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segunda-feira, 21 de maio de 2018

Espaço-Tempo-Amor-Além




Paro para pensar
anulo o movimento
anula-se o tempo
e alarga-se o meu
Eu

Rumo à Eternidade
por dentro e por fora de mim
em busca do Absoluto

A partir daqui
deste meu reduto de espaço-tempo-amor-além

Daqui
deste meu chão

Meu sítio
meu canto 
meu mundo
meu berço 
meu lar
meu ninho
minha terra
minha pátria
meu céu e meu mar
minha ampla planura
minha serra a cerrar o horizonte
minha névoa e luar
meu covil e castelo
meu casebre e palácio
meu sol de abrasar
minha lura de lebre
meu espaço com fim
minha janela aberta à Eternidade

Porta de sonho e esperança
escancarada no seio do Cosmos
na angústia e na saudade 
vidraça do futuro e da lembrança 
que tento partir à pedrada
qual criança

Daqui
deste meu sítio
onde dependuro pote e capote

Me sento e amanso
durmo e descanso
canto e rio
grito e cicio

Por entre ranger de estrelas e ladrar de cães
choro de crianças
aflições de mães
trinados de aves
toque de finados
e o silêncio
indiferente
de Deus
com que me aflijo e angustio

Daqui
deste meu chão
por este meu reduto de espaço-tempo-amor-além 
impregno o Cosmos de meus odores
e humores
minhas lágrimas e meu mijo
meu cuspo, suor e sémen
uivos de dor
canções de amor e de embalar
sussurros de presença
gritos de ausência
tédio e saudade
perfume de tília
colorido de glicínia e buganvília
ensopado de vida e angústia
por dentro e por fora do Alfa e do Ómega
de onde o espírito advém

Daqui
deste meu mundo
moldado por minhas ideias
e mãos
sonhos e sofrimentos
angústias e tormentos
assobiados por mim e pelos ventos 
que por aqui perpassam
pelas asas dos pássaros que esvoaçam
por mil raízes que minam o solo em procura de húmus
e consolo

Não para sobreviver
mas para dar frutos e alegria
porque vida e guarida
a têm garantida

Aqui e agora
por este meu reduto de espaço-tempo-amor-além
liberto da cobiça e da obrigação de ir à missa
e dizer ámen
compreendo também
a filosofia de meu avô João:
«A Salvação
uma libra gasta
outra na mão»

E espero
aqui
um dia
vir a morrer
crente de que a morte 
é um passo da vida vivida
não um golpe de má sorte

É um adeus definitivo
não o definitivo adeus

Paro para pensar
anulo o movimento
anula-se o tempo
e alarga-se o meu
Eu

Rumo à Eternidade
por dentro e por fora de mim
em busca do Absoluto

A partir daqui
deste meu reduto de espaço-tempo-amor-além


in Angústia, Razão e Nada (1.ª Edição 2007)


domingo, 20 de maio de 2018

Encantamento d’alma



Encantamento d’alma

Este encantamento d’alma
de caminhar ao luar
noite adentro
de me firmar
no Firmamento

De ouvir o espírito segredar-me coisas
que o cérebro ouve
mas não entende
nem é capaz de codificar em palavras
explícitas

Coisas que não cabem neste mundo
nem mesmo no universo perceptível

Este prazer corporal
de exercitar e relaxar os músculos
caminhando
enquanto o cérebro rumina
em surdina
limitado à lógica aristotélica

Enquanto o espírito voga iluminado de alegria
pelo Cosmos sem fim
saltitando de universo
em universo

Este encantamento d’alma
é a práxis poética
pura


segunda-feira, 14 de maio de 2018

Urinando em formigueiros e tocas de grilos nos lameiros




É uma minha boa lembrança de criança malvada

mijar em formigueiros

e tocas de grilos

nos lameiros

 

Não terei sido eu o primeiro

a inventar tamanha maldade

 

Fazia até uma tremenda ginástica

para acertar,  de pé, nas tocas dos grilos

e nos carreiros  dos formigueiros

por falta de prática

 

Ainda era menino de calção

mas só desistia quando sentia

que uma formiga me picava os testículos

e uma multidão de insectos desafectos

me perseguia no carreiro

 

Então

qual poeta proscrito

aflito

proferia a palavra mais obscena do presente poema:

- Foda-se!

 e fugia

 

Foi assim que aprendi

que há uma infinidade de espaço no Universo

onde poderei urinar à vontade

um simples verso que seja

sem importunar

uma formiga por demais pequenina

que mal se veja

 

 

Vale de Salgueiro, domingo, 5 de Abril de 2009

Henrique António Pedro


sábado, 12 de maio de 2018

Nostalgia Transmontana




Caminhei descalço no restolho afiado
Resto triste dos fugidios trigais 
E nos olivais sombrios
Procurei ninhos de doirados pintassilgos
A quem fartava de painço e prisão
Em troca de uma mais alegre canção

Senti os pés escaldar
No pó fervente dos caminhos
À torreira do sol mediurno
Que secava os figos em fragas arredondadas
Na hora em que até as aves estavam caladas
E dos rostos caíam pingos de suor salgado

Ouvi a passarada cantar alegre
No espaço verde da devesa
E invejei-lhe a liberdade

Chamei pela matilha em agudos assobios
E ouvi o latir do galgo
Que célebre persegue a lebre
E o estampido do tiro 
Que pronto a fere

Segui o voo soturno das rolas mansas
Defronte da minha escopeta
Quando já das cerejas restavam passas 
E pelas mãos calosas corriam palhas ásperas
Que depois de mil martírios 
Iriam encher o celeiro

Dei caminho à água fresca
Nos regos do milho a estalar
E senti melões e melancias a inchar 
De sol e húmus

Cantei romances pela segada
E debiquei as uvas pela vindima

Amei raparigas rosadas
A cantarem cantigas cristalinas
Nas manhãs louçãs de Primavera

Apanhei amoras nos silvedos
Quando já o bago pintava
E nas noras metálicas se apreciava a água

Tornei-me ousado 
A trepar alcantilados rochedos
Cresci são a respirar ar puro
E adorei a beleza cristã 
De papoilas e malmequeres

Não temi o Inverno rigoroso
Sorvi a neve
E o meu peito
Foi mais forte que a geada

Adorei Cristo
Em cada mendigo andrajoso
Que no primeiro degrau da escada
Rezava humildes Pai-nossos
Enquanto minha mãe 
Condoída ela mesma
Lhe enchia de azeite na lata

Armei o Presépio pelo Natal
Joguei ao rapa pela Consoada
Pus máscara pelo Carnaval
E botei o pião pela Quaresma

Senti
Em mim
O toque das Avé-Marias
Quando pelo findar do dia
O arfar quente da terra fez de mim poeta
E calado vi descer a noite
No fumo diáfano da aldeia
Em visão bíblica de deserto e oásis

Sorvi o caldo quente
Com a religiosidade de meus avós
E na lareira rubra 
Encontrei doce temperança
Para os músculos doridos

Um dia emigrei
E nas terras distantes
Não esqueci meus pais

Vivo com vida
A vida de cada ano
Sou 
E sempre serei

Transmontano!

In Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-
2000)

Henrique Pedro


sexta-feira, 4 de maio de 2018

Quando a minha sombra mais se alonga




Quando a minha sombra mais se alonga

O Sol nasce atrás de mim
lá para as bandas da serra de Bornes

À hora em que ainda durmo
inocente

O Sol poente
porém
oscila
entre o cabeço do Boi e a serra da Santa Comba

Entre as cinco da tarde no Inverno
e as nove da noite
no Verão
horas a que a minha sombra
mais se alonga

E não é por acaso mediterrâneo

É porque é à hora do ocaso
que a minha mente mais se perde
em divagações astronómicas
dilacerada entre poesia e astronomia

Hora a que a minha alma mais se sente
se angustia
e delira em arrufos místicos
espontâneos

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)

terça-feira, 1 de maio de 2018

Amorável, doida, doída, dorida, nonsense.



 

Por mais que se pense

ou não pense

se diga ou se fique calado

extasiado

a olhar o céu

a poesia é o que é:

Nonsense

 

É a arte do utópico

dos picos da paixão

e de outros males do coração

das indefiníveis estéticas

amor sem dor

é utopia

 

É génese de religiões

ainda que Amor e a Fé

não sejam meras construções

poéticas

 

Melhor que nada, que outra coisa nenhuma

a poesia nos inuma na tristeza

nos liberta do real

nos desperta

nos afunda nas raízes profundas do ser

daquilo que verdadeiramente é

nos despoja do ter e do haver

mais nos aproxima do bem

e nos afasta do mal

 

A poesia

é como a vida é

amorável

inexplicável

irracional

doida

doída

dorida

nonsense


Vale de Salgueiro, 12 de Novembro de 2007

Henrique António Pedro