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quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Nas entranhas carcomidas de um castanheiro milenar


(in Anamnesis (prosaYpoesia) 1.ª Edição: Janeiro de 2016)


Eu já fui rei

 … um dia

 

Por breves mas felizes anos

de um plácido e amplo reino

sem equívocos nem enganos

que tinha por singular palácio

um carcomido castanheiro

 

No tempo em que os montanheses

ainda usavam tamancos de amieiro

apascentavam rebanhos na serra

e desmatavam a terra safara

para semear searas de centeio

 

Enquanto dóceis ruminantes

manadas de bois e vacas

pastavam nos lameiros verdejantes

e nos úberes linhares

floriam abóboras e batatas

 

Palácio plantado num espaço breve

a norte de Vila Nova de Monforte

num contraforte isolado

votado ao sol e à neve

na suave serra da Padrela

 

Não havia então outra aldeia

tão fresca, farta e sadia

como ela

 

A árvore milenar erguia-se majestosa

à entrada do humilde povoado

com outras castaneáceas menores

a compor a sua corte silenciosa

um souto frondoso e bem copado

 

E diz-me o douto coração da memória

e da imaginação

de tão longínqua tradição

que já os próceres suevos e godos

por ali reuniam os seus povos em comícios

sob a ramagem de místicos castanheiros

ao luar dos mágicos solstícios

ou em certas manhãs de nevoeiro

para dirimir querelas entre clãs

celebrar alegres festejos rituais

consumar sagrados esponsais

ou eleger chefes guerreiros

sempre que por toda a serra

sopravam ventos de guerra

 

Foi também à sua beira

tão perto que muito ouriço

dava à luz já sobre o adro

que seria mais tarde edificado

pequeno templo votado a Santo António

oficina de religião e virtude

onde o aldeão piedoso orava

quebrantava o enguiço

e se demarcava do demónio

 

E a dois passos dali

mal espaçados

murmurejava noite e dia

a cristalina fonte comunitária

que dessedentava humanos

e animais adrede

e a água que era demais

seguia seu curso livremente

pela natureza em frente

tecendo rendilhada líquida rede

 

Até que nos tempos ditos modernos

a empestaram com pesticidas

supostamente para livrar de pragas a terra

mas que maiores chagas abriram

no ecossistema de toda a Serra

 

Era aquele o meu reino

de encanto

e os meus aposentos reais

as entranhas do tronco cavernoso

todas moldadas em castanho

onde apenas entrava quem eu queria

gente do meu tamanho

e que se aventurava

a tanto

 

Ali me refugiava sempre que a vida

cá fora me não sorria

ou recebia chamamento especial

para viajar pelo Cosmos

dentro de um castanheiro carcomido

transformado em nave espacial

 

Era eu o rei daquele plácido reino

com perfumado palácio no seio

dum carcomido castanheiro

onde aprendi a enfrentar todo o mal

a não ter medo de sonhar

a ser senhor de mim mesmo

e a ter um domínio só meu

 

 

E também aprendi

por experiência interior

nas entranhas carcomidas

de um castanheiro milenar

que a única competição justa e lícita

de um homem verdadeiro

é consigo próprio na verdade

 

E que com todos os demais

que no talento e no saber

nascem e são desiguais

apenas deverá haver

solidariedade

 

Vale de Salgueiro, 9 de Dezembro de 2007

Henrique António Pedro

 

( Imagem: Google)

 

sábado, 30 de agosto de 2025

Um copo de tinto com poesia



Sentado à mesa da insanidade

numa tasca escusa

barulhenta

que apenas gente de má nota

frequenta

 

Que importa!

 

Com uma garrafa de poesia tinta

aberta

a beberricar versos

e a bolsar poemas

falo de mim

a gesticular

embriagado de vida

sedento de amor

 e de verdade

 

Nada tenho que esquecer

nada de que me arrepender

mas muito que recordar

com saudade

 

Só mesmo a poesia me poderá ajudar

a resolver

este dilema

este abstrato desiderato

de desejar falar de mim

e do meu passado

 

Por isso o convido

a si

também

 

Venha!

Vem!

 

Senta-te aqui ao pé de mim

mas não fiques calado

fala-me também de ti

e bebe

até cairmos ambos para o lado

 

Talvez acabemos por acordar

num banco de jardim

no centro da cidade

adormecida

 

Ainda antes do sol raiar

decididos a mudar de vida

 

Embriagados desta mística alegria

chamada poesia

 

Vale de Salgueiro, sábado, 28 de Agosto de 2010

Henrique António Pedro

 

domingo, 24 de agosto de 2025

Eu e outros

 



in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)

Manhã cedo

Sentado na esplanada de um café

Fito o burburinho nascente

Daquela praça


Reparo

Uma por uma

Em cada pessoa que passa


Olho também o edifício em frente

Onde alguém assoma à janela

E digo para comigo:

Será que aquela desgrenhada

Despenteada mulher

Guarda a alma nos frasquinhos de perfume

E ideais não tenha mais

Que o alinhamento dos talheres?

 

Que me importa a mim, porém

Que alguém faça isto

Ou aquilo

Se nada disso comigo se relaciona

Nem sequer com o lugar onde estou


Observo a  velha vagarosa que passa

Suspirando ais

Retenho de fugida

A figura da estudante que passou

Fito a graça colorida das flores nos canteiros

Sentimentos passageiros

E nada mais

 

Chaves, 2 de Abril de 1961

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Tantã



Tantã

in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)

(Revista)

Gostarias de estar aqui, Lou

Para comigo veres a chuva cair impiedosa

E espantar para longe os meninos

Que todo o dia brincaram no terreiro da igreja!?

 

Como a terra farta de humidade

Assim eu estou encharcado de saudade!

 

É assim a tua terra, não é Lou?

Cheia de crianças de ébano

Que brincam livremente

Ao calor do Sol que as cria

Até que um dia

Inesperado vendaval

As espanta para longe

 

Como aterra farta de humidade

Assim eu estou encharcado de saudade

 

Tu também és um pouco filha desse Sol

Não és Lou!?

E tens no coração um Tantã

Que só eu ouço bater

 

Como a terra farta de humidade

Assim eu estou encharcado de saudade

 

                            Mueda (Cabo Delgado, Moçambique), 1972

 

Ao amor e à liberdade

 


Ao amor e à liberdade

in Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)

(Revisto)

As árvores murmuram

Quando cruzam s raízes de sob a terra

 

Os homens conspiram

Quando apertam as mãos

 

Em ambientes

Abertos

É possível a vida

E a morte microbiana

 

Em atmosferas limitadas sobrevem a morte

E a vida anaeróbia

 

As aves

Como as flores

Só sabem fazer amor

 

Eu murmuro

Eu conspiro

Vivo em todos as ares

E amo mais que as aves

 

Mueda, (Cabo Delgado, Norte de Moçambique), 4 de Janeiro de 1972

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

...A monção não traz a Paz!




                                                     ...A monção não traz a Paz!

                           In Poemas da Guerra, de Mim e de Outrem (Editora Piaget-2000)

                                                               (Revisto)

 

Hoje não fui ver o pôr-do-sol

Não se ausentou a guerra de meus olhos

Nem senti que no céu lilás

Surge sempre um novo dia

 

Caminhei

Mais agitado que o vento

Que raivento varre a terra

Como se sua vontade de paz

E de amar

Fosse maior que a minha

 

...minha vontade amar é um ar assim raivento!

 

Hoje

Não fui ver o pôr-do-sol

Não se ausentou a guerra de meus olhos

Nem senti que no céu lilás

Surge sempre um novo dia

Vi que a monção não traz a Paz

 

...a monção não traz a Paz!

 

Caminhei

Mais agitado que o vento

Que raivento varre a terra

Minha vontade de paz

E de amar

É um ar assim raivento

 

...a monção não traz a Paz!

...a monção não traz a Paz!

...a monção não traz a Paz!

 

 

Nangade (Cabo Delgado-Moçambique), 28 de Outubro de 1972

Henrique António Pedro