Inadvertidamente
Dei comigo a olhar-me nu
Ao espelho
De corpo inteiro
Limpo
Depois do banho
Não foi um reflexo narcisista
Antes uma reflexão demente
Do espírito que tento ver reflectido
Nalguma superfície espelhada
Que a reflita
O corpo ali estava
Visto por fora
Da perspectiva em que se mostra
Espelhado no sistema
espaço-tempo
Na óptica do dia-a-dia
Traduzido em anos e volumetria
No ventre ligeiramente obeso
Nas rugas pronunciadas
Na calvície acentuada
Nos testículos agora mais túrgidos
e descaídos
No pénis mais nédio e flácido
Evidentes sinais de que a
virilidade
Também se vai adoçando
As vitórias e as derrotas
As angústias e s paixões
As certezas e as desilusões
Essas ali estavam
Espelhadas na memória
Que se vai esmorecendo
Á medida que deixa de doer
Ou de entusiasmar
Para se converter numa mera lembrança
Até se apagar
Vejo-me olhos nos olhos
E é aí que me fascino
Por aí entro na mente
Que me leva à alma
Porque melhor me fixo em mim
Mas à alma só a alma vê
Tem reflexos no corpo e na vida
No Amor traduzido em gestos
Mas apenas ela se vê a si mesma
Para isso a alma existe
Coexiste
Resiste
E persiste
Quando o corpo desiste
E a mente se esvai
Por isso a alma só não
existiria
Nem teria qualquer sentido
Se a pudéssemos ver reflectida
no espelho
Como a qualquer outro órgão
É assim que a mim assim me vejo
Nu
Ao espelho
E que importância teria o Cosmos
Sem mim?
Vale de Salgueiro, 31 de Julho
de 2008
Henrique António Pedro
(in Angústia, Razão e
Nada (Editora Temas Originais-2009))
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