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segunda-feira, 19 de julho de 2021

Diluo-me no tempo

 


Qual rio a correr

para o mar

sem saber em que oceano

ou lago

se irá transformar

também eu

estou

a caminho

 

A carne e os ossos dissolvem-se-me no húmus

que os criou

prazeres e dores nos fumos

do anoitecer

acto trágico de morrer

 

Eu diluo-me no tempo

transformando-me em pensamento

sem saber o que sou

tão pouco para onde vou

 

Tornarei

feito nuvem

trazido nas asas do vento

para em poesia

de novo

me precipitar?

 

Ficarei

eternamente

por lá

no ar

sem mais dor

apenas a mais a amar?

 

A certeza

a tenho

de morrer

não a de desaparecer

 

Porque se assim fosse

não havia existido

sequer

 

Vale de Salgueiro, terça-feira, 26 de Outubro de 2010

Henrique António Pedro 

In Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)

Depósito legal:  404160/16

ISBN:  978-989-97577-52



quarta-feira, 14 de julho de 2021

Filho do Sol e de Gaia

 


Alguém

fora do espaço e do tempo

me surpreende a lamber as feridas

do último combate dentro de mim

e me pergunta quem sou

 

Sou filho do Sol e de Gaia

minha bem amada mãe

e tenho a Lua por aia

 

Vivo do seu ar e da sua água

de angústia apresada

e de sonhos de cambraia

 

E componho melodias de pensamento

que tanjo com o coração

e espalho no vento

 

Versos de amor e amizade

poemas de verdade

gritos de razão

 

Olho a Lua

que iluminada

estua

nela me vejo ao espelho

e a minha vaidade se esvai

 

Sou filho do Sol e de Gaia

minha mal amada mãe

criados por Deus Pai

ante quem me ajoelho

em acto de contrição


De todas as criaturas sou, por isso, irmão.

 

Vale de Salgueiro, 14 de Fevereiro de 2008

Henrique António Pedro


domingo, 11 de julho de 2021

Continuo à espera de um sinal


Venha ele de onde for

venha de dentro

ou de fora

continuo à espera de um sinal

 

Seja um cicio

um sorriso

um compromisso

um olhar

um beijo

um lampejo de desejo

um abraço apertado

 

Talvez um fenómeno inesperado

um sussurro de vento

uma ideia avivada

um lampejo de luz

que ilumina

cativa

seduz

e faz acreditar

 

Talvez o testemunho de alguém

que também continua à espera

por sinal

de um sinal

 

De um fogo de amor no coração

do fim da dor

da chama da iluminação

 

Vale de Salgueiro, terça-feira, 19 de Outubro de 2010

Henrique Pedro


sábado, 3 de julho de 2021

Agora ando a aprender a pensar


Andei a vida inteira

a aprender a melhor maneira

de bem raciocinar

 

Oh, que grande asneira!

 

Aprendi a soletrar

palavras e letras

a ler

e a escrever

 

Tretas!

 

Aprendi números e algarismos

a contar

somar

subtrair

multiplicar

e dividir

 

Calculismos!

 

Devorei compêndios de gramática

e de matemática

poesias e analogias

tratados de ética e de lógica

físicas e filosóficas

 

Fantasias!

 

Aprendi a falar verdade

e a mentir

a ficar e a fugir

a tocar violão

a matar ou morrer

a sobreviver

 

Socialização!

 

Agora ando a aprender a pensar

e a amar

para me libertar

e salvar

 

Sem números ou letras

nem outras petas e tretas

 

Iluminação!

  

Vale de Salgueiro, quarta-feira, 3 de Outubro de 2012

Henrique António Pedro


 

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Uma pedra de gelo a arder


Este poema é uma pedra de gelo que arde

e se derrete

com o calor da imaginação

 

É um monte de caruma que será fogueira

se ateada pela chama

de quem o ler

para se aquecer

 

É um emaranhado de palavras

à espera de serem lidas

e sentidas com poesia

mesmo sem que tenham

rima alguma

 

É um novelo de lã que será meia

depois de tecido e fiado

pelas mãos da tecedeira

 

É o presente que será futuro

quando tiver passado que contar

 

É uma madrugada que será dia

quando o Sol raiar

 

Este poema é uma pedra de gelo

que o calor da poesia transforma em água

que levanta fervura

e vira vapor

 

É uma ideia que será iluminação

quando for gelo

a arder

 

Porque o amor só o é na dor

e sem condição

  

Vale de Salgueiro, 20 de julho de 2020

Henrique António Pedro


sexta-feira, 18 de junho de 2021

O mais certo é eu não ser eu e ser outro


Poderei ser eu mesmo, sim

e não ser mais ninguém

ainda assim

 

Poderei ter-me assumido, assim como sou

ainda no ventre de minha mãe

 

Mas pode dar-se a coincidência, também

de eu ser outro

em coexistência  com o eu que agora sou

 

Eu

um outro

ninguém

algum

ou nenhum

 

Neutro

 

Um pensamento impróprio

para consumo comum

 

O mais certo, portanto

será

quiçá

eu não ser eu

ser outro

que se ilude a si mesmo

e me engana a mim próprio

entretanto

 

Um encanto

 

Um outro que já fui

mas já não sou

 

Um outro que poderei vir a ser

mas ainda sou

 

Um outro que serei se o for

 

Um outro eu

muitos mais

ou talvez nenhum

 

O mais certo é eu não ser eu e ser outro


Vale de Salgueiro, domingo, 13 de Setembro de 2009

Henrique António Pedro