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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Mergulho fundo por mim a dentro





Nunca pretendi mudar
o mundo

Ouso ir mais além
ao mais fundo de mim

distender a vida
demover a morte
ainda assim

Vencer fantasmas do passado
quimeras do futuro
sobreviver às tempestades do cérebro
às catástrofes do coração
libertar-me da guerra e dos corifeus
da Terra

Acertar o meu tempo
pelo tempo da eternidade
e mergulhar

Lançar um laço de razão
um grito de angústia
a um ponto fixo no infinito
e com um pouco de sorte
enlaçar-me a Deus

Ainda que não saiba como nem quando
aonde irei parar
e em que tempo
do destino

Não há outro caminho
senão continuar
por mim a dentro



quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Porque sou o centro do Universo?



Já ao cair da tarde
levantou-se uma brisa suave
embalando a Natureza
e convidando plantas e animais
a adormecer

Depois ergueu-se no horizonte
a Lua cheia
resplandecente e grávida
em perseguição do Sol
enquanto este se escondia
sem se deixar apanhar
por não querer assumir
a paternidade

Então a noite caiu lentamente
a Lua abriu o regaço
e o lençol diáfano do Firmamento
polvilhou-se de estrelas cintilantes

Tudo isto eu vivo aqui na Terra
eternamente à espera
de adormecer
para poder um dia acordar
e poder então entender

porque sou o centro do Universo

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Coisas de ontem fora do tempo



Há locais

grandes

pequenos

de somenos

objectos

tempos

templos

simples ventos ou pensamentos

rostos

instantes

gritos

melodias

cheiros

sabores amargos

e doces

objectos insignificantes

risos e choros

diabruras e maldades

passos encobertos

e gestos rasgados de caridade

ou coragem

afagados pela aragem da lembrança

que passaram a entidades reais

mesmo sem peso nem medida

cinzeladas na área de imagens do cérebro

com tonalidades de afecto

 

São coisas de dentro de ontem fora do tempo

e da memória próxima

de dentro de mim

do meu passado

encontradas no mundo exterior

e a quem a proximidade da saudade

conferiu existência gravada naquilo sou

e já não fui ou serei

coisas de dentro de ontem fora do tempo

de entre o Alfa e o Ómega

dentro da moral e dos afectos

do Bem e do Mal

 

 

Como aquele copo de vinagre

que bebi

quando criança

e mal sabia ainda que coisa era vinagre ou vinho

que encontrei abandonado na cozinha

de minha avó Alzira

e me soube a fel

mais amargo que a esponja com que martirizaram Cristo

agonizante na cruz

 

Foi um ápice de martírio o meu

um esgar de sorriso e dor

que por certo me lançou na vida dos sabores

nos reflexos por aí adiante

e me põe agora a olhar para trás

e quiçá poderá mesmo ser o garante da minha salvação

 

Ah!

E aquela imagem que retenho

de minha mãe a descer a escaleira da caridade

de almotolia na mão

para socorrer os mendigos andrajosos

que ousavam subir a escada da súplica

e no primeiro degrau da miséria

de lata pendurada ao pescoço

proferiam pai-nossos angustiados por alma de quem lá tem

pela santa que aí vinha

e era minha mãe que lá vinha de almotolia em riste

para que o seu triste irmão digno de dó

pudesse ter azeite para cozinhar a sua própria felicidade

e olear os pés gretados pelo pó do caminho

e reconfortar o estômago com batatas cozidas

em paga das orações doridas de verdade

 

E o lobo!

Recortado contra o luar de Janeiro

esfomeado

que saltava do colmo para o chão

e do chão para o colmo que cobria a manhosa cabana

armada na Casa do Seixo para guardar o meloal

capaz de me devorar o corpo e a alma

votado eu a defender o corpo

mais que a minha alma tão calma

de escopeta em riste

tão calma que me pus a pensar

se o mato serei eu o assassino

e será o lobo inimputável menino

 

E a indelével lembrança de cigano a fornicar cigana

na palha

de madrugada

quando eu criança

vencia a geada para ir mugir a vaca

e a desavergonhada sem se importar com nada

abria as pernas e o cigano a rugir

eu ficava parado

pasmado

sem ensejo de fugir

a olhar e a despertar

de desejo

e ficava a compreender então

a razão pela qual apenas era lícito naquele tempo

possuir mulheres virgens

embora não importasse quantas

e também porque razão as santas

o são!

 

E o cheiro ácido de África

que se entranhava nos corpos

e exalava suores

com sabores de sexo, de guerra e de espera de paz!

 

Desde aqui…

parto deste meu canto

reduto de memória de muitos amores

desejos e sabores

aromas de alfazema

e de azeitona fermentada

armazenada na garagem com portas de castanho

em que meu pai guardava o velho Austin

e que fora outrora moagem

tocada pela religiosidade e arte do velho moleiro Urbano

 

E calo as imagens de tantos amores

ázimos porque não tinham o fermento

do verdadeiro Amor

ainda que o amor seja ele qual for nunca deixa dor

 

Ante o destino frustrado

entristeço de tristeza amarga

calado

macambúzio

sorumbático

armado em vítima

esperando que alguém se apiede de mim

 

Talvez eu próprio

tenha compaixão de mim mesmo

e entre em contrição

 

Para concluir que Deus deverá ter corpo

olhos e ouvidos

pernas e braços

coração e cérebro

mas não é homem como eu

e que Cristo Jesus

apenas é Deus

a contraluz porque padeceu na Cruz

 

Mas se Deus tem corpo com olhos

ouvidos

pernas e braços

coração e cérebro como eu

então também eu poderei ser Deus

como Jesus a contraluz

 

Vale de Salgueiro, 12 de Maio de 2005

Henrique António Pedro

in Angústia, Razão e Nada (Editora Temas Originais – 2009)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Palavras danadas de nadas


Palavras danadas
de nadas
sem sentido

Poemas proscritos
ocos
vazios de tudo
plenos de nada
que nada dizem
e dizem apenas
coisas nenhuma

Ilusões

Bolhas de espuma
estouros de pipocas
ar encerrado em balões
que estouram por si
ou se acaso os toca
s simples ponta de alfinete

Palavras obscenas
cortantes como canivete
grunhidos
gemidos
sorrisos de mentes pequenas
que fogem da mão
e apunhalam o coração

Pão ganho sem suor
suor que não produz pão

Sementes estéreis
levada pelo vento
que germinam em lugar incerto
ou caiem no caminho
longe ou perto
e são mato daninho

Obras sem fé
bairros clandestinos
sem água
sem luz
fé fictícia sem alma nem tino

Sémen ejaculado sem amor
fontes de dor
Filhos nascidos por acaso
criados desamparados
ao deus dará

Palavras de nadas
danadas
sem verdade
ou utilidade

Tentação niilista
terrorismo
discurso político

Aonde
isto
irá
parar?


Terá um dia fim?

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Cigana parida na palha espalhada no chão do curral





Cigana parida 
na palha espalhada 
no chão do curral 
mortalha do porco 
e cama do cão.

Poalha de humana caridade 
de meu tio Daniel: 
-Ajuda aqui Inocência 
traz o caçoulo da água benta 
e uma toalha 
que vamos batizá-lo cristão

-Ai Jesus que rapagão 
-Que nome lhe vamos por?


E a cigana Santa ri de alegria 
e um tudo-nada de dor 
- Daniel “comósenhor”! 
Fora mulher e seria Inocência


-Então será Daniel como eu! 
E que bem-dito seja!

E Daniel Comoeu 
cigano livre como o vento 
que vindo de Espanha 
sopra por toda a Montanha 
como eu afilhado 
de minha madrinha Inocência 
e por meu tio Daniel bento 
voa hoje Europa fora 
agora com passaporte 
de crédito e sorte 
derrubando fronteiras uma a uma 
sem raias de ignomínia 
a salto da fortuna.

Rico como porco defunto 
amortalhado na mesma palha 
espalhada no chão do curral 
quando o frio e a geada 
curam o presunto 
curtem coiros e carnes 
e apuram as almas 
deslavadas de mal


In  Minha Pátria Montanha (Ver o Verso Edições – Dezembro 2005). 


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Outras formas de dizer “amo-te”



Há muitas outras formas de declarar o nosso amor a alguém
sem dizer “amo-te”
ou fazer uso de qualquer outros modos e tempos do verbo amar

Poderemos mesmo dizê-lo sem proferir a palavra “amor”
e ao arrepio das regras gramaticais
ainda mais
e melhor

Se assim não for
como poderão os surdos-mudos
dizer “amo-te”
às suas apaixonadas?

Ou os amantes de língua chinesa
declarar o seu amor
às suas namoradas de outras línguas
que não entendam o mandarim
nem conheçam um só carácter chinês?

Há mesmo
muitas outras formas de dizer “amo-te”
sem ter que escrever
abraçar
ou beijar

Poderemos dizê-lo com o olhar
oferecendo uma flor
dedicando um poema
ou simplesmente ficando em silêncio ao lado de quem
a quem
queremos dizer
“amo-te”

De resto a palavra “amo-te”
já está tão gasta pelo uso
que perdeu a originalidade
quiçá
a autenticidade

Poderá ser até um abuso
aleivosia
despudor

como vês
muitas outras formas de dizer “amo-te”
sem do verbo amar fazer uso

Como continuar a escrever poesia


Apenas por amor

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Porque não trocas de mulher?


(Epigrama)

A um amigo do peito

com faceta de poeta

e o seu quê de machista

que a legítima benquista

se diverte a judiar

pergunto eu a preceito

e na hora certa:

 

«- Porque não trocas de mulher?!

Tens muito por onde escolher

e uma poetisa de génio

vinha-te mesmo a calhar»

 

Responde-me ele de pronto

nada tonto

e sem se desmanchar:

 

«- Porque não encontro outra igual

e mal por mal

melhor será com esta ficar.»

 

«Depois já não tenho paciência

nem idade

para outra mulher ensinar

e esta já domina a ciência

de bem me aturar»

 

«E, para quê mentir?

Desta iria sentir

uma infinita saudade»

 

Vale de Salgueiro, quarta-feira, 28 de Julho de 2010

Henrique António Pedro


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Poeta aprendiz de como ser feliz



Sopro a sopro sopra o vento

chama a chama arde a fogueira

raio a raio estala o trovão

 

Monte a monte se ergue a montanha

grito a grito se espalha a revolução

sorriso a sorriso se acende a paixão

 

Grão a grão se semeia a seara

a galinha enche o papo

sara a ferida o esparadrapo

 

Dia a dia se ganha a vida

se esconjura a má sorte

e se adia a morte

 

Verso a verso se escreve o poema

nota a nota se compõe a canção

dúvida a dúvida se lança o dilema

 

O fogo como se apaga?

Como se amaina o trovão?

E como se ceifa a seara?

 

A verdade como se alcança?

Como se ganha a revolução?

E como se acalma a paixão?

 

O poema como se declama?

E a morte como se mata?

Como se vai ao além?

 

Tudo isto e mais a amar

ando eu a aprender

também

 

Poeta

mero aprendiz

de como ser feliz

 

Alguém me diz?

 

Vale de Salgueiro, terça-feira, 16 de Março de 2010

Henrique António Pedro

 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Se acaso me ler



Se acaso me ler
tente me entender

Sou dum mundo de sonho
onde não há gestos
nem palavras
escritas ou faladas
para comunicar

Falo com o coração
por ideias
trago na mão uma lira
que ora canta
ora suspira

Sem espaço para mentira
ou  traição
nem ódio para expressar
vivo em permanente alegria
 a meu contento

A minha poesia é fantasia
afecto
pensamento

Sou poeta

homem liberto

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Poema abandonado numa mesa de café



Uma flor


Uma rosa perfumada

que esmaeceu

abandonada numa mesa de café

depois que se consumou a longa espera

e a amada do poeta

não compareceu

 

Um poema

abandonado numa mesa de café

por um poeta ferido

traído no seu amor

foi o que foi

é o que é

deu no que deu

 

Reticências

uma vírgula

um ponto final

gravados numa folha de papel

em branco

numa mesa de café

sobre a qual repousa uma flor

esmaecida

de um poeta esquecido

traído no seu amor


É um poema de pranto

escrito numa folha de papel

em branco

 

Vale de Salgueiro, sábado, 18 de Maio de 2013

Henrique António Pedro