quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
Porque sou o centro do Universo?
Já ao cair da tarde
levantou-se uma brisa
suave
embalando a Natureza
e convidando plantas e
animais
a adormecer
Depois ergueu-se no
horizonte
a Lua cheia
resplandecente e
grávida
em perseguição do Sol
enquanto este se
escondia
sem se deixar apanhar
por não querer assumir
a paternidade
Então a noite caiu
lentamente
a Lua abriu o regaço
e o lençol diáfano do
Firmamento
polvilhou-se de
estrelas cintilantes
Tudo isto eu vivo aqui
na Terra
eternamente à espera
de adormecer
para poder um dia
acordar
e poder então entender
porque sou o centro do
Universo
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
Coisas de dentro de ontem fora do tempo
Há locais
grandes
pequenos
de somenos
objectos
tempos
templos
simples ventos ou pensamentos
rostos
instantes
gritos
melodias
cheiros
sabores amargos
e doces
objectos insignificantes
risos e choros
diabruras e maldades
passos encobertos
e gestos rasgados de caridade
ou coragem
afagados pela aragem da lembrança
que passaram a entidades reais
mesmo sem peso nem medida
cinzeladas no área de imagens do cérebro
com tonalidades de afecto
São coisas de dentro de ontem fora do tempo
e da memória próxima
de dentro de mim
do meu passado
encontradas no mundo exterior
e a quem a proximidade da saudade
conferiu existência gravada naquilo sou
e já não fui ou serei
coisas de dentro de ontem fora do tempo
de entre o Alfa e o Ómega
dentro da moral e dos afectos
do Bem e do Mal
Como aquele copo de vinagre
que bebi
quando criança
e mal sabia ainda que coisa era vinho ou vinagre
que encontrei abandonado na cozinha
de minha avó Alzira
e me soube a fel
mais amargo que a esponja com que martirizaram Cristo
agonizante na cruz
Foi um ápice de martírio o meu
um esgar de sorriso e dor
que por certo me lançou na vida dos sabores
nos reflexos por aí adiante
e me põe agora a olhar para trás
e quiçá poderá mesmo ser o garante da minha salvação
Ho!
E aquela imagem que retenho
de minha mãe a descer a escaleira da caridade
de almotolia na mão
para socorrer os mendigos andrajosos
que ousavam subir a escada da súplica
e no primeiro degrau da miséria
de lata pendurada ao pescoço
proferiam pai-nossos angustiados por alma de quem lá tem
pela santa que aí vinha
e era minha mãe que lá vinha de almotolia em riste
para que o seu triste irmão digno de dó
pudesse ter azeite para cozinhar a sua própria felicidade
e olear os pés gretados pelo pó do caminho
e reconfortar o estômago com batatas cozidas
em paga das orações doridas de verdade
E o lobo!
Recortado contra o luar de Janeiro
esfomeado
que saltava do colmo para o chão
e do chão para o colmo que cobria a manhosa cabana
armada na Casa do Seixo para guardar o meloal
capaz de me devorar o corpo e a alma
votado eu a defender o corpo
mais que a minha alma tão calma
de escopeta em riste
tão calma que me pus a pensar
se o mato serei eu o assassino
e será o lobo inimputável menino
E a indelével lembrança de cigano a fornicar cigana
na palha
de madrugada
quando eu criança
vencia a geada para ir mugir a vaca
e a desavergonhada sem se importar com nada
abria as pernas e o cigano a rugir
eu ficava parado
pasmado
sem ensejo de fugir
a olhar e a despertar
de desejo
e ficava a compreender então
a razão pela qual apenas era lícito naquele tempo
possuir mulheres virgens
embora não importasse quantas
e também porque razão as santas
o são!
E o cheiro ácido de África
que se entranhava nos corpos
e exalava suores
com sabores de sexo de guerra e de espera de paz!
Desde aqui…
parto deste meu canto
reduto de memória de muitos amores
desejos e sabores
aromas de alfazema
e de azeitona fermentada
armazenada na garagem com portas de castanho
em que meu pai guardava o velho Austin
e que fora outrora moagem
tocada pela religiosidade e arte
do velho moleiro Urbano
E calo as imagens de tantos amores
ázimos porque não tinham o fermento
do verdadeiro Amor
ainda que o amor seja ele qual for nunca deixa dor
Ante o destino frustrado
entristeço de tristeza amarga
calado
macambúzio
sorumbático
armado em vítima
esperando que alguém se apiede de mim
Talvez eu próprio
tenha compaixão de mim mesmo
e entre em contrição
Para concluir que Deus deverá ter corpo
olhos e ouvidos
pernas e braços
coração e cérebro
mas não é homem como eu
e que Cristo Jesus
apenas é Deus
a contra luz porque padeceu na Cruz
Mas se Deus tem corpo com olhos
ouvidos
pernas e braços
coração e cérebro como eu
então também eu poderei ser Deus
como Jesus a contra luz
in” Angústia, Razão e Nada”
domingo, 16 de fevereiro de 2014
Palavras danadas de nadas
Palavras danadas
de nadas
sem sentido
Poemas
proscritos
ocos
vazios de
tudo
plenos de
nada
que nada dizem
e dizem
apenas
coisas
nenhuma
Ilusões
Bolhas de
espuma
estouros de
pipocas
ar encerrado
em balões
que estouram
por si
ou se acaso
os toca
s simples
ponta de alfinete
Palavras
obscenas
cortantes
como canivete
grunhidos
gemidos
sorrisos de
mentes pequenas
que fogem da
mão
e apunhalam
o coração
Pão ganho
sem suor
suor que não
produz pão
Sementes
estéreis
levada pelo
vento
que germinam
em lugar incerto
ou caiem no
caminho
longe ou
perto
e são mato
daninho
Obras sem fé
bairros
clandestinos
sem água
sem luz
fé fictícia
sem alma nem tino
Sémen
ejaculado sem amor
fontes de
dor
Filhos
nascidos por acaso
criados desamparados
ao deus dará
Palavras de
nadas
danadas
sem verdade
ou utilidade
Tentação
niilista
terrorismo
discurso
político
Aonde
isto
irá
parar?
Terá um dia fim?
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014
Cigana parida na palha espalhada no chão do curral
Cigana parida
na palha espalhada
no chão do curral
mortalha do porco
e cama do cão.
Poalha de humana caridade
de meu tio Daniel:
-Ajuda aqui Inocência
traz o caçoulo da água benta
e uma toalha
que vamos batizá-lo cristão
-Ai Jesus que rapagão
-Que nome lhe vamos por?
E a cigana Santa ri de alegria
e um tudo-nada de dor
- Daniel “comósenhor”!
Fora mulher e seria Inocência
-Então será Daniel como eu!
E que bem-dito seja!
E Daniel Comoeu
cigano livre como o vento
que vindo de Espanha
sopra por toda a Montanha
como eu afilhado
de minha madrinha Inocência
e por meu tio Daniel bento
voa hoje Europa fora
agora com passaporte
de crédito e sorte
derrubando fronteiras uma a uma
sem raias de ignomínia
a salto da fortuna.
Rico como porco defunto
amortalhado na mesma palha
espalhada no chão do curral
quando o frio e a geada
curam o presunto
curtem coiros e carnes
e apuram as almas
deslavadas de mal
In Minha Pátria Montanha (Ver o Verso Edições – Dezembro 2005).
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014
Outras formas de dizer “amo-te”
Há muitas outras formas de declarar o nosso amor a alguém
sem dizer “amo-te”
ou fazer uso de qualquer outros modos e tempos do verbo amar
Poderemos mesmo dizê-lo sem proferir a palavra “amor”
e ao arrepio das regras gramaticais
ainda mais
e melhor
Se assim não for
como poderão os surdos-mudos
dizer “amo-te”
às suas apaixonadas?
Ou os amantes de língua chinesa
declarar o seu amor
às suas namoradas de outras línguas
que não entendam o mandarim
nem conheçam um só carácter chinês?
Há mesmo
muitas outras formas de dizer “amo-te”
sem ter que escrever
abraçar
ou beijar
Poderemos dizê-lo com o olhar
oferecendo uma flor
dedicando um poema
ou simplesmente ficando em silêncio ao lado de quem
a quem
queremos dizer
“amo-te”
De resto a palavra “amo-te”
já está tão gasta pelo uso
que perdeu a originalidade
quiçá
a autenticidade
Poderá ser até um abuso
aleivosia
despudor
Há
como vês
muitas outras formas de dizer “amo-te”
sem do verbo amar fazer uso
Como continuar a escrever poesia
Apenas por amor
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
Porque não trocas de mulher?
(Epigrama)
A um amigo do peito
com faceta de poeta
e o seu quê de machista
que a legítima benquista
se diverte a judiar
pergunto eu a preceito
e na hora certa:
«- Porque não trocas de mulher?!
Tens muito por onde escolher
e uma poetisa de génio
vinha-te mesmo a calhar»
Responde-me ele de pronto
nada tonto
e sem se desmanchar:
«- Porque não encontro outra igual
e mal por mal
melhor será com esta ficar.»
«Depois já não tenho paciência
nem idade
para outra mulher ensinar
e esta já domina a ciência
de bem me aturar»
«E, para quê mentir?
Desta iria sentir
uma infinita saudade»
Vale de Salgueiro, quarta-feira, 28 de
Julho de 2010
Henrique António Pedro
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