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sábado, 30 de agosto de 2025

Um copo de tinto com poesia



Sentado à mesa da insanidade

numa tasca escusa

barulhenta

que apenas gente de má nota

frequenta

 

Que importa!

 

Com uma garrafa de poesia tinta

aberta

a beberricar versos

e a bolsar poemas

falo de mim

a gesticular

embriagado de vida

sedento de amor

 e de verdade

 

Nada tenho que esquecer

nada de que me arrepender

mas muito que recordar

com saudade

 

Só mesmo a poesia me poderá ajudar

a resolver

este dilema

este abstrato desiderato

de desejar falar de mim

e do meu passado

 

Por isso o convido

a si

também

 

Venha!

Vem!

 

Senta-te aqui ao pé de mim

mas não fiques calado

fala-me também de ti

e bebe

até cairmos ambos para o lado

 

Talvez acabemos por acordar

num banco de jardim

no centro da cidade

adormecida

 

Ainda antes do sol raiar

decididos a mudar de vida

 

Embriagados desta mística alegria

chamada poesia

 

Vale de Salgueiro, sábado, 28 de Agosto de 2010

Henrique António Pedro

 

domingo, 24 de agosto de 2025

Eu e outros

 



in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)

Manhã cedo

Sentado na esplanada de um café

Fito o burburinho nascente

Daquela praça


Reparo

Uma por uma

Em cada pessoa que passa


Olho também o edifício em frente

Onde alguém assoma à janela

E digo para comigo:

Será que aquela desgrenhada

Despenteada mulher

Guarda a alma nos frasquinhos de perfume

E ideais não tenha mais

Que o alinhamento dos talheres?

 

Que me importa a mim, porém

Que alguém faça isto

Ou aquilo

Se nada disso comigo se relaciona

Nem sequer com o lugar onde estou


Observo a  velha vagarosa que passa

Suspirando ais

Retenho de fugida

A figura da estudante que passou

Fito a graça colorida das flores nos canteiros

Sentimentos passageiros

E nada mais

 

Chaves, 2 de Abril de 1961

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Tantã



Tantã

in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)

(Revista)

Gostarias de estar aqui, Lou

Para comigo veres a chuva cair impiedosa

E espantar para longe os meninos

Que todo o dia brincaram no terreiro da igreja!?

 

Como a terra farta de humidade

Assim eu estou encharcado de saudade!

 

É assim a tua terra, não é Lou?

Cheia de crianças de ébano

Que brincam livremente

Ao calor do Sol que as cria

Até que um dia

Inesperado vendaval

As espanta para longe

 

Como aterra farta de humidade

Assim eu estou encharcado de saudade

 

Tu também és um pouco filha desse Sol

Não és Lou!?

E tens no coração um Tantã

Que só eu ouço bater

 

Como a terra farta de humidade

Assim eu estou encharcado de saudade

 

                            Mueda (Cabo Delgado, Moçambique), 1972

 

Ao amor e à liberdade

 


Ao amor e à liberdade

in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)

(Revisto)

As árvores murmuram

Quando cruzam s raízes de sob a terra

 

Os homens conspiram

Quando apertam as mãos

 

Em ambientes

Abertos

É possível a vida

E a morte microbiana

 

Em atmosferas limitadas sobrevem a morte

E a vida anaeróbia

 

As aves

Como as flores

Só sabem fazer amor

 

Eu murmuro

Eu conspiro

Vivo em todos as ares

E amo mais que as aves

 

Mueda, (Cabo Delgado, Norte de Moçambique), 4 de Janeiro de 1972

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

...A monção não traz a Paz!




                                                     ...A monção não traz a Paz!

                           In Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)

                                                               (Revisto)

 

Hoje não fui ver o pôr-do-sol

Não se ausentou a guerra de meus olhos

Nem senti que no céu lilás

Surge sempre um novo dia

 

Caminhei

Mais agitado que o vento

Que raivento varre a terra

Como se sua vontade de paz

E de amar

Fosse maior que a minha

 

...minha vontade amar é um ar assim raivento!

 

Hoje

Não fui ver o pôr-do-sol

Não se ausentou a guerra de meus olhos

Nem senti que no céu lilás

Surge sempre um novo dia

Vi que a monção não traz a Paz

 

...a monção não traz a Paz!

 

Caminhei

Mais agitado que o vento

Que raivento varre a terra

Minha vontade de paz

E de amar

É um ar assim raivento

 

...a monção não traz a Paz!

...a monção não traz a Paz!

...a monção não traz a Paz!

 

 

Nangade (Cabo Delgado-Moçambique), 28 de Outubro de 1972

Henrique António Pedro

 

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Em que órgão do meu corpo reside a minha alma?



in “Angústia, Razão e Nada “ (Editora Temas Originais-Setembro 2009)

 

Em que órgão do meu corpo

Reside a minha alma?

 

Qual náufrago exausto que luta por alcançar a praia

 E não se afogar

 

Qual ébrio bamboleante

Que procura regressar

Sóbrio

Ao lar

 

Ante a vida que muito me angustia

E mais me humana

Sempre procuro saber

E me interrogo

Tentando perceber quem sou

E onde moro eu, afinal

 

Sempre concluo

Que não moro em lado nenhum

Que não sou nada, nem ninguém

Nem resido em órgão algum

 

Penso

Mas não moro no cérebro

Respiro

Mas não moro nos pulmões

Amo

 Mas não moro no coração

Irrito-me, mas não moro na vesícula biliar

Regurgito de desejo, mas não resido nos testículos

 

Penso, sofro, desejo, como e estimo

Mas não sou olhos

Nem ouvidos

Nem glândula timo

Nem estômago

Nem membro social

 

Ora me sinto bem

Ora me sinto mal

Mas não moro

Nem me demoro

Em lado algum

Nem aqui

Nem além

 

Os meus órgãos são apenas portas

E janelas

De mim para o meu corpo

E do meu corpo para o mundo

Mas eu não moro em nenhum deles

Apenas neles vivo temporariamente

Por divino acaso e contratempo

 

Sou livre de espaço e de tempo

Não tenho Sul nem Norte

E só porque sou eterno

Tenho consciência da morte

 

 

Vale de Salgueiro, 27 de Abril de 2008

Henrique António Pedro

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Filosofando a caminho da morte


in “Angústia, Razão e Nada “ (Editora Temas Originais-Setembro 2009)

Caminho para a morte desde que nasci
Ao som da sinfonia do dia-a-dia
Morro sempre que alguém morre
Renasço quando alguém nasce

Sinal de que não morri

Ainda

Sou um gladiador no circo do Universo
Lançado às feras das emoções
Ganha sentido este verso
Descolorido
Tem o tom indevido das ilusões

Desfalecem-me olhos e ouvidos
Avivam-se desejos e afectos
Melhor ouço o Cosmos e o Além
Prenuncio de que continuo a viver

E ainda bem

Ontem mesmo enterrei um amigo
Um irmão
Sem compreender a razão

Porque morreu
Primeiro que eu

Desta vez foi ele que ganhou
Que chegou primeiro à meta
Será que tinha a alma mais aberta?!

Amanhã irei ao baptizado
Duma criança que não sabe ainda
Que nasceu e tomou o lugar

Dalgum finado desavindo
Que partiu e não se despediu

Porque me não liberto eu

Dos desejos e afectos
Das vaidades e ambições
Das malhas das religiões
Da vã glória da História?

Se é certo que caminho para a morte
E que ninguém tem melhor sorte

Que viver a vida enquanto puder


Que outro César me poderá poupar
Senão o Amor
Que me condena a amar…
E a morrer
…devagar!?

Vale de Salgueiro, 24 de Março de 2008
Henrique António Pedro

 

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Eu contra eu



Há momentos em que por momento

me fascinam o silêncio e a solidão

 

Não se trata de ficar só, abandonado

fugido da aspereza da vida

alheado dos sons e das cores da Natureza

 

Falo do isolamento interior

do silêncio do mundo

quando ecos e cambiantes do Cosmos

anódinos

melhor se espelham e ressoam dentro de mim

 

Sinto-me

então

sim, só

em confronto directo comigo mesmo

 

Eu contra eu

 

Só eu contra mim

 

Com os olhos e os ouvidos

com todos os sentidos

e sentimentos

voltados para dentro de mim

 

Falo então comigo assim

com o meu umbigo

e o mais que consigo

é não compreender nada

nada ver e ouvir para lá do meu “eu”

 

Mas é mais forte ainda assim

a minha percepção de mim

daquilo que sou

ainda que não saiba o que faço

nem tão pouco onde estou

 

E melhor assim percebo que existo

qual das ilusões eu não sou

 

E acredito

que bastará uma instantânea eternidade

de silêncio e solidão

bem fora deste inferno

para perceber o Eterno

 

Vale de Salgueiro, 2 de Maio 2008

Henrique António Pedro

 

Sherezade


In Mulheres de amor inventadas (1.ª Edição, Outubro de 2013)

Fito o Sol de frente

na alvorada

no ocaso

e pelo meio dia

correndo o risco de cegar

para tentar perceber

a fantasia

do seu olhar

 

Como posso estar certo de que me sorri

se o véu de seda celeste

que lhe tapa o rosto

também lhe cobre o corpo

e o seu sorriso

não tem som?

 

Leio o tom do seu pensamento

no esvoaçar do véu

que segura na mão

e esvoaça ao vento

a dançar

sem mostrar o coração

 

Ouço-a cantar

com voz de encantar

não percebo o que me diz

 

Continuo à espera

desperto

que se dispa para mim

 

Em pleno deserto!

 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 13 de Agosto de 2009

Henrique António Pedro


 

domingo, 3 de agosto de 2025

Uma piedosa mentira de amor



Disse-lhe que a amava
ela acreditou


Alegrou-me a alegria
que o seu espírito extravasou
em beijos
abraços

e gritos

Muito mais do que eu esperava

desse amor que a espaços

eu vinha deitando a perder

Ainda sinto remorsos

confesso

contrito
de não lhe ter dito a verdade
por pensar

que mais a faria sofrer a ela

do que a mim penar

A verdade é que amo aquela mulher
não como ela me ama a mim
mas amo-a de verdade

ainda assim

Fico à espera que seja ela a descobrir

docemente e sem penar

que não a amo como ela quer

por ser diferente o meu querer

Esta a virtude que a mim me ilude

se é que há virtude em mentir
ainda que por amor sentir


Esta a razão de ser
desta amorosa
piedosa
mentira


Perdoa-me! Amor!



Vale de Salgueiro, sábado, 12 de Junho de 2010

Henrique António Pedro