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segunda-feira, 8 de setembro de 2025

O ensaio da morte

(Imagem Google)

(in Introdução à Eternidade,1.ª Edição, Outubro de 2013)

 

A ser

o Além

será uma espécie de sonho do sono

pesadelo ou felicidade

sem possibilidade de se acordar

e de retornar à realidade

 

É um viver etéreo

sem nascer ou morrer

um ver sem olhos

um ouvir sem ouvidos

um prazer sem sentidos

um voar sem asas

um permanente flutuar

uma vida descolorida

sem boa ou má sorte

um gozar sem prazer

um sofrer sem doer

um ermo sem guarida

um eterno refrigério

 

A ser assim

o Além

é uma espécie de sonho sem realidade

um mundo sem rumo

sem fio de prumo

nem norte

 

E a ser assim

sonhar

quando o corpo adormece

e o espírito permanece

sem suporte

é o ensaio da morte

 

Vale de Salgueiro, domingo, 1 de Abril de 2012

Henrique António Pedro

 

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Só de olhar


(Imagem Google)


Já a Primavera se transmuda em Verão

Já o Sol se põe e muda de posição

deixando atrás de si um resplendor alaranjado

que se desvanece e me deixa extasiado

enquanto o céu escurece

e a Terra se encobre de escuridão

 

Já a Lua brilha cristalina

já se acende a estrela vespertina

depois outra após outra

marchetando o Firmamento

que por fim se ilumina de cerúleo polimento

mais abrangente

 

Nenhuma ideia brilhante

nenhuma palavra redundante

uma rima sequer

indiciam poemas na minha mente

 

Nem eu tristonho me predisponho a poetar

assim mergulhado na soledade do fim do dia

extasiado com a serenidade da contemplação

 

Sob o olhar da Lua

que em silêncio percorre o céu e me olha

como se estivesse ali postada

ela sim

para a mim me contemplar

e cobrir com o seu véu

 

Mas eu não tenho dilemas

penas para espiar

ninguém para namorar

nada de poemas

um verso que seja para escrever

apenas solidão

 

Nada à Lua posso dar

nada a Lua me oferece

à Lua nada pedi

 

A poesia acontece

por si

mesmo sem inspiração

 

Só de olhar

 

Vale de Salgueiro, 20 de Junho de 2012

Henrique António Pedro

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Nas entranhas carcomidas de um castanheiro milenar


(in Anamnesis (prosaYpoesia) 1.ª Edição: Janeiro de 2016)


Eu já fui rei

 … um dia

 

Por breves mas felizes anos

de um plácido e amplo reino

sem equívocos nem enganos

que tinha por singular palácio

um carcomido castanheiro

 

No tempo em que os montanheses

ainda usavam tamancos de amieiro

apascentavam rebanhos na serra

e desmatavam a terra safara

para semear searas de centeio

 

Enquanto dóceis ruminantes

manadas de bois e vacas

pastavam nos lameiros verdejantes

e nos úberes linhares

floriam abóboras e batatas

 

Palácio plantado num espaço breve

a norte de Vila Nova de Monforte

num contraforte isolado

votado ao sol e à neve

na suave serra da Padrela

 

Não havia então outra aldeia

tão fresca, farta e sadia

como ela

 

A árvore milenar erguia-se majestosa

à entrada do humilde povoado

com outras castaneáceas menores

a compor a sua corte silenciosa

um souto frondoso e bem copado

 

E diz-me o douto coração da memória

e da imaginação

de tão longínqua tradição

que já os próceres suevos e godos

por ali reuniam os seus povos em comícios

sob a ramagem de místicos castanheiros

ao luar dos mágicos solstícios

ou em certas manhãs de nevoeiro

para dirimir querelas entre clãs

celebrar alegres festejos rituais

consumar sagrados esponsais

ou eleger chefes guerreiros

sempre que por toda a serra

sopravam ventos de guerra

 

Foi também à sua beira

tão perto que muito ouriço

dava à luz já sobre o adro

que seria mais tarde edificado

pequeno templo votado a Santo António

oficina de religião e virtude

onde o aldeão piedoso orava

quebrantava o enguiço

e se demarcava do demónio

 

E a dois passos dali

mal espaçados

murmurejava noite e dia

a cristalina fonte comunitária

que dessedentava humanos

e animais adrede

e a água que era demais

seguia seu curso livremente

pela natureza em frente

tecendo rendilhada líquida rede

 

Até que nos tempos ditos modernos

a empestaram com pesticidas

supostamente para livrar de pragas a terra

mas que maiores chagas abriram

no ecossistema de toda a Serra

 

Era aquele o meu reino

de encanto

e os meus aposentos reais

as entranhas do tronco cavernoso

todas moldadas em castanho

onde apenas entrava quem eu queria

gente do meu tamanho

e que se aventurava

a tanto

 

Ali me refugiava sempre que a vida

cá fora me não sorria

ou recebia chamamento especial

para viajar pelo Cosmos

dentro de um castanheiro carcomido

transformado em nave espacial

 

Era eu o rei daquele plácido reino

com perfumado palácio no seio

dum carcomido castanheiro

onde aprendi a enfrentar todo o mal

a não ter medo de sonhar

a ser senhor de mim mesmo

e a ter um domínio só meu

 

 

E também aprendi

por experiência interior

nas entranhas carcomidas

de um castanheiro milenar

que a única competição justa e lícita

de um homem verdadeiro

é consigo próprio na verdade

 

E que com todos os demais

que no talento e no saber

nascem e são desiguais

apenas deverá haver

solidariedade

 

Vale de Salgueiro, 9 de Dezembro de 2007

Henrique António Pedro

 

( Imagem: Google)

 

sábado, 30 de agosto de 2025

Um copo de tinto com poesia



Sentado à mesa da insanidade

numa tasca escusa

barulhenta

que apenas gente de má nota

frequenta

 

Que importa!

 

Com uma garrafa de poesia tinta

aberta

a beberricar versos

e a bolsar poemas

falo de mim

a gesticular

embriagado de vida

sedento de amor

 e de verdade

 

Nada tenho que esquecer

nada de que me arrepender

mas muito que recordar

com saudade

 

Só mesmo a poesia me poderá ajudar

a resolver

este dilema

este abstrato desiderato

de desejar falar de mim

e do meu passado

 

Por isso o convido

a si

também

 

Venha!

Vem!

 

Senta-te aqui ao pé de mim

mas não fiques calado

fala-me também de ti

e bebe

até cairmos ambos para o lado

 

Talvez acabemos por acordar

num banco de jardim

no centro da cidade

adormecida

 

Ainda antes do sol raiar

decididos a mudar de vida

 

Embriagados desta mística alegria

chamada poesia

 

Vale de Salgueiro, sábado, 28 de Agosto de 2010

Henrique António Pedro

 

domingo, 24 de agosto de 2025

Eu e outros

 



in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)

Manhã cedo

Sentado na esplanada de um café

Fito o burburinho nascente

Daquela praça


Reparo

Uma por uma

Em cada pessoa que passa


Olho também o edifício em frente

Onde alguém assoma à janela

E digo para comigo:

Será que aquela desgrenhada

Despenteada mulher

Guarda a alma nos frasquinhos de perfume

E ideais não tenha mais

Que o alinhamento dos talheres?

 

Que me importa a mim, porém

Que alguém faça isto

Ou aquilo

Se nada disso comigo se relaciona

Nem sequer com o lugar onde estou


Observo a  velha vagarosa que passa

Suspirando ais

Retenho de fugida

A figura da estudante que passou

Fito a graça colorida das flores nos canteiros

Sentimentos passageiros

E nada mais

 

Chaves, 2 de Abril de 1961

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Tantã



Tantã

in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)

(Revista)

Gostarias de estar aqui, Lou

Para comigo veres a chuva cair impiedosa

E espantar para longe os meninos

Que todo o dia brincaram no terreiro da igreja!?

 

Como a terra farta de humidade

Assim eu estou encharcado de saudade!

 

É assim a tua terra, não é Lou?

Cheia de crianças de ébano

Que brincam livremente

Ao calor do Sol que as cria

Até que um dia

Inesperado vendaval

As espanta para longe

 

Como aterra farta de humidade

Assim eu estou encharcado de saudade

 

Tu também és um pouco filha desse Sol

Não és Lou!?

E tens no coração um Tantã

Que só eu ouço bater

 

Como a terra farta de humidade

Assim eu estou encharcado de saudade

 

                            Mueda (Cabo Delgado, Moçambique), 1972