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segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

QUANDO PIA O PERLUÍS

 



QUANDO PIA O PERLUÍS

No mês de Março marçagão, em que de manhã é inverno e à tarde é verão, escurece e começa a gear logo que o sol se esconde atrás do picoto da Santa Comba.

 Por três vezes o padre António tocou às Trindades, com três badaladas intervaladas a cada três, puxando com perícia a corda que tinha uma ponta atada na varanda da casa paroquial e a outra no badalo do sino menor do campanário. Os mais piedosos recolheram-se em breve oração e as crianças pararam de jogar ao rou-rou e à trinca-cevada e correram para o colo das mães. Entrementes galinhas, patos e perus haviam tomado a iniciativa de se ajeitar nos poleiros e os recos nos cortelhos.

Os humanos que desde o nascer do sol labutaram nas hortas e terreiros, depois que acomodaram os bois e os muares nas lojas bem aconchegadas de palha, feno e cevada não tardariam a também eles recolher a penates, sôfregos da malga de caldo, introito da ceia substancial que o mais certo era constar de alheiras douradas na brasa, acompanhadas de grelos, chícharros e batatas cozidas.

 Nas lareiras crepitavam fogueiras calorosas, que as noites ainda eram frias, apesar de a Primavera já ter sido inaugurada pelas primeiras andorinhas, cuja chegada o velho Albino Capador dias antes anunciara aos garotos que se dirigiam à escola:

-Psit, psit…!- Chamou. Pararam para escutá-lo.

Ainda antes de dizer o que pretendia, com o indicador e o médio da mão direita voltada de costas, apertou delicadamente o nariz de um deles e de seguida sacudiu-a bruscamente, batendo os dedos um no outro de forma a produzir um breve estalo, simulando libertar moncas inexistentes. Só depois, sentenciou, com ar sério:

- Rapazes. As andorinhas que mandei vir estão a chegar. É o Gil Eanes que as traz.

Este Gil Eanes a que Albino Capador se referia era o conhecido navio hospital que apoiava a frota bacalhoeira lá no mar do Norte e que todos conheciam, ou não fosse o bacalhau um emblema gastronómico nacional. Ainda assim, Artur, o mais ladino, porque sabia que as andorinhas vinham do sul e o bacalhau do norte, questionou:

-Ó ti Albino, então as andorinhas vêm no mesmo barco do bacalhau?

Sem se aperceber da subtileza da pergunta, Albino Capador, de pronto retorquiu:

- Vêm pousadas no mastro maior, lado a lado com os tralhões e as folecras.

Os rapazes sorriram, aparentemente convencidos. Ainda assim, espirituoso, o Artur, ripostou:

- Um dia destes aparece por aí um andorinho com uma folha de bacalhau no bico, carago!

Entretanto apareceu a autoridade cívica lá da terra, Valentim Fraga, o regedor, de seitoura na mão e com um molho de ferrã às costas e que ao ver os rapazes exclamou:

-Olha que três para umas malápias. – E, sem mais – Ala prá escola que se faz tarde!

Foi quanto bastou para que os jovens retomassem silenciosamente o caminho, rua acima. Albino Capador, a quem o peso dos anos já fazia curvar as costas e ranger os joelhos, recebera tal epíteto por ser capador de verdade, de porcas, em cujo mister se deslocava pelas aldeias vizinhas montado num cavalo imponente, fazendo-se anunciar com o som inconfundível do seu assobio peculiar.

Este Albino Capador, para lá do mais era poeta popular, um criativo de génio conhecido pelas suas hilariantes mas inofensivas facécias, designadamente por organizar concursos de assobio a bois e bestas no bebedouro. Um dia convenceu um jovem criado de servir, chamado Normando, a cantar o conhecido fado de Coimbra, o Passarinho da Ribeira, com a promessa de lhe arranjar um contrato para cantar na Emissora Nacional. Houvesse televisão naquele tempo e o contrato seria para a televisão, certamente. E não é que o moço se quis despedir do amo a quem servia?!

Este episódio, porém, como tantos outros, pertencem ao mítico historial do folgazão Albino. O anúncio da chegada das andorinhas aconteceu a semana passada. Hoje, esta noite melhor dizendo, vive-se um outro acontecimento surreal nesta aldeia nordestina alvoroçada pelo incrível capador de recas, quando a freguesia já se encontrava nos braços de Hipnos e de sei filho Morfeu.

O tiro foi fragoroso indiciando excesso de pólvora. Da espingarda, velha escopeta de um só cão de pederneira, emanou densa fumarada depois que intenso clarão rasgou a noite, relâmpago testemunhado na distante Veiga de Lila, já na falda norte da serra de Santa Comba, enquanto o associado trovão ecoou por montes e vales sobressaltando os vizinhos de Cabanelas, Vale Telhas e Mirandeses e até os de Valverde e Possacos, já do lado de lá do rio Rabaçal.

A primeira a reagir foi a viúva Carminda, sexagenária desempenada e fresca de carnes, que vivia só desde que o marido morrera e as filhas desandaram. Abriu o postigo que dava para o largo do Eirol e pôs-se a gritar, arrebatada:

- Acudam que mataram o meu bem-amado Luís Lafrau. – Repetiu este dramático apelo por duas ou três vezes, dando assim a saber ao mundo, sem de tal se aperceber, que tinha como amor secreto o improvável contrabandista e batoteiro. Paixão assolapada, platónica, nunca antes publicamente declarada, nem sequer com um simples beijo em segredo carimbada. Por mais que Luís Lafrau se oferecesse para a esconjurar quando lhe batia à porta, no regresso do seu esconso desporto, a altas horas da noite:

- Carminda. Tu trazes o diabo no corpo. Olha que eu faço o trabalho melhor que o padre.

Mesmo assim, Carminda nunca cedeu. Cuidava de só abrir o postigo depois de verificar que a chave da porta tinha as duas voltas completas e de firmar melhor a grossa tranca de madeira. E ripostava:

-Vai-te embora excomungado que eu não quero nada, nem contigo nem com o padre.

De seguida metia-se na cama a cismar e a esvair-se em desejos. Era um amor extremado, obsessivo, contraditório, que amalgamava erotismo, admiração, repulsa e temor. Talvez por ter consciência de que Luís, que morava sozinho e não gostava de ninguém a não ser dele próprio, era um libertino viciado no jogo, que se tocava do vinho paradoxalmente quando ganhava, dando assim de beber à glória e não à dor e se abstinha na desolação da derrota. Era um amor que coagia Carminda a manter-se acordada, à lareira mortiça, até persentir que Luís passava à sua porta. E tão louca era a paixão que uma noite a induziu a ir esperar o seu pouco recomendável apaixonado ao caminho, entocada numa dobra do fraguedo da Portela, majestoso maciço granítico, a dois passos da aldeia e no qual se dizia que aparecia o diabo. Mas Carminda nada temia, a não ser esse seu amor espúrio. Adormeceu e acordou, estremunhada, quando se apercebeu de uma figura que abanava levemente, agigantada pela sombra do luar. Seria o demónio?! Esfregou os olhos, focou a vista e apurou o ouvido. Afinal o belzebu era Luís Lafrau que parado no meio do caminho urinava ali a dois passos dela. Ocultou-se o melhor que pôde tendo o cuidado de fazer o menor ruído. Prestou atenção ao que ele dizia, quase gritando:

- Ó diabo, meu grande filho da puta! Dizem que apareces por aqui. Aparece lá que eu quero partir-te os cornos com este pau.- E brandia o varapau em direcção ao rochedo.

Inesperadamente uma pequena pedra rolou aos pés de Carminda quando esta se encolheu ainda mais. Luís apercebeu-se, eriçou-se, apurou os sentidos e segredou: - Bá! Algum coelho, porí.

Optou por apertar a carcela e retomar a marcha, cambaleando visivelmente e ensaiando a cantilena costumeira já que vinha ganhador. Carminda que se mantivera quieta, encafuada numa frincha, envolta no xaile negro e no lenço que lhe cobria a cabeça, também se predispôs a sair da toca para se pôr a salvo. Esbarou ruidosamente, porém, chamando a atenção de Luís que especou de pronto, sem saber se fugir, se enfrentar. Decidiu-se por avançar sobre a aparição que procurava dissimular-se a todo o custo. Com espanto, apercebeu-se que era Carminda. Exclamou:

-Ai és tu minha bruxa!- Avançou para ela, mas acabou por se estatelar na agueira que ladeava o caminho ao dar um passo mais largo. E enquanto Luís se levanta e cai de novo, Carminda desapareceu, lesta, na sombra da noite. Quando o apaixonado, daí a pouco, lhe bateu à porta e a interpelou, já ela respondeu com toda a naturalidade como se fosse completamente estranha aos acontecimentos, argumentando:

- Hoje bebeste por um garabano, banabóia. És bem rõe. – E fechou-lhe o postigo na cara.

  A verdade é que Carminda não mais se livrou da fama que Luís Lafrau lhe botou. Fama de bruxa, de ter poderes demoníacos e de possuir do livro de São Cipriano. Tudo isso já lá vai, porém.

 Na noite de hoje, portanto, a aldeia vive as emoções de um tiro nocturno, inusitado, disparado a despropósito. Com os gritos da Carminda houve portas e janelas que se abriram e não tardou a formar-se um pequeno adjunto no largo do Eirol. Todos começavam por perguntar ele que foi, ele que não foi, ele onde foi. Foi o caso da velha Ester que era surda que nem uma porta, menos que as paredes é certo que, como se sabe, têm ouvidos. Desde a janela entreaberta perguntou:

-Ele que foi? Ele que foi? Pareceu-me ouvir a genra do Nabiça gritar.

Carminda não teve como não responder, chorosa:

- Mataram o Luís Lafrau. Foi o que foi. Eu ainda não dei por ele passar...!

O Valentim Fraga, que gozava a fama de ser o homem mais maroto da aldeia e que por isso fora nomeado regedor, também acordou com o tiro. E porque tomava a missão a peito veio para a rua de alpergatas e ceroulas de flanela com “atilhos atados nos artelhos”, como dizia o poeta Albino. Mal teve tempo de pôr a caçadeira ao ombro e de apertar a cartucheira à cintura. Uma figura digna de se lhe tirar o chapéu ou a fotografia se máquina fotográfica houvesse. Com a autoridade inerente interpelou, de pronto, os presentes:

- Quem é o corrécio que eu, morto ou vivo, dou-lhe já ordem de prisão.

Foi quando se começou a ouvir a voz de alguém que descia a ladeira, cantando alegremente:

- Eu sou um homem do fado. E os homens do fado nunca hão-de de morrer.

Fez-se silêncio no largo do Eirol, mas quando se tornou evidente de quem se tratava, o regedor, sentindo-se inútil e desautorizado, explodiu:

- Ora aí vem o morto a cantar! Vão mas é todos pró carvalho! - E retirou-se vociferando impropérios. Também Carminda tratou de se escapulir, sorrateiramente, antes que o Lafrau aparecesse. Verificou se o garavelho do postigo estava bem corrido, arrochou a tranca da porta com mais força e aninhou-se à lareira, cismática.

 Entrementes o Capador já havia pendurado o bacamarte no sítio em que sempre repousava desde que o herdara do avô, por detrás do escano, convenientemente escondido e sempre à mão. Morava na primeira casa à entrada da aldeia. As oliveiras circundavam-na até aos beirais mas na pequena horta posterior havia uma abebreira enorme que dispensava dormida e comida à passarada, mal as abêbras começavam a pintar-se de preto. Quando, imediatamente após o disparo se ouviram os gritos da Carminda, a mulher do Albino que se chamava Rosa mas obviamente também era conhecida pela Capadora, desabafou:

- Ó «home»! Querem ver que mataste alguém!

- Ninguém se queixou. Se calhar nem no perluís acertei. - Respondeu, de pronto, o interpelado.

Pelo sim pelo não, apreensivo, tomou a candeia e foi verificar. Não tardou estava de volta com um pássaro enorme na mão, acinzentado, de cabeça dependurada. Mal fechou a porta disse:

- Aqui o tens. Este não volta a piar nem a andar por aí a agoirar.

O perluís, ave tida por agoirenta, já naquela tarde fora visto pelos ares, de bico comprido a espetar o céu, com as patas pendentes e em voos rasantes sobre os telhados. Rosa seguiu com atenção as suas sucessivas tentativas de pousar no telhado da velha Ester. Persignou-se e disse para consigo:

- Vai morrer alguém. Quem será? Querem ver que é a Ester!

Para sua maior angústia a fatídica ave veio pernoitar na abebreira, onde o seu piar repetitivo, funéreo, a denunciou e acabou por lhe ditar a própria morte. Depois que tudo se aclarou, o dia e o evento, o excêntrico Albino Capador justificava o tiro a hora tão imprópria a quem o interpelava dizendo que o patife do perluís havia viajado clandestino no Gil Eanes, sem carta de chamada e sem pagar a passagem.

Certo é que aquele infeliz perluís não soltou mais pio. Os óbitos, contudo, continuaram a acontecer naquela pitoresca aldeia nordestina mesmo sem pássaros a prenunciá-los. E assim vai continuar a ser enquanto houver mortos a viver e vivos para morrer. E criativos em quem acreditar.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Olival Escuro.


No caminho vicinal que desde Vale de Salgueiro serpenteava até Miradeses, quando a descida se acentuava percorrido que estava cerca de um quilómetro, apartava-se à esquerda, caminhava-se mais uma escassa centena de metros a esmo e …eis-nos no Olival Escuro!

Mais ampla visão tinha-se, todavia, se logo ali na Cruz das Favas metêssemos pelo caminho do Campelo e, já lá no cimo, mesmo sem treparmos ao Alto do Toco, espraiássemos o olhar pelo vasto emaranhado de vales e colinas que se distende até à majestosa Serra da Santa Comba, que vista deste lado se apresenta como um maciço único, azulado, mas que na realidade se compõe de duas formosas montanhas, a serra dos Passos e a de Santa Comba propriamente dita, separadas por um profundo vale transversal.

Baixando o olhar, obliquamente, quase a tocar os pés, deparávamos com o temido lugar mesmo à frente do nariz: o sombrio e assombrado olival, do qual até o próprio Sol se arredava. Melhor o iluminava a Lua, ainda assim, fantasmagórica nas noites claras de Janeiro que é quando o luar não tem parceiro, embora o de Agosto lhe bata no rosto.

Até nas horas do dia dava arrepios lá permanecer, ainda que, ao que se dizia, as oliveiras do Olival Escuro eram as que melhor azeite produziam, talvez por serem maioritariamente lentiscas. Azeite que de tão fino era escolhido para alumiar ao Santíssimo o que indicia, seguramente, que o carácter maligno do lugar estava na cabeça dos intervenientes, tão-somente.

Verdade é que naquele tempo o Olival Escuro era um local estranho, assombrado, temido, onde durante o dia era raro encontrar vivalma, muito embora os campos enxameassem de pessoas e animais votados às múltiplas tarefas agrícolas. Ao Olival Escuro, porém, apenas se ia durante o dia e pelo tempo estritamente necessário. Durante a noite só os mais temerários lá se aventuravam.

Claro que havia homens destemidos naquele tempo. Homens que nem deles próprios tinham medo e que, por isso mesmo, protagonizaram episódios do mais fantástico realismo mágico que imaginar se pode.

 

É o caso de Aurélio Lebroto que foi ao Olival Escuro cortar estacas para replantar, em noite já adiantada, embora de céu estrelado e luarento dado que, ao que se dizia, para se garantir a tão afamada qualidade do azeite, deveriam ser cortadas no mais cristalino silêncio nocturno.

Trepou à oliveira que mais asada lhe pareceu, sem a menor sombra de medo e meteu mãos à obra. Logo à primeira machadada uma perdiz saltou do ninho, assustada, em voo rasteiro e uma lebre viu-se forçada a largar a cama, lesta, constrangida a procurar leito mais tranquilo e seguro. Nada que minimamente perturbasse o Aurélio, ainda assim. O silêncio imaculado da noite passou a ser apenas perturbado pelo som ritmado do machado a golpear o lenho até que, inesperadamente, uma voz tonítrua, cavernosa, se lhe sobrepôs ecoando por todo o olival:

- Cortar corta-las, mas levar não as levas!

O Aurélio parou, pôs todos os sentidos em alerta, olhou à roda, mas como nada de concreto vislumbrasse prosseguiu.

 Não tardou, a mesma voz fazia-se ouvir pela segunda vez, falada sabe se lá por quem:

- Cortar corta-las, mas levar não as levas!

Novamente o Aurélio suspendeu o trabalho, apurou ainda mais o ouvido, olhou em volta por tempo mais dilatado, mas de novo de nada se deu conta.

Ainda assim pensou: “Algum brincalhão a falar por um embude, como na Serrada da Velha, para me meter medo”.

Segurou o machado com mais força, encarrapitou-se mais firmemente na oliveira e continuou o trabalho. A voz, porém, não desistiu. Pela terceira e última vez se fez ouvir, agora já mais próxima e assustadora:

- Cortar corta-las, mas levar não as levas!

Certo é que à terceira o Aurélio não resistiu. Tomou-se de tremores, um calafrio estranho percorreu-lhe a espinha, largou o machado que, ao que se dizia, permaneceu durante anos enterrado no tronco que golpeava, saltou lesto da oliveira e escapuliu-se para casa, em passo estugado, sem olhar para trás uma só vez que fosse. Branco como a cal e tremendo que nem varas verdes, ainda encontrou tempo e forças para contar à mulher a sua aventura, rematando:

- Não vi nada, não vi fosse lá o que fosse, mulher. Mas que escutei, escutei, com estes ouvidos que ainda ouvem bem: cortar corta-las, mas levar não as levas!

Posto isto foi deitar-se, a tremer e a suar frio, pediu à mulher que o agasalhasse com mais um cobertor e não mais saiu da cama.

- Coitadinho! Tão bom homem que era. Já nem para o cemitério foi pelo próprio pé. - Lamentava-se, chorosa, a vizinha, a tia Elvira.

 

Não se pense, porém, que era só no mais cerrado e escuro do olival que fenómenos extranaturais deste teor aconteciam. Também no caminho bordejado de oliveiras outros acontecimentos mirabolantes eram reportados por transeuntes notívagos.

Este outro feito fantástico era atribuído ao João Repolho, homem agigantado, abrutalhado, fanfarrão, quando também outra noite por ali passava, depois de demorada e agitada sessão de batota, lá para os lados de Rio Torto. De acordo com o que mais tarde confidenciou aos amigos mais chegados, embora sem se alongar muito, o que não obstou que o sucedido se tivesse espalhado rapidamente, vinha ele a assobiar às bruxas e aos zangões, como dizia ser seu hábito, quando por três vezes foi desafiado, de viva voz e de rajada, por algo, ou alguém que não se deixou ver:

- Ó bufão, bufa lá, agora. Ó bufão, bufa lá, agora. Ó bufão, bufa lá, agora.

- Se calhar foi a mesma voz que apoquentou o Aurélio. – Observou um circunstante.

Claro que o João Repolho não bufou, não respondeu e muito menos perguntou fosse lá o que fosse. Estugou o passo, porque quem tem cu tem medo. Pelo sim pelo não, tirou do bolso a sevilhana que comprara na festa do Domingo de Lázaro, em Verin, apertou a mola para soltar a lâmina disposto a pôr a tripas ao luar a quem se lhe metesse à frente, fosse o que fosse ou quem fosse e continuou o caminho de ouvido atento e pé ligeiro. Outro desfecho não teve esta parlenda que não fosse, a partir daí, passar o Repolho a ser alvo de chalaças que celebrizavam o dito “ Ó bufão, bufa lá, agora”. Mas sempre com ele bem distante porque, como se viu, o Repolho não era homem para brincadeiras.

 

Também se contava que outro heróico notívago, o Arrãs, um salta-pocinhas laracheador que amiúde recolhia a casa já de madrugada vindo sabe-se lá donde e de que esconsos afazeres, noutra noite, quando passava pelo Olival Escuro, deu de caras com um jumento ruço que tosava erva por entre as oliveiras, mesmo à beira do caminho. À primeira vista pareceu-lhe o burro do Malaia que talvez se tivesse escapulido da loja sem o dono dar conta.

-Vem mesmo a calhar. Monto-me nele e toco o jumento ao dono. – Disse para consigo.

 Mas como estava a merujar e o jumento entretanto se embugara na erva orvalhada, achou melhor não o fazer para não sujar as calças de “terylene” que estreara nesse mesmo dia. E ainda bem que o não fez porque, mal virou costas, o jerico começou a crescer, a crescer, desmedidamente, até que, quando as orelhas, enormes, já batiam nas fragas do picoto das Couquelas, atirou dois traques medonhos que mais pareceram tiros ou trovões e desapareceu, a escoucear, salvando montes e vales, lá para os lados de Valverde.

Narração que outro conhecido noitibó, o Luís Melro, que nessa noite andava a armar ratoeiras, ali perto, na Pala Quarteira, afiançava, jurando que bem ouviu os peidos da criatura. E mais:

- A besta, ou fosse lá o que fosse, até deitava chispas pelo cu, salvo seja, como se cagasse estrelas. Escusado será dizer que em paga de tão firme testemunho o Luís Melro emborcava mais uns tantos copos de três. Às custas do Arrãs, de quem havia de ser.

 

Numa outra ocasião, regressava o Chibinhas a casa, vindo de Miradeses onde estivera a ajudar os compadres na mata reca, a que se seguira o lauto banquete do costume, confecionado com os despojos do animal, já se sabe. Vinha um tanto toldado, é certo, mas direito, sem medo mas desconfiado, porque bem conhecia a fama do lugar. Só não sabia, ou não lhe veio à mente, que se dava o caso de haver um defunto em Miradeses à espera do caixão.

Pois foi neste contexto que o Chibinhas, inopinadamente, se deparou no começo da recta que bordejava o Olival Escuro, com uma funesta criatura que descia em sentido contrário, com uma grinalda funerária enfiada no pescoço, em que apoiava o esquife que transportava às costas, luzidio por força do luar que se reflectia nas lantejoulas que o enfeitavam. Ademais a aparição entoava, repetidamente, a sinistra litania:

- É para ti o caixão meu irmão. A cova é a tua nova alcova. Lá no céu bem dormes ao léu.

 Estacou de pronto, o Chibinhas, fixou-se por breves instantes na aparição que não lhe pareceu deste mundo, imaginou que seria para ele o caixão e… ala: desatou numa correria louca em sentido contrário, de regresso a donde viera, só parando a bater freneticamente à porta do compadre que já lhe apareceu em ceroulas e de candeia na mão porque estava prestes a deitar-se e que, sobressaltado, de pronto lhe perguntou:

- Ele que foi, compadre? Saiu-lhe ao caminho algum medo? Alguém lhe bateu?

Já dentro de casa, porta trancada, o Chibinhas explicou o sucedido, gaguejando. Surgiu entretanto Etelvina, a comadre que, sorrindo, exclamou:

- Ó compadre, você é mesmo cagão, carago. Olhe que era o maluco do Chupeta que foi a Vale de Salgueiro encomendar o caixão ao ti Álvaro carpinteiro, que os faz na hora e por medida. Lá bebeu um copito a mais, por certo, enquanto esperava. Não admira que viesse alegre.

Certo é que o Chibinhas se ficou por Miradeses nessa noite.

 

Já agora, fiquem também a saber que não havia apenas homens destemidos naquele tempo e que as mulheres, muito embora de uma só aqui se fale, tinham lugar de destaque.

 Chamava-se Carminda. Era uma raparigaça. Bonita, asseada, de face rosada e buço fino, pernas bem torneadas até onde as saias as deixavam ver. Vários a requestavam lá na aldeia, solteiros e casados, com promessas aliciantes. Mas ela entendia guardar-se para aquele que mais agrados e ganhos lhe garantia, pondo os olhos no Alfredo Lobão que embora fosse bastante mais velho, era rico que nem porco e estava prestes a enviuvar, dado que a mulher sofria de mal sem cura. Ainda que nunca tivessem chegado à fala e muito menos a promessas e contratos, os olhares já diziam mais que as palavras.

Carminda, não tinha onde cair morta. Eram tantos lá em casa que nem havia lugar à mesa e muito menos pão para todos. Por isso ela andava à jeira para ajudar os pais a sustentar a filharada. Na altura da apanha da azeitona escapulia-se pela calada da noite, para fazer uma brecha, um pequeno roubo no olival mais a jeito. Produto que era vendido aos taberneiros como se fosse obtido licitamente no rebusco, só permitido depois da apanha.

 Como é óbvio o Olival Escuro era um local privilegiado para esse práctica costumaz para aqueles que para tanto tinham coragem bastante. Assim foi que uma noite andava Carminda debruçada, sozinha, descontraída, em silêncio, a apanhar azeitona do chão, depois que ripara a que estava no ar ao alcance da mão, quando se apercebeu duma sombra, enorme, agigantada, com recorte de capote e chapéu de aba larga, projectada pelo luar, atrás de si.

Ergueu-se e voltou-se de repente, por reflexo, deparando com um vulto em pé, imóvel, tenebrosamente em silêncio, de mãos nos bolsos, com o chapéu a tapar-lhe o rosto, especado no sítio em que a sombra começava.

 - Credo! Cruzes! Vá de retro satanás - Exclamou enquanto se persignava. Como o vulto se mantivesse mudo e imóvel Carminda desatou a correr que nem desalmada, ladeira acima, deixando para trás a cesta e o saco já meado de azeitona. Seguiu-a a estranha criatura, mais vagarosa mas de passada mais larga, com as botas brochadas a raspar ruidosamente no cascalho da lavoura.

 Carminda só parou, quando já rebentava de cansaço, no cabanal que havia lá bem no cimo da encosta e que ainda tinha o chão acolchoado da palha limpa em que no Verão tenderam figos a secar. Transida de medo, agachou-se num canto, com braços e mãos a tapar a cabeça, convencida de que essa seria a melhor maneira de se defender. Enganou-se ou não terá relatado os factos como na verdade se passaram.

Contou que fora abusada de todas a formas e feitios, sem saber por quem, nem se era humana ou diabólica a criatura, porque desfalecera e só veio a si quando já o sol raiava.

- Porí foi o lobisomem.- Sugeriu Perpétua, uma amiga, tentando confortá-la.

- Ai credo, mulher, não digas tal!- ripostou Carminda, melindrada.

 A verdade é que nove meses depois, o escândalo já corria de boca em boca desde que os primeiros sinais de gravidez se fizeram notar, dando aso a mil estapafúrdias conjecturas, nascia um menino lindo, rechonchudo, que era a cara chapada da mãe, sem a menor parecença com qualquer homem da aldeia, por mais que as bisbilhoteiras se esforçassem por encontrar semelhanças.

A Joana Jalaca, cotada chocalheira, ainda teve ensejo de invectivar o Xispas, guardador de olivais:

- Ó Xispas, então sempre foste tu que emprenhas-te a Carminda lá para os lados do Olival Escuro?

-Eu?! Nem pensar. Mas que tenho pena, lá isso tenho.- Ripostou prontamente o Xispas calando de vez a Joana que meteu a viola no saco embora continuando a tocar lá freguesia.

Para adensar, ou aclarar, o mistério o Alfredo Lobão que era abastado mas de poucas falas, assim disfarçando os muitos segredos que levou consigo para a cova, morreu inesperadamente, primeiro que a mulher. Segredos que só a Rosa Cachopa conhecia, apesar de paralítica, surda e muda, porque do seu janeluco, que dava directamente para o pátio do Lobão, nas longas noites de vigília, bem via, embora não ouvisse, nem falasse, coisas do arco-da-velha que o comum dos mortais ignorava.

Certo é que desconhecido ficou para sempre o pai da criança. Incógnito e anónimo, como argumentava o velho Tancredo, encarregado do Posto de Registo Civil, para se recusar, terminantemente, a registar o enigmático infante gerado no mal-afamado Olival Escuro e ainda por cima em noite de luar e sem que se soubesse por quem e com que artes.

Até o padre Rafael, piedoso por demais, entendeu por bem não passar a respectiva cédula de baptismo embora se predispusesse a baptizar o menino, por caridade e para o proteger das investidas do maligno. Seria a própria mãe a baptizá-lo isto é, a dar-lhe nome, magoada com a cruel e injusta recusa das autoridades:

- Ai o meu filho não vai ter papeis? Pois limpem o rabo com eles. Nome vai ter que sou eu que lho ponho e é para já: Zé Ninguém. Vai Chamar-se Zé Ninguém!

 E assim foi que um dia qualquer nasceu o Zé Ninguém cidadão do Olival Escuro. Um Zé Ninguém que nunca foi à tropa, dado que nunca constou de qualquer recenseamento civil ou militar. Um Zé Ninguém apátrida. Um Zé Ninguém que teve mulher e filhos mas que nunca se casou. Um Zé Ninguém que viveu sem ter existido. Um Zé Ninguém que não morreu porque ninguém lhe passou a certidão de óbito.

O Olival Escuro lá está, ainda que profundamente transformado. Esconjurado de todo o mal, continua a produzir o melhor azeite do mundo, embora destronado pela energia eléctrica que passou a alimentar as lamparinas que agora alumiam o Santíssimo.


 in Rostos da Terra (Academia de Letras de Trás-os-Montes-Maio 2019)



domingo, 3 de janeiro de 2021

Alegrai-vos, segadores!

 


Esta história começa quando ainda o génio mágico de São Martinho de Anta não havia transformado o sáfaro Trás-os-Montes no Reino Maravilhoso, nem convertido os rudes transmontanos em seres lendários.

Quando as terras da Terra Quente ainda não eram retalhados pelas pesadas rodas dos tractores e nos caminhos chiavam ronceiros carros de bois no tempo da acarreja do cereal para as eiras.

 E o ti Raimundo montava o Ruço, com as pernas a arrastar pelo chão, para ir amanhar a horta da Nabarega, onde mal cabiam duas couves tronchas. Enquanto agora o filho vai e vem quando lhe apetece, com o “espada” de matrícula francesa a espantar lagartos e pardais, inundando os ares com músicas do Quim Barreiros.

Ainda as searas começavam por tingir de verde vivo os declives suaves das colinas para, mais tarde, ondularem ao vento, douradas, dando a ideia de estarem a fugir para lado nenhum, como a angústia da gente que mourejava de sol a sol, numa roda-viva quotidiana, sem nunca se atrever a mudar de vida.

Ainda o luar de Janeiro só tinha parceiro no de Agosto, que lhe batia no rosto, sem lâmpadas eléctricas a ofuscarem o firmamento e na Lua esmaltada se recortava um homem com um bardo de silvas às costas, que o americano Armstrong aliviaria do seu peso, mais tarde.

Ainda, pelo Estio, bruxas e zângões sopravam vendavais que rodopiavam em vertiginosos pulverinhos de pó e palha que subiam na atmosfera mais alto que a Serra da Santa Comba, esconjurados por figas e carvalhos. Agora, outras bruxas bailam, e quando o vento sopra, desordenado, sem tempo nem eira, arrasta latas vazias de Coca-Cola e sacos plásticos do Feira Nova.

Ainda os majestosos olivais tradicionais se ficavam pelas baixas, serenos e sombrios, sem se atreverem a alastrar por ladeiras e cabeços e a expulsar o pão e o trigo, como o fizeram as fraldiqueiras oliveiras da CEE, em cujas veias deixou de correr sangue e suor, porque se alimentam da seiva dos subsídios.

Ainda o pão era feito de farinha de centeio, moída em moinhos e azenhas tocadas por águas cristalinas, amassada com o suor do rosto e cozida pelo afecto das padeiras.

- Ti Antónho... veja lá se me faz render o grão! - Exclamava, engustiada, a pobre viúva, boca aberta de fome, na hora de entregar o taleigo à moenda.

- Ele é cada grão seu pão! - Retorquia o Escaldado, moleiro, filósofo, sofrido. 

Ainda se trabalhava de sol a sol, com resignação e à força de braços e,

 

... ainda o lusco-fusco da alvorada não se abrira de todo e o orvalho escorria pelas palhas, já Manuel Santana se destacava à testa da camarada, imparável, seitoura manejada com desembaraço, deixando atrás de si longa esteira de grossos molhos de trigo.

- Vale por dez – segredava, de si para si, Albino Lopes, o amo dos segadores.

 Manuel Santana era isso mesmo: incansável, tenaz, imbatível!

E quando o astro rei dobrava o zénite e as sombras minguavam, no caminho que curvava com a encosta, apareciam, por fim, as mulheres, com ajoujadas gigas de verga à cabeça, transportando o jantar para os segadores, àquela hora já sôfregos por comida e descanso.

 Nesse preciso instante, o Amadeu, também conhecido pelo Fodinhas, e a quem competia dar o lamiré, deixou de apontar a dolente “Oh minha mãe, minha mãe/ Oh minha mãe minha amada/ Quem tem uma mãe tem tudo/ Quem não tem mãe não tem nada.”, repetida vezes sem conta, para lançar a mais animada “Alegrai-vos segadores/ Ligeira vem a cozinheira/ Deixa o rancho no restolho/ Leva a panela com ela. “, no que seria seguido por um coro de vozes roufenhas que se espraiavam, encostas acima e abaixo, até se esvaírem em ecos por todo o vale.

Em breve a mesa estava posta sobre alvas toalhas de linho estendidas no restolho, o garrafão corria de mão em mão e das largas chaspas de alumínio saía o rancho fumegante que, à mistura com os ervanços e o toucinho, também traziam humor e alento.

É então que, entre outros ditos e dichotes, Antero, tido por lacoeiro, que é outra forma de em Trás-os-Montes se dizer mandrião, atirou:

- Ó Manuel Santana! Tu parece que queres acabar com o trabalho!

Ao que o visado se limitou a retorquir, erguendo por instantes a cabeça do prato de esmalte, sem levantar a voz:

- Ou eu acabo com ele ou ele comigo!

Estalou a risota geral. Até o jumento do ti Raimundo, que até ali se mantivera em silêncio tosando erva fresca numa agueira, desatou em tonitruante algazarra, harmonizada de chios e ornejos.

Aproveitou a deixa o Luís Lafrau que, já alegre da bebida, se saiu com esta, enquanto passava o garrafão ao companheiro do lado:

- Jaquim, dá de beber ao burro do Raimundo, não vá o doutor secar-se dos beiços.

Bem...! Uns tantos anos depois, Manuel Santana, que emigrara e enriquecera lá pelas américas, e outro fado não poderia ter quem tanto se devotava ao trabalho, regressa à terra, com a pompa e circunstância requeridas pelo peso da fama e das saudades, quando já há muito o asfalto se estendera de Mirandela a Rebordelo, os postes do telefone e da electricidade emolduravam as ruas de Vale das Rosas e o relógio do campanário martelava as horas, as meias e os quartos, entre outras inovações menores.

Na hora da recepção, com comes, bebes e umas mãos cheias de dólares lançados às rebentinas, para gáudio da canalha e dos graúdos engalfinhados na disputa, (aonde já ia o tempo em que, de igual forma, se batiam por uma mão cheia de rebuçados!), Antero, como sempre manhoso que nem uma mula, interpela:

- Ó Manuel Santana! Quer então dizer que sempre conseguiste acabar com o trabalho!?

Ao que Manuel Santana, com indisfarçável sotaque americano, de pronto contrapôs, sorridente, em olímpica atitude:

- Com o meu trabalho acabei, que já estou “retairede”. Mas trago-vos muito “emploimente”, que é do que vós andais precisados.

A maioria dos circunstantes, afeiçoados à sonoridade da língua francesa nos caminhos da emigração - que na verve do momento tinha a musicalidade da prosa do americano Barac Obama - bem percebeu a mensagem do compatriota regressado de terras de tio Sam.

Tanto que o Amadeu ainda balbuciou, timidamente, um “alegrai-vos segadores“, mas seria Antero a fazer-se ouvir, uma vez mais:

- Pois então venham lá os “ emploimentes ” que trabalho já nós temos de duro!

Reeditou-se a risota da segada de há anos atrás. Ecoou, porém, estrondeante e obscena na lembrança de Manuel Santana, que estaria a negociar com a Câmara Municipal facilidades para instalar um moderno complexo agroalimentar no cruzamento da Bouça.

Consta que, nessa mesma hora, Manuel Santana se decidiu por levar os empregos de volta para a América e deixar por cá os trabalhos.

Por opção do seu autor este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico.

 

Henrique Pedro

 

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

À hora de entre o cão e o lobo.

 


Meu tio Daniel, crente, temente de Deus e piedoso devoto de S. Francisco de Assis como era, dizia que até as pedras têm alma.

Das pedras duvido, mas daquele lobo com quem partilhei felizes momentos da minha infância encantada, fiquei com a convicção de que se a não tinha, alguém lha emprestara, ainda que por breves momentos.

Nos tempos em que esta história tem lugar Vila Nova de Monforte era um lugarejo perdido numa falda da Serra da Padrela, bem aconchegado de soutos frondosos, lameiros verdejantes e úberes linhares, aonde apenas se chegava a pé ou a cavalo, por veredas e caminhos carreteiros.

Excepcionalmente a velha furgoneta Ford de meu pai, do modelo dito “calças arregaçadas”, aventurava-se a galgar a serra envolta em nuvens de pó, rugidos, “ratés” e solavancos maiores que as montanhas, fazendo-se ouvir a quilómetros de distância, o que dava tempo a que a garotada da aldeia, mais lestos e silenciosos que a maravilhante máquina, me viesse esperar ao alto da Cruz.

Sujos e lanudos, lá apareciam o Acácio, o Carmim e o Valdemar que eu começava por fitar de soslaio, calado, desafiador, já a imaginar brincadeiras sem limites, por montes e vales, árvores e penedos.

Meu pai ia de volta à Terra Quente e ali ficava eu por largas temporadas entregue aos desvelos de minha madrinha Inocência.

Vivia-se de tudo que a terra dava, que era muito e inigualavelmente bom para os conceitos biológicos actuais: ar, água, batata, castanha, centeio, leite, boa saúde e santa liberdade. De que me restam saudades infinitas encerradas nas paredes do robusto casarão solarengo, originariamente presbitério construído por mãos godas convertidas que terá sido governado, nos primórdios, por um qualquer presbítero guerreiro, possivelmente também chamado Eurico. E que poderei muito bem ter sido eu noutra encarnação.

Meu irmão lobo, porém, que eu mesmo baptizara de Godo, sem saber a que onomástica canina fui buscar o nome, marcar-me-ia para sempre.

Fora-me oferecido por Romão, velho criado de servir, que o roubara do ninho rodeado de silvedos e acolchoado de fetos, bem escondido no fojo mais profundo do Vale de Murilha, quando a Primavera despontava em sinfonia de flores silvestres e no chilreio de carriças e toutinegras.

Romão, além do mais, garantiu-me que o resto da ninhada ficara intacta e que da refrega dos mastins com a mãe loba, interrompida ao primeiro assobio mal deitara as mãos à primeira cria, apenas resultaram arranhões de parte a parte. Isso bem o podia eu comprovar no focinho da cadela Salomé, que exibia comprido sulco pelado e ainda encarniçado.

-  Juro-te por Deus Nosso Senhor, Eurico, que a mãe e os irmãos ficaram todos escorreitos. – Mais me afiançou Romão, com ar sério e convincente.

Em breve o Godo abriria dois olhos enormes, oblíquos, azuis como o céu, cresceria desmedido de pernas delgadas, desempenado de corpo, focinho aguçado e orelhas cónicas pontiagudas. E se converteria no meu mais indefectível companheiro de lutas simuladas, correrias e algazarras.

À hora certa, quando ainda eu deambulava em vale de lençóis embalado em sonhos, mal o sol despontava no horizonte, ali bem próximo, na crista da serra, quase em sincronia com o estridente cantar dos galos, já o Godo, sorrateiro, empurrava a porta entreaberta do meu quarto para, com a delicadeza de um verdadeiro lobo, me despertar com repetidos toques do seu focinho frio e húmido na minha face quente.

Chorei no dia em que dele tive que me afastar quando, no início de um Outono frio e chuvoso, meu pai me arrancou à felicidade edénica de Vila Nova de Monforte para me iniciar na vida escolar em Vale de Salgueiro, a minha aldeia natal, bem no coração da úbere Terra Quente.

Apenas soube que o Godo também desaparecera poucos dias depois de nos termos separado, para não mais ser visto, quando mais tarde voltei a Vila Nova. Foi Romão o primeiro a dar-me a notícia, em jeito de pedido de desculpas e de conforto:

-Bô! Ele não era cristão. A natureza dele é vadiar pela serra. Porí, a estas horas, anda “praí” a encher o bandulho de lebres e de perdizes. Se ainda o não mataram!

Mesmo assim, corri as cercanias assobiando e gritando pelo seu nome, mas não tive outras respostas para lá do eco e do pio de uma coruja que, de um pinheiro alto, bateu as asas e desceu em voo picado lá para o mais fundo do vale.

Passaram, entretanto, alguns anos. Meia dúzia, se tantos!

A Páscoa caíra num mês de Março, frio e agreste como as encostas que medeiam entre o Barracão e Vila Nova, terra negra e sáfara, varrida por ventos gélidos, cortantes que nem barbeiro podão, onde apenas medravam a urze, a carqueja, o tojo e a giesta e a mão do semeador, de onde em onde, lançava esparsas searas de centeio e batata.

Tinha ficado assente que, desta vez, passaria as férias em Vila Nova, pelo que, tomei o meu posto na venturosa aventura de vencer o Brunheiro a partir de Chaves, no vagaroso autocarro da Auto Viação do Tâmega. Alcançámos o Barracão, naquele tempo não mais que duas ou três casas erguidas à sombra dos portentosos castanheiros que abrigavam a paragem da carreira, já a tarde declinava.

Do ambiente caloroso de alegria e convívio estudantil reinante no autocarro, saltei, lesto, para o silêncio e solidão da serra. No ar volteavam as primeiras fagulhas de neve, etéreas qual delicadas partículas de cinza que se evolavam de uma lareira anelada e invisível.

O frio era cortante, mordia-me a carne e os ossos, penetrando no pesado sobretudo de sarrobeco como se de ténue folha de papel se tratasse. Eram as imaginárias moscas brancas, materializadas nos seus efeitos. A atmosfera carregara-se de um cinzento imaculado. No céu e na terra reinava uma quietude quase absoluta. Por instinto de sobrevivência reconstruí, mentalmente, o trajecto, avaliei a distância e calculei o tempo. Por reflexo estuguei o passo. Num primeiro troço o caminho corria ladeado de espessas giestas. No mais alto da montanha limitava-se a dois sulcos paralelos rasgados no tapete de urze, que acolchoava toda a serra, pelos pesados rodados dos carros de bois para, quando começava a descer para a aldeia, se tornar pedregoso e acidentado, antes mesmo de penetrar no espesso souto cujas copas roçavam as primeiras casas.

 Em breve o cinzento do céu se tornaria mais carregado, impenetrável à vista. Escassos metros à minha frente pouco mais divisava que sombras paradas. A neve precipitava-se agora, sem voltejar, em grossos farrapos que se acamavam, fundindo-se em espesso e alvo manto.

 Ouvi o primeiro uivo! De imediato a imagem amiga do Godo me veio à lembrança. Ocorreu-me chamá-lo. Ainda ensaiei um breve assobio. Porém, num ápice, lembrei-me das histórias trágicas que ouvira sobre lobos que devoraram pessoas. Como a da professorinha de quem apenas restaram os sapatos e nem o jumento que montava se salvou. Ou a dos oitentas soldados de Napoleão que na campanha da Rússia foram dizimados por uma alcateia imensa não sem antes terem abatido a tiro trezentas feras. No campo de batalha apenas terão sido encontrados os uniformes esfarrapados e as espingardas.

Os uivos eram agora mais frequentes e vinham de várias direcções, ululados em concerto, como se houvesse trocas de mensagens a perpassar a serra, de lés a lés. Ensaiei correr mas retomei o passo com receio de perder o caminho.

 De repente, porém, dei-me conta de que era seguido a curta distância e uma certa segurança interior me recompôs o ânimo. Atrás de mim pressenti um ser que saltava para fora e para dentro do caminho, sem que eu o divisasse, até porque não me atrevia a olhar para trás e muito menos a parar. Mas um suave “frreee..., frreee..., frreee” de patas a comprimirem a neve era perceptível, descompassado do som mais pesado dos meus passos.

De novo me ocorreu chamar pelo Godo. Voltei a não o fazer por igualmente me ter lembrado de ouvir dizer que os lobos não têm olfacto mas possuem, em contrapartida, ouvido apuradíssimo. As alcateias orquestravam por perto e o propósito do meu inesperado companheiro de jornada talvez fosse mantê-las afastadas, não referenciando a minha presença, nem dando ensejo a que outros batedores caninos o fizessem. Prossegui encorajado por este positivo raciocínio.

Até que o odor característico de lenha queimada exalado das lareiras no ar silencioso, cinzento e frio, único prenúncio de humanização, me anunciou a tranquilizadora proximidade do povoado.

Em breve reconheci os castanheiros familiares, passei a ouvir o gorjeio líquido da fonte comunitária, mesmo defronte da capela de Santo António e, mais uns passos, estava a bater sofregamente a aldraba de ferro do robusto portão de castanho. No pátio interior os mastins saltaram, de imediato, em algazarra desenfreada.

 Atrevi-me, então, a olhar para trás. Claramente exposto sobre o muro mais próximo lá estava o Godo, corpulento, imóvel, suavemente ofegante, de orelhas espetadas, sentado nas patas traseiras qual impassível guardião. Só quando, de dentro, rodaram o pesado ferrolho, não sem antes eu levantar o braço em gesto de saudação e gritar um agradecido “ vai irmão!”, a enigmática criatura desapareceu de um salto, mergulhando, por magia, na névoa escura em que já se diluía a derradeira luz do dia e a noite ganhava os seus próprios contornos. Ao lusco-fusco. À hora de entre o cão e lobo!

Falta dizer que a primeira coisa que fiz, na manhã seguinte, foi ir agradecer a Santo António, de quem eu tanto me lembrara, embora só agora o confesse, durante aquela inolvidável travessia da inóspita serra, a graça de estar ali, ajoelhado, e não a ser digerido, retalhado às postas, pelo estômago de qualquer lobo esfaimado que não o Godo.


Henrique António Pedro

 (in Antologia de Autores Transmontanos, Durienses e da Beira Transmontana-Maio 2018)




terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Caldo de castanhas com figos secos

 


Caldo de castanhas com figos secos

Em tempos que já lá vão, muito embora permaneçam bem vivos na memória de muitos, a romaria da Senhora da Saúde de Valpaços era o ponto de encontro primordial das gentes da Terra Quente e da Montanha.

 Sendo que os fregueses das aldeias do lado da Terra Quente do lendário Rabaçal, tratados por “figacheiros” pelos da Montanha, se referiam a estes seus vizinhos do lado de lá do rio como os “montanheses”.

O conceito de Montanha era assim preferido ao de Terra Fria, talvez porque o relevo sobranceiro não alcançasse as alturas das terras de Bragança e Miranda, não deixando, por isso, de ser marcante a diferenciação climática, edáfica e agrária, consumada em distintas idiossincrasias.

 Ainda assim, as terras mais altas de onde o Rabaçal e o Tuela descem, lá das bandas de Vinhais, mereciam o epíteto de “Serra”, simplesmente.

Na Terra Quente, genericamente xistosa, cultivava-se, antes do abastardamento agrário provocado pela CEE, a oliveira, o trigo, o vinho e o figo, enquanto na Montanha, marcadamente granítica, predominavam a castanha, a batata, o centeio e a pecuária.

De tudo isto resultavam fluxos e refluxos afectivos, culturais e comerciais relevantes: trocava-se mel por azeite, comerciava-se batata, castanha, vinho e concertavam-se casamentos.

Assim era que, consoante a época, os montanheses amimavam os seus amigos figacheiros com “magustos de castanhas” logo que os ouriços as davam à luz e os figacheiros os seus amigos montanheses com cestas de figos e uvas acabadinhos de amadurar.

Mas era na congregante romaria valpacense que mutuamente se privilegiavam com gracejos, abraços e beijos, e amiúde se encetavam derriços e consumavam noivados. Elucidativa é a cantiga, verdadeiro ícone do folclore regional, que rezava assim:

Oh minha mãe deixe, deixe/ Oh minha mãe “deixemir” (deixe-me-ir) / Ao arraial a Valpaços/ Que eu vou e torno a vir.

Manda a verdade que se diga, porém, que não raras vezes a alegria genuína dos arraiais era perturbada por tumultos de índole bairrista motivados, por exemplo, pela disputa das fragas do recinto festivo em que os romeiros das diferentes aldeias se assentavam para merendar ou simplesmente descansar e mais comodamente assistir ao deslumbrante fogo-de-artifício.

 Sem esquecer que no tempo das segadas, ranchos de montanheses organizados em camaradas, desciam à Terra Quente para desembaraçar o aperto da ceifa dos trigais e, inversamente, os da Terra Quente subiam à Montanha para agilizar ceifa do centeio.

Segadores que, como é óbvio, eram portadores de todo o tipo de mensagens que muito contribuíam para o mútuo relacionamento dos povoados, por regra acantoados no seu isolamento peculiar.

Daí que quando os da Terra Quente se cruzavam com os da Montanha era quase certo ouvir-se esta amistosa chalaça: “Montanhês da montanha, compõe três com uma castanha!”. Sendo que o dito recíproco não era menos gozoso: “ Figacheiro da Terra Quente, figos secos e aguardente!”.

Isto acontecia em tempos de grande austeridade, quando os transmontanos subsistiam com o que tiravam da terra com muito suor e à força de braços, de bois e muares.

Quando se ceava e seroava à lareira e à luz da candeia e apenas se abandonava o lar para cumprir o serviço militar ou procurar melhor vida além-mar.

Tempo em que tribos de ciganos deambulavam entre a Terra Quente e a Montanha com poiso assegurado em palheiros e currais, sustentados pela generosidade cristã dos aldeanos e do que, à sorrelfa, rapinavam das hortas que marginavam os caminhos.

Justiça lhes seja feita, porém. Também compravam e vendiam cavalgaduras nas feiras sendo que os animais de unha rachada estavam fora do seu alcance. Eventualmente também exerciam os misteres de cesteiro e latoeiro e as mulheres liam a sina, mas só excepcionalmente deitavam a mão à enxada ou à charrua.

Posto isto, vem a propósito lembrar o abençoado caldo de castanhas com figos secos, ou do Dia dos Fiéis Defuntos, que dizem ter sido inventado por Benigna Bilhó, montanhesa de Monte de Arcas, terra farta de batata e castanha, que casara com um figacheiro de Vale de Telhas, pelo que, enquanto o marido fora vivo, nunca em casa lhe faltaram chicharros e figos secos.

Receita supimpa a de Benigna, que punha amarfinados bilhós a nadar no suculento puré de castanha, com dois ou três figos secos à revelia, em comunhão com olhos de couve, feijão branco e os afamados chicharros, que nunca voltam a cara uns para os outros, o que fundamenta este outro dito popular: “é mau como os chicharros!”. Tudo temperado com o melhor azeite da Terra Quente, quanto bonde, claro está.

Benigna Bilhó, já velhinha de provecta idade morava só, arrastando-se como podia pelas ruas da aldeia e pela pequena horta de ao pé da porta, que não era tudo que lhe restava, porque dores, doenças e lamúrias as tinha para dar e vender:

- Oh, Nossa Senhora não me levar! Oh, Nossa Senhora não me levar! Oh, Nossa Senhora não me levar!- Repetia, vezes sem conta, por tudo e por nada.

Até que um dia, teve ainda ela o ensejo de o contar, Nossa Senhora lhe apareceu, predisposta a fazer-lhe a vontade:

- Prepara-te, Benigna, que tenho lugar reservado para ti, lá no Céu. – Ter-lhe-á dito a Divina Mãe.

Benigna estremeceu. Caiu-lhe a alma aos pés. De pronto a apanhou e a recolocou no seu lugar. Recomposta ripostou:

- Ó minha Nossa Senhora! Deixai-me, ao menos, viver até ao Natal que está à porta, para me poder consolar, pela última vez e ganhar forças para a viagem, com o caldinho de castanhas de que tanto gosto. Prometo que Vo-lo-dou a provar.

Terá anuído a Divina Mãe à piedosa petição de Benigna. Também pelo prometido caldo de castanhas com figos secos, claro está. E porque não?!

Mas não por muito tempo mais, porém, porque quando ainda os ouriços não haviam parado de parir, a jovem Josefa, zeladora da capela de Santo Amaro, notando a falta de Benigna na missa do Dia dos Fiéis Defuntos, precisamente, foi encontrá-la morta, tombada junto borralho onde ainda fumegava uma panela de caldo de castanhas com figos secos.

 Sobre uma mesa improvisada, contou Josefa, estavam duas malgas vazias, sendo que uma só poderia ser a que Nossa Senhora utilizou.

De pronto se levantou uma lenda que conta que a Mãe do Céu, depois de ter provado o caldo de castanhas com figos secos cá na Terra, pôs Benigna Bilhó a cozinhá-lo para toda a corte celestial, assim o convertendo num verdadeiro manjar dos céus.

Tanto assim é que, no dizer dos mais espirituosos figacheiros, nos dias em que é servido caldo tão energético lá nas alturas, se ouve trovoar por toda a Montanha.

Ripostam os montanheses, contrapondo, dizendo que as trovoadas são dos figos secos e não das castanhas.

Henrique António Pedro in " Quem me dera cá o Tempo" -Outubro 2020