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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

A rosa de Saron


Naquele palácio agora vazio

de paredes indignadas de silêncio

e martírio

 

Pedras chagadas pelo tempo

e pelo vento

pela areia que medeia novo tormento

cobiça de fantasmas

que se alimentam de miasmas

a gemer

 

Havia tapeçarias

e archotes a arder

bailarinas

e cisternas de águas cristalinas

 

Ali

fui principe e fui rei

essénio e soldado

enamorado

 

Ali matei e morri

e amei, amei, amei

 

Ademais

renasci

 

Ali

a rosa de Saron

o lírio dos vales

bálsamo de todos os males

se enraizou no meu peito

e não mais parou de florir

 

E Massada não cairá nunca mais

 

Jamais!

 

Vale de Salgueiro, quarta-feira, 29 de Setembro de 2010

Henrique António Pedro

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Fadas, Faunos e Fragas

 


Quem me dera poder viver no seio da Mãe Natureza

Tendo por morada o ninho duma águia

A cova dum lobo

A covil dum cão

A toca duma amorosa raposa

Ou a lura duma lebre alegre

Como tantas que se acoitam com destreza

Nos fojos profundos do quadraçal

Onde há milénios corre silencioso

Em seu leito de mistério e emoção

Povoado de fadas, faunos e fragas

O meu amoroso rio Rabaçal

 

Pernoitar entocado entre penedos

Não sentir frio, calor ou medos

Nem outro incómodo maior

Que a mística enxerga matriz da humanidade

Que acomodava Francisco de Assis

 

Alimentar-me de medronho e de amoras silvestres

Beber água pura da nascente

Namorar ao luar

Tendo as estrelas como luzeiros para me alumiar

E a sinfonia tangida pela brisa do cair da tarde

Nas copas dos pinheiros altaneiros

Para me tranquilizar

 

Apenas morrer quando me apetecer

Deixando meus poemas gravados nas pedras disformes

Informes do amor e da verdade que a todos redime

 

E continuar a evolar com alegria

Nesta fantasia sublime

Qual fauno converso neste universo

Que é templo de palavras lavradas em verso

 

 

Vale de Salgueiro, sexta-feira, 12 de Fevereiro de 2010

Henrique António Pedro

 

 

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

No limiar da minha lembrança de criança

 


No tempo em que a minha lembrança

de criança

se inicia

 

E no meu entendimento

embora fosse Deus alguém que eu desconhecia

admitia

ainda assim

que fora Ele a criar meus avós

primeiro

e meus pais

depois

 

Embora fossem meus pais

que eu conhecia melhor

ainda assim

que moviam sós

todo o mundo só para mim

 

Eu nem sequer me conhecia a mim tão bem

como conhecia meu pai e minha mãe

 

Com eles partilhava um mundo que era só meu

que melhor eu bem compreendia

e sentia

porque ainda não sabia

que coisa era a dor

 

No limiar da minha lembrança de criança

não havia espaço sequer

para o sonho, o temor ou a esperança

ou para o que a Deus aprouver

 

Porque esse meu mundo era um mundo só meu

 e era só puro amor

 

Vale de Salgueiro, terça-feira, 3 de Agosto de 2010

Henrique António Pedro

sábado, 7 de outubro de 2023

Nem sei se ainda por aqui ando ou se já me fui embora daqui

 


Nem sei se ainda por aqui ando ou se já me fui embora daqui

 

Esta melancolia que me assola

em dias de chuva aborridos

ou quando o sol poente

me deixa lânguido da saudade

de quem anda ausente

estando embora presente

é uma tristeza deliquescente

mais própria dos vencidos

 

Abandono-me à nostalgia emergente

e paro de me angustiar

viro as costas às perguntas do costume

que sei

de antemão

não terem respostas

 

É quando uma morrinha miudinha

me toma os sentidos

a ponto de não me sentir nada

nem ninguém

nem magma

nem matéria

em nada materializado

em nenhum estado de espírito realizado

ocaso ou aurora

 

Fico sem saber se ainda por aqui ando

ou se já me fui embora daqui

se a poesia é coisa séria

ou não passa de uma pilhéria

 

Até que o ensejo de um bocejo sorri

me faz despertar dessa sonolência demente

e retomar a vida corrente

 

Vale de Salgueiro, domingo, 24 de Maio de 2009

Henrique António Pedro


 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Estado de alma estranho ao normal sentir

 


Estado de alma estranho ao normal sentir

 

Não é angústia nem ansiedade

dúvida ou falta de vontade

dor interior ou exterior

 

Não é aborrecimento nem saudade

contentamento ou felicidade

náusea ou fastio

alegria ou desilusão

medo da morte

vontade de morrer

delírio

alvedrio

vazio

frio

arrepio

premonição

 

É uma espécie de apatia activa

uma viva abolia

 

É um desejo de fugir

daqui

de mim

d`além

sem que saiba bem

para onde quero ir

 

É um estado de alma estranho ao normal sentir

que eu não sei definir

 

Talvez seja só contemplação

alegoria de iluminação

 

Vale de Salgueiro, sexta-feira, 13 de Fevereiro de 2009

Henrique António Pedro

 

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Voluptuosa Idade


Voluptuosa Idade


Agora que passei dos setenta

que o cabelo rareia e as rugas da face concorrem com as do ventre

já sinto necessidade de usar chapéu para me proteger do calor de Verão

que mordisca a pele desguarnecida pela força dos anos
e do frio de Inverno que me arrepia com o mesmo arrepio

que me causou a água fria da pia baptismal
no meu crânio escalvado de recém-nascido

Agora que já me apetece dormitar à beira da lareira
com o mesmo enlevo com que em menino
adormecia em sonhos no escano fronteiro
bafejado pelas labaredas crepitantes da raiz de oliveira
e pelo vapor do caldo verde que fervia na panela cantante
em intróito ritmado de sagrada ceia
protegido pela proximidade atenta de minha mãe
e mais além por uma estrela distante
que luzia

noite e dia

Agora quando a púbis da mulher sensual e jovem
já não me provoca voluptuosidade, heroísmo ou vaidade
perco-me em truísmos de ternura, estética e saudade
e já não penso as mesmas ideias de domínio e conquista da Terra inteira


Agora que passei das setenta

outras volúpias de prazer me envolvem, me animam e me fazem viver

sonhar mais alto ainda porque fui feliz na infância
fui rei
fui príncipe
fui criança
e acabo de renunciar às glórias do mundo
e partir à reconquista do Universo pelo amor e pela palavra

de um mero verso


Agora e aqui
ensaio amar-me a mim mesmo com verdade
e a amar os outros
o próximo e o distante
como diz Jesus
na liturgia da palavra de Cristo

e na prática de Francisco de Assis

Respeito a diferença, a humildade da erva rasteira
a simplicidade do cronómetro do caracol
que contemporiza os ponteiros do relógio com os desígnios do sol

Agora e aqui vivo o dia-a-dia com o labor da formiga
na plenitude e autenticidade da paz e liberdade das nuvens e das aves
deixo que a alma amadureça de verdade como a cereja
por força do húmus e dos raios cósmicos
trazidos pelo sol
pelo luar
pela dor

e pelo amor

Esta a minha heresia maior

a minha igreja:

não conseguir viver
ver e sentir
agir e amar
sem uma absoluta referência divina, terna, eterna, terrena

Agora sim
sinto sede de viver sem que tenha medo de morrer


Não anseio passar à posteridade
procuro apenas a imortalidade

 

Henrique António Pedro

Vale de Salgueiro, 10 de Setembro de 2007