sexta-feira, 4 de maio de 2018
Quando a minha sombra mais se alonga
Quando a minha sombra
mais se alonga
O Sol nasce atrás de mim
lá para as bandas da serra de Bornes
À hora em que ainda durmo
inocente
O Sol poente
porém
oscila
entre o cabeço do Boi e a serra da Santa Comba
Entre as cinco da tarde no Inverno
e as nove da noite
no Verão
horas a que a minha sombra
mais se alonga
E não é por acaso mediterrâneo
É porque é à hora do ocaso
que a minha mente mais se perde
em divagações astronómicas
dilacerada entre poesia e astronomia
Hora a que a minha alma mais se sente
se angustia
e delira em arrufos místicos
espontâneos
in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)
terça-feira, 1 de maio de 2018
Amorável, doida, doída, dorida, nonsense.
Por mais que se pense
ou não pense
se diga ou se fique calado
extasiado
a olhar o céu
a poesia é o que é:
Nonsense
É a arte do utópico
dos picos da paixão
e de outros males do coração
das indefiníveis estéticas
amor sem dor
é utopia
É génese de religiões
ainda que Amor e a Fé
não sejam meras construções
poéticas
Melhor que nada, que outra coisa nenhuma
a poesia nos inuma na tristeza
nos liberta do real
nos desperta
nos afunda nas raízes profundas do ser
daquilo que verdadeiramente é
nos despoja do ter e do haver
mais nos aproxima do bem
e nos afasta do mal
A poesia
é como a vida é
amorável
inexplicável
irracional
doida
doída
dorida
nonsense
Vale de Salgueiro, 12 de Novembro de 2007
Henrique António Pedro
domingo, 29 de abril de 2018
Estas fragas que me falam
Não ouvi esta
fábula a nenhum animal
da terra, do mar
ou do ar
mamífero, ave,
peixe ou réptil
a nenhuma flor
espadice ou séssil
nem a ninguém
com boca para a contar
Escutei-a a
uma fraga, granítica, disforme e fria
das inúmeras
que emolduram o quadraçal
qual quistos
implantados na face rugosa da terra
por onde
corre, já velho e alquebrado
o meu benquisto
rio Rabaçal
Quando encostei
o ouvido ao ventre da monstra autista
na ilusão de
descobrir em qual delas se escondia Narciso
jovem beócio natural
de Tespia
filho da
linda ninfa Liríope e do brando Zéfiro
vento suave e
conciso
fruto da mais
amorosa viração
Uma daquelas
fragas arredondadas
acariciadas
pelo rio cristalino
teria que ser
o divino Narciso
por quem toda
a mulher bela se apaixonava
mas que
enamorado de si para seu mal
a todas por
igual desprezava
Até que a
bela e agreste ninfa Eco
a quem também
Narciso não sorria
vendo que ele
desmerecia tamanha paixão
o transformou
em pedra de verdade
sem coração,
alma ou chama
e é por isso que
hoje em dia
mais louvamos
a avisada Ecologia
que a supérflua
usura mundana
Na verdade não
ouvi dizer a nenhuma fraga informe
que seria ela
o próprio Narciso
jovem beócio
natural de Tespia
transformado
em pedra pela ninfa fatal
quando ruída
de despeito e ciúme
o viu apaixonado
pela própria imagem
reflectida ao
sol posto
no lume do rosto
do meu rio Rabaçal
Mas todas as fragas
me segredaram
enquanto se
miravam nas águas mansas
por entre
chilreios de passarinhos
e o
tremeluzir da folhagem
que Deus
colocou a semente da poesia
no
empedernido coração do homem selvagem
cego pela
vaidade e desejo de vingança
para que a
figura da verdade e da esperança
melhor se reflictam
na superfície imaculada da alma
onde pela
noite serena também resplandece a Lua
em romântica luminosidade
e amorosos sinais
e o Sol em
tardes de calma se vem banhar
impiedoso e ofuscante
para os olhos mortais
Assim Deus deu
aos homens o dom abençoado da poesia
acorde de
todas as harmonias
capaz de extirpar
a angústia e aplacar o ódio
suavizar a amargura
e sufragar a desilusão
partilhar
amores e alegrias
e melhor
suportar os males da paixão
E quanto mais
os políticos e os tecnocratas
partirem fragas
e removerem montanhas
sem amor nem fantasia
mais dor e sofrimento
haverá em cada dia
e mais a insana
sociedade
se afastará
da felicidade
Por isso há inúmeros
poemas silenciados
transformados
em fragas nas entranhas do quadraçal
salvaguardados
de todo o mal
cujos acordes
só eu ouço
e cujo conteúdo
ninguém pressente
ainda que
estejam ao alcance da vista
e dos ouvidos
de toda a gente
in Anamnesis
(1.ª Edição: Janeiro de 2016)
segunda-feira, 23 de abril de 2018
Pedras e palavras soltas
(Ainda antes de falar palavras
lançou mão de pedras
o homem)
Oh! Que prazer que me dá
a mim
empilhar seixos e xistos
pequenos
disformes
conformes com os dedos
do tamanho da palma da mão
tão leves como o coração
ainda assim!
Atirá-los
lançá-los a esmo
sem projectos nem enredos
para um tosco montão
Ouvi-los bater uns nos outros
com rusticidade
vê-los rebolar
para posições mais estáveis
como se fora deles a opção
e não da gravidade
Sentir que o meu espírito voa
para longe dali
à medida que o montão cresce
caótico
que cada pedra é uma palavra
que ali não fica sepultada
uma ideia que se solta
salta
e voa
à procura do poema a que pertence
E que inocente prazer
é ver o merouço crescer
de diferentes perspectivas
e sem outro dilema sentir
que não seja ver
e ouvir
o que vejo e ouço
Julgo eu
que não sou entendido em Pré-história
nem desta parte
em História de Arte
nem fazer doutrina tenho em mente
que terá nascido assim
a primeira obra poética
o mais tosco poema
escrito em pedra solta
certamente
Com a mesma beleza dos seixos
que na boca de Demóstenes
por força da sua fé
floriam em palavras de poemas
E que terão a mais as pirâmides do Vale de Gizé
do que este patético amontoado de pedra
que terem sido edificadas
por milhares de artífices escravizados?
E que terá a mais a Grande Muralha da China
para lá de ser maior
ter ameias
e blocos de granito mais solidamente cimentados?
E que terão a mais a Ilíada e a Odisseia
do que esse pré-histórico tosco poema
que não seja mais versos
mais harmoniosamente rimados?
De pedras e palavras se faz poesia
se a mão que as lança
a língua que as afia
forem tocadas pela imaginação
in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)
domingo, 22 de abril de 2018
Tocam os sinos a sinais
Na
minha aldeia
por
genuína ideia
ao
toque de finados
o
povo chama de “sinais”
Sim…ais…
“sinais”
sons
doridos
sofridos
fatais
Que
soam nos ouvidos
ecoam
nos descampados
e
se calam no coração
Dlãoooooooooo
Dlãoooooooooo
Sempre
que alguém morre
seja
lá quem for
ou
qual for a sua condição
os
sinos tocam na torre
doridos
sons de dor
o
toque a “sinais”
Dlimmmmmmm
Dlimmmmmmm
Dlãoooooooooo
Dlãoooooooooo
São
sinais!
Sinais
de fim
sinais
de compaixão
sinais
assim…
de…
…adeus
Sinais
a Deus
que
receba mais
um
dos seus
lá
nos céus
Dlimmmmmmm
Dlimmmmmmm
Dlãoooooooooo
Dlãoooooooooo
in
Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016Henrique Pedro)
quarta-feira, 11 de abril de 2018
Que felicidade eu sinto, Santo Deus!
Que felicidade eu sinto, Santo Deus!
Mergulhado no seio da terra
que me viu nascer
e me fez crescer
Terra de onde parti
só para poder ter o prazer
de a ela retornar
Que felicidade eu sinto, Santo Deus!
A inalar o seu ar
a voar nas sensações do seu céu
a furar luras
no quadraçal
como qualquer fera
mero animal
Que felicidade eu sinto, Santo Deus!
A correr que nem corso
transportando poemas no dorso
a esponjar-me
no descampado
emocionado
nas mais felizes recordações
O Infinito longínquo
que não cabe na vista
nem na imaginação
é aqui!
Aqui é o Absoluto próximo
ao alcance da mão
todo
todo
concentrado no meu coração
Que felicidade eu sinto, Santo Deus!
Tanta
que faço da minha vida
uma permanente oração
in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)
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