Sou do tempo
em que na minha amada Terra Quente transmontana
que Ceres
prendou com searas de pão e trigo, vinhedos e pomares
e com o maior
agro deleite que é o azeite, virgem como a Verdade
tinha força e sentido
a palavra Caridade.
Começava-se o
dia com o canto do galo ao halo do arrebol
esboroava-se o
xisto à força da charrua e da enxada
martirizavam-se
os corpos com o trabalho de sol a sol
migava-se o
caldo com pão centeio, rijo como penedo
e alagavam-se
os corações de suor e de saudade
daqueles que
ousavam vencer o medo
em procura de
melhor viver
nos caminhos desolados
da emigração.
Aos sem eira
nem beira não restava outra coisa, porém
que a mendicidade,
a generosidade alheia e a resignação
Guardo na memória
a alegria de uma infância feliz e sadia
mas ainda me dói
a tristeza e sofrimento dos pedintes andrajosos
que sem nada
terem de sua pertença
deambulavam de
aldeia em aldeia e de casa em casa
à procura de uma
brasa, de uma candeia acesa na lareira
que não lhes negasse
o alento e a certeza de sustento
para o corpo
sofrido de frio e doença.
Paravam no
primeiro degrau da escada, batiam o bordão
e suspiravam um
lamento, alijada a carga de dor e desilusão.
E quando o
rafeiro se calava e os deixava fazer ouvir a sua prece
entoavam, com
fervor e devoção, uma oração monocórdica
ladainha que
misturava pai-nossos, malgas de caldo e ave-marias
com caridade,
piedade e as almas que Deus tem, que já lá estão.
Era minha mãe
a primeira a descer a escaleira, de coração condoído
já de
almontolia na mão para atender o infeliz desafortunado
que ajoelhado soerguia
o rosto, subia a voz e o tom da súplica
capaz de comover
o coração mais empedernido:
- Uma esmolinha…por alma de quem lá tem…!
Só quando o
fio de azeite luzia em movimento para dentro da lata
que o infeliz trazia
pendurada ao pescoço, se interrompia a triste litania
para deixar
ver uma réstia de alegria e um tímido alvoroço
enquanto minha
mãe despejava todo o azeite do seu coração
e mais o que trazia
na almotolia, e respondia disfarçando a emoção:
- Deixe lá
ficar as almas no lugar delas…que bem lá estão!
Era assim a
solidariedade naquele tempo! Uma troca inocente
de parco
conforto, caldo, pão e um dedal de azeite
pela prece de
um desvalido imundo, pelas almas do outro mundo.
E também havia
solidariedade no amanho do campo
nos desmandos da
vida e nas horas de pranto
mas outra
coisa era a Caridade de minha mãe
que fazia bem
sem olhar a quem, e sem esperar nada de volta
nem sequer uma
humilde lamúria, uma oração espúria.
Reinventaram
agora, porém, a palavra solidariedade, para espanto,
a que também
chamam de cooperação! Oh, óleo sacrossanto!
Já não é o
azeite a moeda de troca. Negoceia-se agora mais alto!
Na verdade, é
o negro e viscoso petróleo, e maior é o sobressalto!
que solidariedade
ou cooperação poderemos nós oferecer
à legião de desafortunados
que agonizam na mais abjecta miséria
sem nada terem
para troca, coisa alguma para dar de volta
tão pouco força
anímica para um mero grito de revolta?
Solidariedade?!
Com todos os machuchos, tiranos e nababos
que à míngua
deixam os seus morrer à fome, à vista de toda gente?
Porque
continuam os donos do mundo a lavar as mãos como Pilatos
agora no
viscoso petróleo, o amaldiçoado óleo dos diabos
que lhes faz
voar os jatos, envenena a Terra e promove a guerra?
Não merecerão
esses nossos irmãos infelizes também ser,
por nós amados
e que tudo façamos para os salvar?
Na certeza de
que nada nos darão de volta, porque nada têm para dar!
Porque se não
globaliza a cristã Caridade? Caridade, sim, a Caridade!
Como a paixão
de Cristo por nós, a que S. Paulo chamou “knose”!
Que não tem
nada de utópica, nem a ver com a filosófica gnose
e muito menos
com a demagógica solidariedade!
É apenas uma
questão de mero Amor!
De sentir a
dor dos outros: amigos, inimigos ou neutros!
Caridade como a
praticava minha mãe
e ainda a
praticam muitas mães, por cá!
Como a
praticou Agnes Gonxha Bojaxhiu, por todo o mundo
e como melhor
se sentiu nas ruas da vergonha de Calcutá!
A maior arma
de destruição maciça é a fome! Do corpo e da mente!
A que existe e
a que está para vir!
Está à avista
de toda a gente!
Porque se não
mobilizam os exércitos para a destruir?
in Anamnesis (Janeiro de
2016)