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quarta-feira, 8 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XVIII – Sempre que anoitece no deserto




Vivo dia por dia
Crente de que a vida me não engana
De que amanhã estarei vivo
E poderei continuar a sonhar
Contigo

Porém
Sempre deixo algo para fazer amanhã
E depois de amanhã
E na próxima semana
E no ano que vem

Algo que me prolongue o sonho
Que me faça pensar
E acreditar
Que assim viverei mais tempo
Quiçá para sempre

Nem mesmo a saudade
Que me vem de verdade
Sempre que anoitece
E me entristece
A sofrerei toda já
Hoje

Deixarei a maior parte
Para a sofrermos depois
Os dois
Em paz
Em silencioso lamento

Tenho assim a certeza
De que não te esquecerei

E que o meu amor merece a tua beleza
E não é tão fugaz
Como o vento


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 11 de Agosto de 1955

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XVII – Doí-me a alma e o coração





Estou deserto de regressar
Mas não deserto

Desperto
Continuo a sonhar

De novo me ausento
Para o deserto profundo
O único lugar do mundo
Onde somente sopra
O vento

Aqui melhor eu sinto
O ciclone da saudade
Dentro de mim a uivar

É a voz de Huri
Que não cessa de me chamar

É forçoso partir
Ir
E tornar

Se tapo os ouvidos para não a ouvir a chamar
Abranda o uivo do vento
Mas o seu lamento 
Mais forte me rasga por dentro

Nada me tira daqui
Deste mar seco de soledade
Deserto de ansiedade
Dunas de solidão
Dói-me a alma e o coração

Será que só a morte
Me libertaria desta triste sorte?

Não!
Da vida a morte é termo
Não é critério

Só o amor e a fé em Deus
Transforma este inferno
Em refrigério


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 9 de Agosto de 1955


domingo, 5 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XVI- Sahara



Não é Terra
É Marte, é Vénus, é lua

É areia
Despida
Nua
Sem húmus
Nem água
Nem ideia

Sem vida nem morte
O deserto mata
E seca
Só para sobreviver

Sem rumo ou norte
Sem além
É deserto é aragem
Miragem
É duna 
Ciclone
Convulsão
Local de passagem
Terra de ninguém
Aperto de coração

Sem vida nem morte
Sem rumo nem norte
O deserto incerto
É oásis
Quimera de éden


Tempo parado
A acontecer



Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 8 de Agosto de 1955


sexta-feira, 3 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XV – A viver e a morrer no deserto




O local ideal para um homem morrer
Desacompanhado
É o deserto

Na convicção de que a única fera que lhe devora as entranhas putrefactas
É o sol

E que os ossos calcinados
Se desvanecerão em pó
E se perderão na areia
Sem irem parar ao monturo de um qualquer cemitério
Da civilização
Destinados a serem reciclados 
Em qualquer produto industrial

Enquanto a própria alma se evolará
Na alvorada seguinte
Sem ritos litúrgicos
Como a mais pura exalação da vida

Donde se infere também
Que o local ideal para o homem viver
De verdade
É no espaço aberto
Do deserto
Onde melhor resiste às tentações
A alma se alimenta de fome, sede e orações
E o espírito mais claramente divisa o além
E se alcança a Eternidade

Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 6 de Agosto de 1955


quinta-feira, 2 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XIV – Semeando poesia na areia



No ar anda o ar da saudade
Angustiada
Condensada em grãos de ansiedade
Que me escorrega das mãos
Como areia
                  Ampulheta sem tempo
Que o vento molda 
Em dunas de sofrimento

Ideia que semeia poesia
Onde nada subsiste

Aqui apenas existe
Vento
Areia
E esta alegria
Breve e triste

Procuro flores escondidas
Transfiguradas em pólenes
Em esporos e esporângios
Que misturadas com as areias do deserto
Esperam há milénios
Por uma gota de suor e de esperma
Para germinar

E florir como anjos
Na frescura dos oásis
Se dessedentar de amor
E amar

Aqui a noite é de prata
Tem o toque da Lua
E do luar
O encanto da lubricidade

Já o Sol é demais
É de oiro
E mata


Daniel Monforte, Legião Estrangeira
Algures no Deserto do Sahara
 5 de Agosto de 1955




quarta-feira, 1 de agosto de 2018

UM LIVRO ABERTO NO DESERTO XIII - Uma mão cheia de areia e outra de deserto a desertar





Do chão
Apanho um punhado de areia
Para de mão erguida
A abrir de seguida
E deixar que as areias
Uma a uma
Retornem à duna

Assim me abstraio da minha ansiedade

Até que resta só
 O pó da saudade no ar
E dessa
Não me consigo libertar
                  Porque nenhum vento passa
Por perto
Que para longe a faça soprar

Do chão
Apanho outro punhado de areia
E lanço-a no ar
Do deserto
Onde se não divisa nenhum caminho

É por aí que segue o meu destino

À noite
Lanço outra mão cheia de areia
Ao vento
No espaço aberto do deserto
Para saber
De que lado está o vento
A soprar

Uma mão cheia de areia
Outra de deserto
A desertar

Vejo a Estrela do Norte no céu a fulgir
Ouço o Cosmos a tilintar
É minha amada que me está a sorrir
São horas de em amor 
Ao luar
Me banhar

Mais a norte
Ouve-se a morte a ribombar 

Daniel Monforte, Legião Estrangeira
(Algures no Deserto do Sahara)
  iv-viii-mmix