?!

Tudo vale a pena
se a amizade não é pequena
como se viu

Foi amoroso
delicioso
como bem se quer
um jogo de verdade

como outro qualquer

Que só por amizade

se não repetiu


Lisboa, 4 de Abril de 1969

Henrique António Pedro


 

 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

À imagem e semelhança de Deus


Se me olho ao espelho

e embora me não veja

porque sou mais que imagem

gosto do que vejo

 

Porque vejo poesia no meu olhar

e nos poemas que escrevo projecto

a infinita capacidade de amar

a irrecusável predisposição

do meu coração

para se dar

 

Gosto do que vejo

porque amo de verdade imensa gente

embora assim de repente

apenas me lembre

daqueles que amo mais

 

Gosto do que vejo

porque amo o Céu

a Terra

a Vida

a Humanidade

  

Olho-me ao espelho

e embora me não veja

gosto do vejo

 

Porque sinto no meu peito

que há verosimilhança

na ideia de que fui feito

à imagem e semelhança

de Deus!

 

 Vale de Salgueiro, sexta-feira, 19 de Novembro de 2010

 Henrique António Pedro

 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Telurgia

 


Raras nuvens róseas assinalam o ocaso no céu cerúleo

ainda mal o Sol se esconde no horizonte


A brisa fresca perfuma-me por dentro com o aroma das tílias floridas


Trago as mãos calejadas

odoradas do alecrim que ladeia o caminho
e o espírito ustulado de soledade

Não encontro espaço no Cosmos que me contenha

mas sinto que o Universo cabe inteiro dentro de mim

 

Este iluminado telurismo que me anima

é a força cósmica que me gerou

e cria 

 

Extravaso-me numa ejaculação de alegria

que é uma encantada poética liturgia

uma genuína “telurgia”

uma jaculatória de poesia


Oro na quietude do fim do dia  

 

Vale de Salgueiro, quarta-feira, 16 de Junho de 2010

Henrique António Pedro

 

 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Talvez…


Talvez minha mãe

quando eu ainda era menino

me tenha estreitado com ternura demais, em seu seio

de coração apertado pelo maternal receio

e bafejado com o seu virginal afecto

e carinho

 

Talvez…

 

Talvez meu pai

tenha levado longe demais, em mim

o ideal da verdade

liberdade

aventura

e altivez

 

Talvez…

 

Talvez o meu povo, simples e probo

me tenha marcado de forma especial

com a sua generosidade ancestral

a sua simplicidade

rusticidade

e honradez

 

Talvez…

 

Talvez a minha amada Terra Quente Transmontana

me tenha moldado em seu ventre

com o calor do Verão destemperado

o frio do Inverno desmedido

e o seu raro Firmamento de religiosidade iluminado

eterna promessa de Parúsia, hossana!

que em cada Primavera se espera

 

Talvez…

 

Talvez Cristo Jesus e a sua Cruz

tenham tocado demasiado fundo o meu coração

e transformado para sempre a minha vida

numa permanente oração

 

Talvez…

 

Talvez a minha Pátria, Portugal

me tenha desiludido

e traído o Império Místico da Irmandade Universal

a razão de ser português

 

Talvez…

 

Talvez por tudo isso eu me sinta agora e aqui

deprimido

angustiado

de coração agitado

confrontado comigo

com os meus

com Deus

os céus

as misérias do mundo imundo

e o fracasso da Civilização

 

Talvez…

 

 

Vale de Salgueiro, domingo, 27 de Julho de 2008

Henrique António Pedro

 

 

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Trópicos

 


Nas terras a norte do trópico de Câncer

Como nas terras a sul do trópico de Capricórnio

Em que as quatro estações do ano são bem claras e demarcadas

Quando a Primavera explode em luz, cor e som

Plantas, animais e humanos, transpiram sexualidade por todo o lado

Por cada poro, de todo o jeito e trejeito

No palpitar amoroso de cada aurícula e ventrículo

 

São as borboletas que voam leves, levadas pela brisa do amor

As aves que que abertamente entoam gorjeios de sedução

As abelhas que poisam de flor em flor

(Oh, sublime tentação!)

E acabam mesmo por engravidar as flores

Como mais tarde se verá pelo Outono

Quando as romãs sorrirem despudoradas

E os ouriços arreganharem os dentes aculeados

Para com dor se libertarem das crias, castanhas

 

Entre os trópicos, na chamada Zona Equatorial

Úbere da mais exuberante biodiversidade

Ali onde o Equador marca a linha de maior gravidez da Terra Mãe

Num sufoco de calor, humidade e sexo aberto

Tudo está permanente prenhe de cio, em sexo emergente

Por isso o amor não é aí tão passionalmente ardente

 

Mas…

Para lá do trópico de Capricórnio e para cá do trópico de Câncer

Nas terras em que há Primavera

E se metem o Verão, o Outono e o Inverno de permeio

O amor é mais passional e impetuoso

E talvez por isso mais dissimulado e decoroso

Apenas explícito na estação própria para o namoro e o galanteio

 

Os campos revestem-se, de propósito

De tapetes verdes, maculados de flores

Perfuma-se o ambiente de aromas afrodisíacos

Os riachos murmuram cascatas de deleite

E os adolescentes correm soltos, de mãos dadas

Leves e livres na primavera da puberdade

 

E poderá mesmo acontecer, então, o primeiro beijo

E, quem sabe?

O grito agridoce da perda de virgindade

Que é clamor de prazer e dor, independência e liberdade

 

É também pela Primavera

Nas terras para cá e para lá dos trópicos

Que milhares de borboletas e mariposas

Que hibernaram durante o longo Inverno

E toda a classe de ventos e pólenes

Lançam maior quantidade de feromonas no ar

E nos leitos dos casais

Mil apelos de acasalamento dentro e fora do matrimónio

Embora os filhos apareçam por todos os meses zodiacais

Já não fruto do sonho ou da paixão

Mas obras do acaso e da ambição

 

E assim é, até que no inverno da vida

A arte de amar se envolve em lençóis mais espirituais

 

E assim rodam Terra, animais, plantas e humanos

Todos em torno do Sol

Tudo movido por uma força maior:

- O Amor

 

 

Vale de Salgueiro, 7 de Outubro de 2007

Henrique António Pedro