domingo, 11 de fevereiro de 2018
Por alma de quem lá tem…
Sou do tempo
em que na minha amada Terra Quente transmontana
que Ceres
prendou com searas de pão e trigo, vinhedos e pomares
e com o maior
agro deleite que é o azeite, virgem como a Verdade
tinha força e sentido
a palavra Caridade.
Começava-se o
dia com o canto do galo ao halo do arrebol
esboroava-se o
xisto à força da charrua e da enxada
martirizavam-se
os corpos com o trabalho de sol a sol
migava-se o
caldo com pão centeio, rijo como penedo
e alagavam-se
os corações de suor e de saudade
daqueles que
ousavam vencer o medo
em procura de
melhor viver
nos caminhos desolados
da emigração.
Aos sem eira
nem beira não restava outra coisa, porém
que a mendicidade,
a generosidade alheia e a resignação
Guardo na memória
a alegria de uma infância feliz e sadia
mas ainda me dói
a tristeza e sofrimento dos pedintes andrajosos
que sem nada
terem de sua pertença
deambulavam de
aldeia em aldeia e de casa em casa
à procura de uma
brasa, de uma candeia acesa na lareira
que não lhes negasse
o alento e a certeza de sustento
para o corpo
sofrido de frio e doença.
Paravam no
primeiro degrau da escada, batiam o bordão
e suspiravam um
lamento, alijada a carga de dor e desilusão.
E quando o
rafeiro se calava e os deixava fazer ouvir a sua prece
entoavam, com
fervor e devoção, uma oração monocórdica
ladainha que
misturava pai-nossos, malgas de caldo e ave-marias
com caridade,
piedade e as almas que Deus tem, que já lá estão.
Era minha mãe
a primeira a descer a escaleira, de coração condoído
já de
almonolia na mão para atender o infeliz desafortunado
que ajoelhado soerguia
o rosto, subia a voz e o tom da súplica
capaz de comover
o coração mais empedernido:
- Uma esmolinha…por alma de quem lá tem…!
Só quando o
fio de azeite luzia em movimento para dentro da lata
que o infeliz trazia
pendurada ao pescoço, se interrompia a triste litania
para deixar
ver uma réstia de alegria e um tímido alvoroço
enquanto minha
mãe despejava todo o azeite do seu coração
e mais o que trazia
na almotolia, e respondia disfarçando a emoção:
- Deixe lá
ficar as almas no lugar delas…que bem lá estão!
Era assim a
solidariedade naquele tempo! Uma troca inocente
de parco
conforto, caldo, pão e um dedal de azeite
pela prece de
um desvalido imundo, pelas almas do outro mundo.
E também havia
solidariedade no amanho do campo
nos desmandos da
vida e nas horas de pranto
mas outra
coisa era a Caridade de minha mãe
que fazia bem
sem olhar a quem, e sem esperar nada de volta
nem sequer uma
humilde lamúria, uma oração espúria.
Reinventaram
agora, porém, a palavra solidariedade, para espanto,
a que também
chamam de cooperação! Oh, óleo sacrossanto!
Já não é o
azeite a moeda de troca. Negoceia-se agora mais alto!
Na verdade, é
o negro e viscoso petróleo, e maior é o sobressalto!
Mas…
que solidariedade
ou cooperação poderemos nós oferecer
à legião de desafortunados
que agonizam na mais abjecta miséria
sem nada terem
para troca, coisa alguma para dar de volta
tão pouco força
anímica para um mero grito de revolta?
Solidariedade?!
Com todos os machuchos, tiranos e nababos
que à míngua
deixam os seus morrer à fome, à vista de toda gente?
Porque
continuam os donos do mundo a lavar as mãos como Pilatos
agora no
viscoso petróleo, o amaldiçoado óleo dos diabos
que lhes faz
voar os jatos, envenena a Terra e promove a guerra?
Não merecerão
esses nossos irmãos infelizes também ser,
por nós amados
e que tudo façamos para os salvar?
Na certeza de
que nada nos darão de volta, porque nada têm para dar!
Porque se não
globaliza a cristã Caridade? Caridade, sim, a Caridade!
Como a paixão
de Cristo por nós, a que S. Paulo chamou “knose”!
Que não tem
nada de utópica, nem a ver com a filosófica gnose
e muito menos
com a demagógica solidariedade!
É apenas uma
questão de mero Amor!
De sentir a
dor dos outros: amigos, inimigos ou neutros!
Caridade como a
praticava minha mãe
e ainda a
praticam muitas mães, por cá!
Como a
praticou Agnes Gonxha Bojaxhiu, por todo o mundo
e como melhor
se sentiu nas ruas da vergonha de Calcutá!
A maior arma
de destruição maciça é a fome! Do corpo e da mente!
A que existe e
a que está para vir!
Está à avista
de toda a gente!
Porque se não
mobilizam os exércitos para a destruir?
in Anamnesis (Janeiro de
2016)
sábado, 10 de fevereiro de 2018
Um amor sem rosto
Não lhe conheço o rosto
nem a cor
apenas a voz
mas tenho-lhe amor
Disfarça a face
nas imagens em que se
abre
e se fecha
em segredo
E quanto mais se cala
mais a sua fala me
exaspera
mais dolorosa se torna a
espera
e mais me envolvo com miragens
sonhos súcubos em que
me enredo
Será que tem alma?
Que é de seu o corpo?
Alma tem
que lhe pressinto o
sopro
corpo não sei
que ainda o não amei
Será que lhe quero bem
e a não conheço
só porque a não mereço?
Amar assim em segredo
uma mulher sem rosto
ao sabor da fantasia
não dá gosto só
desgosto
Mete medo
Vale de Salgueiro, quinta-feira,
22 de Outubro de 2009
Henrique António Pedro
terça-feira, 6 de fevereiro de 2018
A minha receita de arroz doce
Refastelo-me
no sofá
da sala
de estar interior
do meu
ser ocioso
à espera
que me chamem
para
jantar
Não tarda
adormeço
bebendo
uma chávena de chá
O meu
acordar será feliz
com os
vapores do arroz doce
delicioso
acabadinho
de sair da panela
a
acariciarem-me o nariz
odorado
de rosmaninho
e
polvilhado de canela
Sinto-me uma
criança
um anjo pequenino
empoado
de poesia
e pozinhos
de perlim pim pim
a dançar o
cha-cha-cha
ao som do
cristalino estralejar
de
estrelinhas de fantasia
Falta
acrescentar
para
terminar este doce desenlace
que esta
receita de arroz doce
também
mete casquinha de limão
e raspas
do coração
Tudo
quanto baste
q.b.
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018
Parti, de mansinho, para não a acordar
Parti
de mansinho
para não a acordar
porque percebi que sonhava comigo
Sorri
aconcheguei-lhe a roupa
beijei-a na testa
e escrevi este poema balsâmico
na sua agenda aberta
sobre a mesinha de cabeceira
mesmo à beira do despertador
Para que quando o alarme tocar
e a fizer acordar
sinta o meu amor
e não entre em pânico
por não me encontrar deitado a seu lado
Também
para lhe dizer
que por nenhuma razão
a quero perder
e que estará sempre presente no meu coração
E que enquanto eu estiver ausente
por obrigação
andarei sempre a penar de paixão
deserto de desejos dela
do seu carinho
e dos seus beijos
Por isso parti
assim devagarinho
sem a acordar
porque percebi
que sonhava comigo
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018
Guardo o cérebro num frasco de formol
Angustiado
tremendo
de medo
extirpo o
cérebro com as minhas próprias mãos
para o
expor ao sol e ao vento
e
guardá-lo a meu lado no frasco de formol
colocado no
penedo que me serve de assento
Com a mão
direita espremo a memória
com a
esquerda aperto a razão
que balanço
com angústia incontida
tentando
determinar
qual
parte da consciência pesa mais
para a
alma assim dissolvida
A memória
apenas regista o instante em que a perdi
Será que
algum dia existi?
A razão
me diz que sem memória em que se apoiar
não poderá
escrever história
fazer
ciência
e projectar
o devir
Será que algum
dia voltarei a existir?
Da
memória e da razão de mim separados
são os meus
sentimentos levados pelas águas do rio
para o
mar da loucura colectiva
onde enlouquecem
Enterradas
nas areias
ficam
mesmo
assim
ideias
furtivas
que não
aquecem nem arrefecem
Nada
sinto
nem de bem
nem de mal
não choro
não rio
nem sei
onde moro
se existo
ou
existirei
Apenas
sei que sou consciência incorpórea
sem
história
nem
memória
segunda-feira, 29 de janeiro de 2018
Ser poeta, a meu ver
Ser poeta,
a meu ver
não é ser
maior
ou menor
que
ninguém
nem ter
poder sobre alguém
Ser poeta
é sentir
as agruras da vida
mesmo sem
as viver
É amar
é sofrer
tudo
fazer com poesia
e cantar
com alegria
mesmo se se
canta a chorar
Ser poeta
é morar no
Universo
ser mais
ágil que o vento
e mais
forte que o tempo
Ser poeta
é ser dilema
verso de
amor
anverso
de dor
disperso
de paixão
Ser poeta
é ser fogo
ser luz
ser poema
Ser poeta
é não ter outra condição
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